Aplicação retroativa da lei 14.230/21 aos processos em curso, segundo entendimento das Câmaras de Direito Público do TJ/SP
As Câmaras de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo têm aplicado de forma retroativa a lei 14.230/21, conforme pode-se verificar de julgados da 4ª, 5ª, 8ª, 9ª, 10ª, e 12ª Câmara de Direito Público.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2021
Atualizado em 10 de dezembro de 2021 08:41
Não há dúvidas que o parágrafo 4º, do art. 1º da lei 14.230/21 consignou de forma expressa a aplicação do direito administrativo sancionador ao sistema de improbidade administrativa regulado pela lei.
Com a reforma da lei de improbidade administrativa passou-se a questionar a aplicação imediata, não só das normas de conteúdo processual (art. 14 do CPC), como também daquelas de fundo material, tendo em vista os princípios de direito penal aplicáveis às ações de improbidade administrativa em decorrência do direito administrativo sancionar, em especial o princípio segundo ao qual a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL da CF).
Em posicionamento diametralmente oposto à retroatividade da lei, o ministério Público Federal editou a orientação 12/5ª CCR sobre a alteração da Lei de Improbidade Administrativa, basicamente com as seguintes considerações:
Não há retroatividade automática da lei nova: Por força o art. 37, § 4º da CF deve haver continuidade da conduta ilícita para haja retroatividade. A alteração de tipos gerais e específicos exige a continuidade típica. O poder judiciário não pode fazer aplicação hibrida de regimes disciplinares para beneficiar infratores.
Prescrição intercorrente: Não há retroatividade automática da lei nova por força o art. 37, § 4º da CF, devendo haver continuidade da conduta ilícita para se fala em retroatividade. A alteração de tipos gerais e específicos exige a continuidade típica. O poder judiciário não pode fazer aplicação hibrida de regimes disciplinares para beneficiar infratores.
Prescrição intercorrente: Aplica-se o tempus regit actum (art. 14 do CPC), ou seja, os novos prazos somente incidirão após a entrada em vigor da lei 14.230/21. A prescrição intercorrente não ocorrerá se for por culpa exclusiva do judiciário (art. 240, § 3º do CPC).
Não retroatividade e tipicidade: Não se aplica nos arts. 9º, 10 e 11 aos autos praticados antes da vigência da nova lei. Não se aplicam as sanções mais gravosas da nova lei aos atos praticados anteriormente.
Prazo do inquérito: Há afronta a autonomia institucional do ministério Público no prazo para o inquérito e para a ação de improbidade. Se a norma não for inconstitucional, por ser processual conta-se o prazo novo após a entrada em vigor da lei. O prazo é impróprio e não decadencial, por falta de previsão legal. Aplica-se o tempus regit actum (art. 14 do CPC), ou seja, os novos prazos somente após a entrada em vigor da lei 14.230/21. A prescrição intercorrente não ocorrerá se for por conta exclusiva do judiciário (art. 240, § 3º do CPC).
Pela orientação do ministério Público Federal buscou-se afastar por completo a aplicação retroativa das normas de conteúdo material e processual, o que não se sustenta, por se revelar contrária à construção doutrinária e também jurisprudencial que envolver o direito administrativo sancionar.
O posicionamento pela retroatividade da lei é possível de ser notado pelos diversos julgados das Câmaras de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (4ª, 5ª, 8ª, 9ª, 10ª, e 12ª Câmaras), os quais passa-se a analisar de forma bem suscinta.
Em 3 de dezembro de 2021 a 4ª Câmara de Direito Público negou provimento a um recurso do ministério Público (apelação 1000554-80.2019.8.26.0638), em votação unânime, figurando como relator o desembargador Paulo Barcelos Gatti, em turma composta pelos desembargadores Ana Liarte e Ferreira Rodrigues, veja:
De proêmio, cabe ressalvar que, a partir da vigência plena da lei 14.230/21 (art. 5º - 26.10.2021), a tipificação dos atos de improbidade administrativa violadores do princípio da administração pública aparentemente deixou de constar em rol exemplificativo ("[...], e notadamente"), passando a figurar em rol exaustivo, isto é, de tipicidade cerrada ("[...] uma das seguintes condutas").
Significa dizer que: Se antes era possível fazer a adequação típica da conduta ímproba a partir da aplicação direta da regra geral do caput do art. 11, da lei 8.429/92 (cláusula aberta, que abrangia qualquer violação aos princípios da Administração); atualmente, por império da atuação legislativa, a adequação típica do ato de improbidade violador de princípios da administração pública pressupõe a sua subsunção a uma das hipóteses específicas descritas nos incisos do art. 11 da legislação especial.
Daí, resulta a irretorquível conclusão de que o suposto "ato violador do princípio da impessoalidade", tal qual imputado pelo parquet ao aqui réu, sequer teria condão de caracterizar ato de improbidade administrativa, já que não se encontra descrito na abrangência do rol taxativo do art. 11, da lei 8.429/92.
