O ser humano, o vírus e a (há) esperança (?)
Reflexões sobre um ano que termina e um vírus que permanece.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
Atualizado às 13:04
O sentimento mútuo neste fim de ano parece ser de cansaço, mas deveria ser de esperança (?). Entre a alta mutabilidade do vírus e a resistência dos não vacinados, seguimos em frente para enfrentar a chegada da variante ômicron ao Brasil1, a possibilidade de que a covid se torne uma doença endêmica2 e as alegações de fraude reveladas na CPI da Covid, sobre a atuação irregular de uma operadora de saúde com foco nos idosos na omissão de "mortes num estudo sobre a hidroxicloroquina com o objetivo de demonstrar sua eficácia e de administrar medicamentos ineficazes contra a covid-19 sem o consentimento dos pacientes", nas palavras de Estêvão Bertoni em matéria publicada no Nexo3.
A atuação da empresa neste sentido só teria sido possível frente à conivência de alguns médicos, o que expõe o pior do ser humano, já a revelação do escândalo só ocorreu após a divulgação de um dôssie elaborado por ex-médicos do plano, o que nos traz a certeza de que só se vence um vírus com a atuação ética e técnica da ciência. A postura dos profissionais de saúde diz muito sobre nós, trazendo à tona questionamentos sobre a Teoria do Verniz Social discutida por Rutger Bregman em seu livro Humanidade. Explica-se.
Bregman expõe em sua obra as contradições e falsidades que sustentam a crença generalizada na maldade como parte da natureza humana, afirmando que os homens e as mulheres são, em sua essência, bons e que foi justamente esse traço de docilidade que permitiu ao homo sapiens viver e desenvolver-se em sociedade, enquanto outras espécies, apesar de mais fortes e inteligentes, desapareceram. Harari, ao contrário de Bregman, credita a dominação do sapiens ao poder de narrativa e não à amigabilidade da espécie, que afirma que importa somente em grupos pequenos, exigindo-se, em grupos maiores, a capacidade de contar histórias para que haja a cooperação num mesmo sentido.
No caso dos testes com hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes com covid-19 que o dossiê enviado à CPI diz ter sido iniciado em 25 de março de 2020, sem o conhecimento dos doentes e de seus familiares, prática vedada pelo Código de Ética Médico, a reportagem de Bertoni conta que o diretor da Prevent Senior objetivava "mudar a trajetória da medicina nos próximos meses no mundo" e, para isso, precisava difundir a história de êxito do tratamento precoce.
Luis Felipe Pondé ao tratar do tema na sua coluna da Folha, relacionou a farsa à falha na formação de jovens médicos, consequência, no seu parecer, da alta de faculdades de medicina cujo principal ou único critério para o ingresso é o pagamento da elevada mensalidade cobrada4. Pondé não ignora que os jovens médicos sempre foram, em grande parte, "acima da média em termos cognitivos e de resiliência", já que não apenas o ingresso na faculdade, como a conclusão do curso, são marcadas por grandes dificuldades que moldam grandes profissionais, como aqueles que se destacaram na condução da pandemia do novo coronavirus, todavia, há de se reconhecer que os tempos mudaram e são outros, muito embora, paradoxalmente, as mudanças nos levem de volta ao Brasil de Lima Barreto, que, em 1911, já denunciava a mentira e a desonestidade maculando a trajetória de muitos dos nossos bacharéis5.
Lima Barreto conta a história de Castelo, que se fez passar por professor de javanês e foi contratado pelo Barão de Jacuecanga, ancião que desejava aprender a língua para conseguir ler um livro herdado de sua família. Castelo, como justificou a Castro ao contar sobre a contratação, afirmou que um homem, para poder viver, deve, necessariamente, fazer algumas concessões às regras sociais, morais e éticas. A má conduta, ao que se parece, sempre encontra uma justificativa.
O conto de Lima denuncia, nas palavras de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy6, as mentiras pelas quais muitos dos bacharéis do Brasil do século XX construíram as suas carreiras. Pondé, por sua vez, fala hoje numa falha na formação dos atuais profissionais de medicina que os permite atuar de maneira obscura, raciocínio que parece discordar da teoria de Thomas Hobbes que credita toda falha humana à nossa natureza, daí a necessidade de contenção do homem e da mulher pelo Estado, já que abaixo do verniz superficial da civilização, o ser humano confessaria toda a maldade que o cerca. A teoria do verniz social diz que a boa conduta decorre diretamente das regras sociais, culturais, religiosas e morais que nos guiam, já que a nossa natureza sempre nos direcionará para o mau caminho.
O que Lima Barreto nos conta é que as regras não são suficientes, já que há sempre uma maneira de burlá-las, vide o exemplo fictício, muito embora bastante realista, de Castelo. Seria esse o "jeitinho brasileiro" analisado anos depois por Sérgio Buarque de Holanda e o seu "homem cordial", que burla ou desconsidera as regras na tentativa de transformar o espaço público num retrato da sua esfera íntima?
A postura antiética de alguns dos médicos da Prevent Senior é uma realidade que alcança, também, os profissionais do direito, da engenharia, da odontologia, da pedagogia e de diversas outras áreas que não falam javanês e não se envergonham disso, acreditando que num mundo que premia falsos bachareis, só há uma coisa pior do que não ter o conhecimento que se afirma ter, é perder tempo atrás de construí-lo. Essa postura, todavia, não alcança a totalidade de nenhuma classe, na verdade, segundo aponta Bregman, atinge uma minoria infeliz, de maneira que longe de perdermos a esperança na humanidade, devemos fortalecê-la a partir desses exemplos, evitando que a gente extraia o pior das pessoas nas nossas trocas de relações dentro da ótica do efeito mancebo, que ao contrário do seu irmão placebo, materializa de alguma forma as reações negativas que apresentamos sobre algo ou alguém.
Os sentimentos de piora e melhora, alívio e horror, como já nos alertava Graciliano Ramos, retrata a vida como a dualidade que ela é, razão pela qual nos é exigido coragem. No mundo pós-moderno, onde os conceitos são relativizados, diante daquilo que Michiko Kakutani chama de "esfacelamento da verdade"7, resta saber em que consiste essa coragem, se no enfrentamento da batalha por qualquer meio, ou se apenas por aqueles que não precisam ser justificados no fim, porque a cada nova justificativa a gente se pergunta quando, afinal, o sentimento de cansaço do final de ano dará lugar ao de esperança de um novo ano, enfim, diferente?
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Manuela Vidal e Silva Oliveira Santos
Advogada. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará (UFC).