Lei do Superendividamento: questões práticas no procedimento judicial de repactuação das dívidas
Diversas questões práticas podem ser suscitadas a respeito do conjunto normativo que se extrai do texto da novel lei, especialmente em relação à sua parte mais impressiva: o procedimento judicial de repactuação das dívidas, inserido nos arts. 104-A e 104-B do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
segunda-feira, 6 de dezembro de 2021
Atualizado às 15:40
Resumo
1. A competência para o processo judicial de repactuação das dívidas do consumidor superendividado é da justiça comum mesmo quando, entre os credores, houver empresa pública federal (item 3).
2. É incompatível com o procedimento dos Juizados Especiais o processo de repactuação das dívidas do consumidor (item 4).
3. Dívidas perante o Poder Público não são alcançadas pelo procedimento judicial de repactuação das dívidas do consumidor (item 5).
4. Na fixação das parcelas do plano judicial compulsório, o juiz deve levar em conta a capacidade financeira futura do consumidor. No caso de consumidor assalariado, convém a fixação das parcelas em percentual do salário (item 6).
5. Após 5 anos do plano judicial compulsório, há a extinção de qualquer saldo devedor remanescente, independentemente de revisão posterior (itens 7, 8 e 9).
6. É cabível ação revisional no caso de mudança posterior da capacidade financeira do consumidor no caso de plano judicial compulsório (itens 8 e 9).
7. No caso de acordo entre o consumidor superendividado e os credores, a ação revisional é cabível no caso de empobrecimento posterior do consumidor, mas - salvo pacto expresso em contrário - é vedada no caso de enriquecimento superveniente (item 10).
1. Introdução
Quando da entrada em vigor da Lei do Superendividamento (lei 14.181/21), publicamos artigo comentando cada um dos dispositivos e apresentando os fundamentos teóricos e o contexto histórico. Reportamos o(a) amigo(a) leitor(a) ao referido artigo para aprofundamento1.
Diversas questões práticas, porém, podem ser suscitadas a respeito do conjunto normativo que se extrai do texto da novel lei, especialmente em relação à sua parte mais impressiva: o procedimento judicial de repactuação das dívidas, inserido nos arts. 104-A e 104-B do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Focaremos, neste artigo, algumas questões práticas nesse procedimento.
2. Síntese do procedimento
O procedimento judicial de repactuação das dívidas é a via pela qual o devedor superendividado busca uma nova chance, um fresh start. Esse procedimento divide-se em duas fases:
(1) a fase conciliatória, prevista no art. 104-A do CDC; e
(2) a fase da repactuação judicial compulsória, previsto no art. 104-B do CDC.
O procedimento tem início com uma petição inicial por meio da qual o devedor demonstra que atende aos requisitos legais para configuração da sua situação jurídica de superenvidado, abrindo, com isso, espaço para a obtenção dos direitos à conciliação e à repactuação judicial compulsória. Os requisitos são os seguintes:
a) a incapacidade financeira de garantir o mínimo existencial (art. 6º, XII, 54-A, § 1º, CDC);
b) a ausência de má-fé ou de fraude na obtenção das dívidas (art. 54-A, § 3º, e art. 104-A, § 1º, CDC), observado que esses conceitos devem ser interpretados restritiva e teleologicamente, nos moldes do que defendemos em artigo anterior2;
c) a desvinculação entre as dívidas e a aquisição de produtos ou de serviços de luxo (art. 54-A, § 3º, CDC3);
d) a não caracterização das dívidas sub oculi nas seguintes exceções: crédito com garantia real, crédito de financiamento imobiliário e crédito rural (art. 54-A, § 1º, do CDC; e
e) a apresentação de proposta de plano de pagamento (art. 104-A, caput, CDC).
Para tanto, o consumidor deverá listar suas dívidas, com a indicação dos valores atualizados (se possível), explicitar a origem, expor suas fontes de renda e demonstrar a ameaça ao seu mínimo existencial.
No polo passivo, o consumidor incluirá todos os credores cujos créditos serão objeto de conciliação ou repactuação.
