O espaço insubstituível das mulheres na democratização da justiça
Não há de se falar em justiça sem o reconhecimento do igual respeito e consideração pelas mulheres. É dever de todas as instituições democráticas romper com estruturas e práticas desiguais, incorporando e irradiando a potência insubstituível da presença feminina em espaços de decisão.
segunda-feira, 20 de dezembro de 2021
Atualizado às 11:25
A democracia não é feita apenas de eleições e da participação mais direta do povo no poder. Para ser viva e estável, ela deve se enraizar nas diversas instituições e relações, atingindo estruturas estatais e os vínculos particulares que possam interferir na vida pública. Como uma teia, requer uma ramificação de canais de participação para que a igualdade flua, e os diversos espaços de poder possam ser ocupados por todos que desejem.
Diante da desigualdade da participação das mulheres nos múltiplos lugares de poder (políticos, sociais, econômicos), muitos esforços têm sido realizados para ampliar sua presença, ao longo do século XX. No âmbito político, diversos ordenamentos têm aplicado cotas (de candidatura ou de assento) com forma de viabilizar o acesso inicial ao poder. Nesse aspecto, a 4ª Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, na China, em 1995, a qual resultou numa Declaração e Plataforma de Ação sobre a Mulher1, representou momento decisivo para que o Brasil e outros países da América Latina elaborassem legislações com o objetivo de majorar a presença das mulheres nos espaços políticos de decisão.
Desde então, lentamente, no Brasil, as mulheres vêm avançando na política, fortalecidas pelas cotas e pelo posicionamento da Jurisprudência do TSE e do STF quanto à potência normativa do princípio da igualdade de competição. Ainda há muito a avançar, seja na política, seja em conquistas sociais e econômicas, principalmente considerando que direitos políticos, direitos individuais e direitos sociais se implicam, e o avanço lento de um desses grupos de direito impede conquistas adequadas nos demais.
Aspecto que guarda relação com esse caminhar e que pode acelerar as conquistas relaciona-se à ocupação de múltiplos espaços, para que um interfira positivamente no outro. A luta pela presença de mulheres em todos os ambientes institucionais sujeitos a alguma interferência política ou discricionária ainda é aspecto pouco explorado. É preciso, porém, voltar o olhar para esse ponto, sobretudo levando em consideração a questão apontada logo ao início de que a estabilidade da democracia, em todo seu vigor, demanda uma expansão dos lugares ocupados pela mulher em todas as instituições. A presença de mulheres em ministérios, secretarias e em órgãos de julgamento traz seu olhar para a luta pelos mais diversos direitos, e em variadas frentes (política e jurisdicional, por exemplo), com reflexo no ordenamento jurídico como um todo.
O quinto constitucional tem por finalidade exatamente trazer mais democracia aos tribunais, oxigenando o Poder Judiciário com uma compreensão mais ampla e plural dos desafios jurídicos. Com poucas mulheres nas listas tríplices e nos tribunais, o quinto constitucional não cumpre seu papel. É necessário, portanto, a presença feminina contemplada nas listas tríplices. Percebendo que as mulheres não ocupam ainda o espaço adequado, iniciou-se na OAB um movimento para que, dentro da instituição, esse desequilíbrio seja afastado. Importa, porém, avançar, e fazer com que essa reflexão alcance o direito à inclusão de nomes femininos nas listas tríplices elaboradas pela própria OAB, principalmente diante do dado de que há mais advogadas do que advogados2. Além disso, elas também estão mais presentes nas Universidades3.
Constata-se, por exemplo, que os Tribunais Regionais Federais possuem poucas mulheres ocupando cargos de Desembargadora que tenha advindo do quinto constitucional pela vaga de advocacia. Nos TRFs das primeira4, segunda5 e quinta6 regiões, tem-se apenas uma magistrada em cada corte que provém do quinto pela vaga destinada à advocacia. Já nos TRFs das terceira7 e quarta8 regiões, não há sequer desembargadora que tenha ingressado nessas cortes federais por meio do quinto constitucional para a advocacia.
Mulheres juízas e advogadas geralmente são qualificadas e dedicadas. Mas não é propriamente apenas esse o ponto que deve ser destacado para lhes assegurar o direito de estar nos tribunais. Os homens ocupam espaços não porque têm uma qualificação diferenciada, mas porque são homens. Mulheres têm cada vez mais se destacado como juristas, pesquisadoras, advogadas e merecem seu espaço, não diante de sua excepcionalidade apenas, mas diante de sua dignidade enquanto ser humano.
Não há de se falar em justiça sem o reconhecimento do igual respeito e consideração pelas mulheres. É dever de todas as instituições democráticas romper com estruturas e práticas desiguais, incorporando e irradiando a potência insubstituível da presença feminina em espaços de decisão.
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1 Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf. Acessado em 15/12/2021.
2 Pela primeira vez na história, número de advogadas supera o de advogados.
3 Mulheres são maioria nas universidades brasileiras, mas têm mais dificuldades em encontrar emprego, em https://www.bbc.com/portuguese/geral-49639664. Acessado em 15/12/2021.
4 https://portal.trf1.jus.br/portaltrf1/magistrado/desembargadores/em-atividade/. Acessado em 08/12/2021.
5 https://www10.trf2.jus.br/institucional/estrutura-organizacional/tribunal-pleno-orgao-especial-e-secoes-especializadas/. Acessado em 08/12/2021.
6 https://www.trf3.jus.br/seju/tribunal-pleno. Acessado em 08/12/2021.
7 https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=834. Acessado em 08/12/2021.
8 https://www.trf5.jus.br/index.php/memorial/memorial-competencia-e-estrutura. Acessado em 08/12/2021.
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.
Desirée Cavalcante Ferreira
Mestra e doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Direito Constitucional. Advogada. Membro da Comissão Especial do Pacto Global do Conselho Federal da OAB, da Comissão Especial Brasil/Onu de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã para Implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas da OAB/CE e do Observatório de Violência Política Contra a Mulher.