Não se olvide que por se tratar de legislação superveniente própria do direito material sancionador (art. 1º, §4º, da lei 8.429/92, com a redação atribuída pela lei 14.230/21), suas disposições devem ser aplicadas de imediato e, inclusive, retroativamente, desde que para beneficiar o réu (art. 5º, inciso XL, da CF/88). (Apelação cível nº 1000554-80.2019.8.26.0638 -4ª Câmara de Direito Público, Relator desembargador Paulo Barcelos Gatti, julgado em 3 de dezembro de 2021).
Aplicando o parágrafo 4º, do art. 21 da lei 8.429/92, com a redação que foi dada pela lei 14.230/21, a 5ª Câmara de Direito Público, ao julgar o agravo de instrumento nº 2171166-37.2021.8.26.0000, em votação unânime (Relatora Maria Laura Tavares, desembargadores Fernando Magnani Filho e Francisco Bianco), deu provimento ao recurso de um requerido em ação de improbidade administrativa para afastar o recebimento da petição inicial:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Decisão recorrida que recebeu a petição inicial Atos de improbidade administrativa Ação penal trancada por este E. Tribunal de Justiça lei 14.230/21 que alterou a Lei de Improbidade Administrativa para prever que a absolvição criminal em ação que discute os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata a lei 8.429/92 Artigo 21, § 4º - Rejeição da inicial para a agravante que se impõe Decisão reformada Agravo de instrumento provido. (Agravo de instrumento nº 2171166-37.2021.8.26.0000- 5ª Câmara de Direito Público, Relatora desembargadora Maria Laura Tavares, julgado em 6 de dezembro de 2021).
No julgamento do agravo de instrumento 2029132-39.2021.8.26.0000, que teve como relator designado o desembargador Leonel Costa, a 8ª Câmara de Direito Público aplicou a lei 14.230/21 afastando o decreto de indisponibilidade de bens.
Vários foram os argumentos, pautados nas recentes alterações da lei 8.429/92, como falta de periculum in mora, ausência de individualização de condutas e da medida da indisponibilidade de bens entre os réus, ausência de disposição sobre quais bens poderiam ou não ser bloqueados e qual deveria ser a ordem, bem como pela impossibilidade de o decreto de indisponibilidade abranger a multa civil.
Embora extenso, vale a pena reproduzir parte do referido julgado:
NOVA LEGISLAÇÃO IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. Necessário ressaltar a assunção da lei 14.230, de 25/10/2021, a qual alterou substancialmente a lei 8.429/92, que dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, entrando em vigor na data de sua publicação, conforme descrito em seu art. 5º. INDISPONIBILIDADE DE BENS TUTELA DE URGÊNCIA DEMONSTRAÇÃO DO FUMUS BONI IURIS E DO PERICULUM IN MORA. A novel legislação abandonou a jurisprudência, outrora veiculada pelo C. STJ, a qual tratava a medida de indisponibilidade de bens como tutela da evidência ao dispensar a prova da urgência A nova lei deixa explícito que para que seja decretada a medida de indisponibilidade de bens deve haver a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução Inteligência do art. 16, § 3º, da LIA Inclusive, o § 8º, do mesmo dispositivo, aponta que deve ser aplicada à medida de indisponibilidade de bens, no que couber, a disciplina da tutela provisória de urgência Assim, é indispensável para que haja o bloqueio de bens regulado pela lei 8.429/92 (LIA) a configuração não somente do fumus boni iuris, mas também do periculum in mora.
AUSÊNCIA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES PARA DECRETAÇÃO DA MEDIDA DE INDISPONIBILIDADE DE BENS. Conforme se observa da exordial, o MP não narra a existência de nenhuma circunstância concreta que configure fumus boni iuris, tampouco periculum in mora aptos a autorizar a decretação da medida de indisponibilidade de bens A alegada simulação de procedimento licitatório não está denotada por nenhum elemento probatório, havendo tão somente declarações prestadas por pessoas em sede de inquérito civil, as quais possuem interesse no desfecho da causa, uma vez que também são rés Assim, a medida de indisponibilidade de bens decretada não pode subsistir. MEDIDA DE INDISPONIBILIDADE DE BENS GENÉRICA. Não houve na decisão individualização da conduta dos réus para consequente individualização da medida de indisponibilidade, o que implicou em determinação de medida de bloqueio de bens genérica Ora, trata-se de mais um indício de que não há nos autos elementos suficientes a comprovarem o fumus boni iuris acerca dos alegados atos de improbidade administrativa apurados Desta feita, trata-se de vício que corrobora a não pode subsistência da medida de bloqueio de bens. BENS A SEREM BLOQUEADOS. Não houve na decretação da medida de indisponibilidade qualquer disposição acerca de quais bens poderiam ser bloqueados ou qual a ordem deveria ser seguida Inteligência dos §§ 11, 12, 13 e 14, do art. 16, da LIA. SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA DE INDISPONIBILIDADE DE BENS. Não foi possibilitado ao réu a fixação de outras modalidades que garantam eventual ressarcimento ao erário, mas causem ao alegado devedor o menor prejuízo Inteligência do art. 16, § 6º, da LIA. MULTA CIVIL Impossibilidade de englobar a multa civil na quantia a ser bloqueada O art. 16, § 10 vedou que a medida de indisponibilidade recaia sobre valor a título de multa a ser eventualmente aplicada. Necessário acolhimento ao recurso para levantar a medida de indisponibilidade determinado pelo juízo a quo, para assim obedecer aos dispositivos da nova lei 14.230, de 25/10/2021, a qual alterou substancialmente a lei 8.429/92 (LIA) Decisão reformada. Recurso provido. (Agravo de instrumento nº 2029132-39.2021.8.26.0000,- 8ª Câmara de Direito Público, Relator designado desembargador Leonel Costa, julgado em 24 de novembro de 2021).
