CDC e o mercado de capitais
A crescente popularização de investimentos por meio do mercado de capitais tem gerado muitas dúvidas acerca da aplicação do regime jurídico especial do CDC às aludidas relações jurídicas, fato este que pretendemos esclarecer no presente artigo, à luz da jurisprudência do STJ.
sexta-feira, 10 de dezembro de 2021
Atualizado às 11:36
Consoante o portal do Banco Central do Brasil, o Sistema Financeiro Nacional é "formado por um conjunto de entidades e instituições que promovem a intermediação financeira, isto é, o encontro entre credores e tomadores de recursos".1
O Sistema Financeiro Nacional abrange todo um conjunto de entidades e instituições que podem ser segmentadas, basicamente, em dois grandes grupos: mercado de crédito e o mercado de capitais.
Em relação ao mercado de crédito, tomando de empréstimo o conceito apresentado no portal do investidor CVM, "atuam diversas instituições financeiras, e não financeiras, prestando serviços de intermediação de recursos de curto e médio prazo para agentes deficitários, que necessitam de recursos para consumo ou capital de giro, sendo o Banco Central do Brasil o principal órgão responsável pelo controle, normatização e fiscalização deste mercado".2
Quanto ao mercado de crédito e as relações jurídicas dele decorrentes, especificamente aquelas mantidas com as instituições financeiras para obtenção de recursos para consumo, parece não haver mais divergências na doutrina e na jurisprudência quanto à aplicação do CDC, na medida em que o tomador do mútuo é destinatário final do produto ou serviço oferecido por um fornecedor.3
Por outro lado, quando estamos diante de uma relação jurídica, no mercado de credito, em que se objetiva a obtenção de capital de giro, o STJ vem se manifestando de forma contrária à aplicação do CDC, já tendo destacado o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, que "o consumidor intermediário, por adquirir produto ou usufruir de serviço com o fim de, direta ou indiretamente, dinamizar ou instrumentalizar seu próprio negócio lucrativo, não se enquadra na definição constante no artigo 2º do CDC".4
Não obstante as balizas seguras construídas pela doutrina e pela jurisprudência acerca da aplicação do CDC ao mercado de crédito - em especial quando o crédito é tomado para consumo -, grande dúvida vem sendo estabelecida acerca da aplicação do CDC ao mercado de capitais, em especial diante da recente popularização do acesso a este mercado.
Conforme destacado pelo portal do investidor, da CVM (Comissão de Valores Mobiliários),5 o "mercado de capitais tem como objetivo canalizar recursos de médio e longo prazo para agentes deficitários, através das operações de compra e de venda de títulos e valores mobiliários, efetuadas entre empresas, investidores e intermediários, sendo a Comissão de Valores Mobiliários o principal órgão responsável pelo controle, normatização e fiscalização deste mercado".
Em suma, por meio do mercado de capitais permite-se a transferência de recursos entre os dois agentes econômicos, quais sejam, os tomadores e os investidores, atuando, como regra, as instituições financeiras como intermediárias, como prestadores de serviços. Os investimentos dão-se por meio da negociação de títulos e valores mobiliários, os quais são geralmente retratados por ações, debêntures, bônus de subscrição, cotas de fundos de investimentos, dentre outros relacionados no artigo 2º, da lei 6.385/76.
Neste caso, como o investidor atua, em regra, por meio de empresa prestadora de serviços no mercado de capitais, parece-nos claro que a relação jurídica estabelecida entre o investidor e a instituição financeira intermediadora é de consumo, pois resta claro que o investidor é o destinatário fático e econômico do serviço prestado pela instituição financeira intermediadora.
Na mesma linha, já decidiu o STJ, para o qual entre o investidor e a instituição financeira, contratada para aplicação de recursos financeiros em fundos de investimentos, existe uma relação jurídica de consumo (Resp. 656.932/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, 4º Turma, julgado em 24/04/2014, Dje 02/06/2014), a apontar que a prescrição é quinquenal, e não a trienal, prevista no CC/02 para a responsabilização civil por atos ilícitos.
Vale destacar que o STJ já reafirmou, em outras oportunidades, este entendimento, destacando que "o Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos firmados entre as instituições financeiras e seus clientes referentes a aplicações em fundos de investimento, nos termos da Súmula n. 297-STJ" (REsp n. 1.214.318-RJ, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe de 18.9.2012),
Destacou ainda que "o CDC é aplicável aos contratos firmados entre as instituições financeiras e seus clientes referentes a aplicações em fundos de investimento, entendimento esse que encontrou acolhida na Súmula n. 297-STJ. Incide na espécie, portanto, a Súmula n. 83-STJ" (Resp n. 1.164.235-RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 29.2.2012), e que "as relações existentes entre os clientes e a instituição apresentam nítidos contornos de uma relação de consumo". (AgRg no Ag n. 552.959-RJ, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, DJ de 17.5.2004).
Contudo, é importante destacar que, recentemente, o STJ, no Resp 1685098-SP, da Relatoria do Ministro Moura Ribeiro, julgado em 10/03/2020, destacou que o CDC não se aplica às relações jurídicas mantidas entre o sócio investidor e a sociedade anônima de capital aberto, com ações negociadas no mercado de valores mobiliários, tendo em vista que nesta hipótese há uma relação jurídica mercantil, puramente societária, sem a presença de nenhum serviço prestado por parte de uma instituição financeira intermediadora.
Trazendo luz à questão, o STJ deixou claro que quando atuar o investidor diretamente no mercado de capitais não há uma relação de consumo, mas sim uma relação jurídica puramente mercantil. Assim, se o investidor adquire, por exemplo, ações de companhia aberta, assume este, perante a sociedade empresária, apenas a qualidade de sócio, nos termos da legislação mercantil de regência. A aplicação do CDC restringe-se às relações em que estão presentes as instituições financeiras intermediadoras, tendo em vista a qualidade destas de fornecedoras de serviços ao investidor, destinatário final do serviço prestado.
Deste modo, em termos gerais, podemos destacar que, assim como as relações jurídicas decorrentes do mercado de crédito são, em regra, relações de consumo, o mesmo se observa quanto às relações jurídicas decorrentes do mercado de capitais, quando presente instituição financeira intermediadora contratada pelo investidor para a prestação de serviços.
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1 Conforme extraído aqui. Acessado em 06/07/2021.
2 Conforme extraído aqui. Acessado em 06/07/2021.
3 Neste sentido, Enunciado de Súmula nº. 297, do Egrégio Superior Tribunal de Justiça: o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.
4 Disponível aqui. Acessado em 07/07/2021.
5 Conforme extraído aqui. Acessado em 06/07/2021.
Maicon Natan Volpi
Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela ESMPSP (Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo). Advogado. Atuou em convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Atualmente exerce o cargo de Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.