Não havendo acordo na fase conciliatória e após manifestação dos credores, caberá ao juiz impor um plano judicial compulsório de pagamento, na forma do art. 104-B4.
Exposto o procedimento, passamos a tratar de questões práticas.
1 GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável. Disponível aqui. Publicado em julho de 2021. Recomendamos também: MIRAGEM, Bruno, A Lei do Crédito Responsável Altera o Código de Defesa do Consumidor (Migalhas Contratuais, publicado em julho de 2021, disponível aqui).
2 "Como já dito, o princípio do crédito responsável exige do devedor um comportamento prudente e em consonância com a boa-fé objetiva ao assumir dívidas para evitar futura inadimplência.
Para tal efeito, a avaliação do que seja boa-fé não é singela. O mero fato de um devedor ter contraído uma dívida além de sua capacidade de pagamento não pode ser considerado uma conduta de má-fé.
O fato de o consumidor haver contraído dívida em situação de vulnerabilidade econômica não significa, por óbvio, de per si, haver atuado em violação à boa-fé.
Contrariamente, se o devedor efetivamente agiu (dolosamente) para praticar um golpe, o Direito não deve amparar esse tipo de comportamento.
Tudo dependerá da apurada análise do caso concreto." (Gagliano e Oliveira, op. cit.)
3 "Vigora no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da proteção simplificada do luxo 8 , segundo o qual o Direito protege situações de luxo sem o mesmo prestígio de situações essenciais ou úteis. Esse conceito está atrelado ao conceito de paradigma da essencialidade, revelado pela Professora Teresa Negreiros. Segundo a jurista carioca, os direitos devem ser classificados quanto à essencialidade em direitos essenciais, direitos úteis e direitos supérfluos. Quanto menor for o grau de essencialidade do direito, menor deve ser a intervenção do Direito.
Esse princípio guia também a proteção dada aos casos de superendividamento. O intervencionismo estatal em favor de quem está em situação de superendividamento não deve alcançar casos oriundos de aquisição de produtos de luxo de alto valor, mesmo no caso de consumo. Quem, por exemplo, endivida-se por adquirir um veículo luxuoso de altíssimo valor não pode, posteriormente, invocar as ferramentas interventivas da Lei do Superendividamento. Sobram-lhe, apenas, as proteções gerais do Direito, sem prestígios interventivos. A própria Lei de Superendividamento é expressa nesse sentido (art. 54-A, § 3º, CDC)." (Gagliano e Oliveira, op. cit.)
4 Sobre o tema, escrevemos:
Vale salientar: frustrado o "processo de repactuação de di'vidas" (art. 104-A), instaura-se o "processo por superendividamento para revisa~o e integrac¸a~o dos contratos e repactuac¸a~o das di'vidas remanescentes" (art. 104-B), caso em que será apresentado um "plano judicial compulso'rio".
Apesar de os referidos preceitos fazerem menção a "processos", parece-nos mais adequado que há apenas um processo, com duas fases procedimentais: uma de "repactuac¸a~o de di'vidas" e outra "de revisa~o e integrac¸a~o dos contratos e repactuac¸a~o das di'vidas remanescentes", da qual resultará um plano judicial compulsório. Essa última iniciar-se-á com mera petição do consumidor no bojo do feito após a frustração, total ou parcial, das tentativas de autocomposição. O próprio caput do art. 104-B do CDC dá suporte a essa interpretação, pois sua redação dá noção da existência de uma linha de continuidade processual.
O processo por superendividamento será instaurado a pedido do consumidor, ou seja, não há espaço legal para a atuação judicial de ofício. As peculiaridades de todo esse procedimento, que envolve, inclusive, vetores metajurídicos (carga emocional derivada do strepitus fori, o abalo psicológico vivenciado pelo consumidor superendividado, os complexos aspectos econômicos em jogo) recomendam, em nosso sentir, que as respectivas Leis de Organização Judiciária Estaduais criem unidades especializadas na matéria atinente ao superendividamento. Sem dúvida, é a melhor solução." (Gagliano e Oliveira, 2021)
Pablo Stolze Gagliano
Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Coautor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).