Em 10 de novembro de 2021, também aplicando a retroatividade de norma mais benéfica, a 9ª Câmara de Direito Público, no julgamento da apelação cível 1001594-31.2019.8.26.0369, sob a relatoria do desembargador Oswaldo Luiz Palu acompanhado pelos desembargadores Moreira de Carvalho e Carlos Eduardo Pachi (votação unânime), em razão da ausência de dolo, afastou o ato de improbidade administrativa do art. 10:
Violação ao artigo 10, inciso X, da lei 8.429/92. Ato de improbidade administrativa caracterizado de forma culposa. Redação originária. 7. Superveniência da lei 14.203/21 que, em seu artigo 1º, §4º estabelece ao sistema de improbidade a aplicação dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador. Retroatividade da norma mais benéfica, por disposição específica da mesma (art. 1.º §4.º). Supressão das modalidades culposas. Atos de improbidade administrativa somente dolosos, não verificados na espécie. Ausência de má-fé no trato com o dinheiro público ou obtenção de vantagem. Negligência durante a gestão. 8. Sentença reformada. Decreto de improcedência da ação. Recurso provido. (Apelação cível nº 1001594-31.2019.8.26.0369- 9ª Câmara de Direito Público, Relator desembargador Oswaldo Luiz Palu, julgado em 10 de novembro de 2021).
Idêntico entendimento foi aplicado pela 10ª Câmara de Direito Público, ao reconhecer a aplicação retroativa da lei 14.230/21, por seu caráter sancionatório e benéfico ao réu, afastando a configuração do ato de improbidade por falta de prova do elemento subjetivo dolo.
Em votação unânime, o recurso do ministério Público foi desprovido, tendo participando do julgamento os desembargadores Teresa Ramos Marques, Antônio Carlos Villen e Paulo Galizia:
Observe-se, por fim, que não há prova de dolo, elemento subjetivo essencial para a configuração da improbidade administrativa, conforme dispõe a lei 8.429/92, com a redação dada pela lei 14.230/21, que comporta aplicação retroativa por seu caráter sancionatório e por beneficiar o réu. (Apelação cível 1009601-46.2019.8.26.0099- 10ª Câmara de Direito Público, Relatora desembargadora Teresa Ramos Marques, julgado em 16 de novembro de 2021).
Em relação às sanções aplicáveis, a 12ª Câmara de Direito Público desproveu um recurso de forma unânime, o qual pretendia a redução de uma multa fixada em 3 (três) vezes o valor do dano, no mínimo previso no art. 12, III, da lei 8.429/92.
O argumento do colegiado foi que, a reforma da Lei de Improbidade, no ponto da multa do art. 12, III, com redação dada pela lei 14.230/21, estabeleceu o máximo ada pena em 24 vezes a remuneração, de modo que o parâmetro fixado em primeiro grau foi bem inferior à previsão legal atual.
Nova redação desse art. 12, inc. III, dada pela lei 12.430, de 25/10/2021, dispõe sobre multa de até 24 (vinte e quatro) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente. No caso dos autos, a multa aplicada, de 3 (três) o valor do dano, é claramente diminuta em relação ao máximo previsto em lei, de 24 vezes a remuneração da apelante. Portanto, não há por que reduzir, muito menos excluir a multa civil, que não contém exagero nem destoa da lei de regência: lei 8.429/92, art. 12, inc. III, na redação dada pela lei 14.230/21. (Apelação cível 1002866-09.2018.8.26.0462- 12ª Câmara de Direito Público, Relator desembargador J. M Ribeiro de Paula, julgado em 22 de novembro de 2021).
Pelos julgados acima pode-se ver que há uma observância das regras do direito administrativo sancionador, possibilitando que a lei posterior mais benéfica retroaja para beneficiar os réus em ação de improbidade administrativa.
Ainda que haja julgados em sentido diverso no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, os casos aqui retratados perfilam com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (Recurso em Mandado de Segurança 37031/SP) segundo o qual o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, do art. 5º, XL, da Constituição da Federal, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador.
Diego da Mota Borges
Mestrando em Desenvolvimento Regional pelo Centro Universitário Municipal de Franca Uni-Facef. Tem experiência na área do Direito Público, com ênfase em Direito Penal Econômico e Ações de Improbidade Administrativa. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo FDRP- USP (2015) e em Direito Penal Econômico Aplicado: Teoria e Prática pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas (2021). Graduado em Direito pela Faculdade Dr. Francisco Maeda - Fafram (2012). Advogado no escritório Moisés, Volpe e Del Bianco Sociedade de Advogados.