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Casamento às cegas: vale ou não?

O programa a todo instante busca responder se "amor às cegas dá casamento?". Bom, juridicamente, não. Quem sabe uma união estável?

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Atualizado em 2 de dezembro de 2021 09:40

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Aroma de rosas no ar. Um tapete vermelho que se estende por todo o salão florido e repleto de convidados - familiares, amigos, e até mesmo o tio do pavê. O noivo no altar e o frio na barriga gerado pelo suspense musical das primeiras notas da marcha nupcial. tudo isso após apenas um mês de amor, sem a certeza do "sim" e validado pela Netflix. É natural imaginar que o telespectador do recém lançado reality show "Casamento às cegas: Brasil", tenha, além de se divertido com a produção, refletido com a questão: o amor é cego? Bom, se é cego, não sabemos, mas podemos discutir quanto à validade jurídica daquilo que nos foi apresentado na telinha. Será que realmente existiram casamentos no final da temporada? Mesmo com o "sim" no altar, será que os noivos saíram de lá como cônjuges?

Engana-se quem supõe que basta um par de noivos e outro de "sins" no altar para se casar. Existe uma série de requisitos que, acreditem ou não, já deram motivos para a anulação de muitos casórios por aí. Por exemplo, você sabia que um casamento pode ser anulado por ter sido realizado de portas fechadas? Pois é, esse é o momento em que você volta lá nos episódios 9 e 10 do programa para verificar se é o caso daqueles pombinhos e já te adiantamos: é sim! Ou, pelo menos, daqueles em que foi possível enxergar a porta. Isso se deve em razão do art. 1.534 do Código Civil (CC), que diz: 

"A solenidade realizar-se-á na sede do cartório, com toda publicidade, a portas abertas, presentes pelo menos duas testemunhas, parentes ou não dos contraentes, ou, querendo as partes e consentindo a autoridade celebrante, noutro edifício público ou particular." (grifo nosso)

Por mais legalista e anacrônica que pareça essa leitura fria e ao pé da letra da lei, essa regra está calcada na ideia de publicidade do casamento, visando a possibilitar a manifestação de qualquer pessoa que tenha ciência de algum impedimento à sua celebração. É com base nessa mesma ideia da publicidade que muitas outras causas de nulidade (art. 1.548 do CC) ou anulabilidade (art. 1.550 do CC) de casamento terão sua gênese.

Antes de se casar, os noivos precisam entrar com um processo de habilitação de casamento no qual são avaliados todos os requisitos para a celebração do casamento. Não cabe a nós aqui esmiuçar todo o trâmite desse processo, mas o leitor poderá se inteirar dele com a leitura dos arts. 1.525 a 1.532 do CC. O que importa abordar aqui é que, nesse procedimento, a autoridade competente irá averiguar se ambos os noivos possuem capacidade legal para o casamento (art. 1.517 a 1.520 do CC), bem como se não se enquadram nas causas de impedimento (art. 1.521 do CC) ou de suspensividade (art. 1.523 do CC) do casamento. Apenas a título de esclarecimento e curiosidade ao leitor, as causas de suspensão do casamento implicam um regime diferenciado de bens, qual seja, o da separação legal de bens, logo, a despeito de aparentemente "suspenderem" o casamento, isso é uma inverdade, na medida em que apenas ditam um regime específico de bens art. 1.641, I, do CC.

Assim, com a verificação da ausência de fatos impeditivos, é extraído o edital, conforme o art. 1.527 do CC, que será disponibilizado publicamente nos cartórios do domicílio em que os nubentes residirem, pelo período de 15 dias, além da publicação na imprensa local. São os chamados "proclamas", momento em que é facultada ao público a oposição de quaisquer impedimentos ao casamento. 

Feitas essas explicações preliminares e voltando ao programa, é altamente questionável se, durante o curto período de que dispunham os participantes para se conhecerem e se prepararem para o casamento, foi realizado o processo de habilitação descrito acima e, ainda que sim, se houve tempo para correr o prazo dos proclamas - apesar de o decurso deste poder ser dispensado pelo juiz, segundo o enunciado 513 do Conselho da Justiça Federal, interpretando ao art. 1.527, p.u., do CC. Ora, é mesmo incrível, no sentido de não crível, que tal tenha sido feito. A probabilidade é alta de que o programa não tenha tomado qualquer tipo de providência no sentido de conceder validade ao casamento.

Um forte indício no sentido de nosso raciocínio dá-se quando, durante as cerimônias de casamento do programa, o celebrante anuncia que esta é a "celebração social do casamento". Ora, celebração social de casamento não é nem casamento civil, nem casamento religioso. Aliás, para esse último ter efeito de civil deve, nos termos da legislação, seguir os mesmos requisitos preconizados para o casamento civil (art. 1.515 do CC). 

Ainda na questão da celebração do casamento religioso com efeitos de civil, possibilidade prevista na Constituição Cidadã de 1988, temos que a autoridade celebrante deverá ser do culto professado pelos nubentes, ou pelo menos de um destes. Ora, o que se vê é que os nubentes possuem as mais variadas religiões, não sendo crível também que um mesmo celebrante possa ter habilitação religiosa para oficiar em casamentos de matizes religiosas tão distintas.

Outro forte indicativo de que os casamentos são meramente lúdicos é o fato de que é o mesmo celebrante que atua como autoridade celebrante em todos os casamentos. Ora, como visto acima, existe toda uma série de requisitos a ser seguida, sendo que um destes requisitos é a competência da autoridade celebrante do ato. No Brasil, país no qual a competência é dividida territorialmente, não seria crível que todos os nubentes estariam sujeitos à "jurisdição" do mesmo celebrante, ainda mais em, ao assistirem-se os episódios do indigitado programa, verificar-se que os participantes são advindos dos mais longínquos rincões de terrae brasilis.

Tem-se também, se o leitor for apegado à letra fria da lei, uma violação clara ao art. 1.535 do CC, uma vez que o celebrante, ao realizar as cerimônias, jamais falou a fórmula legal preconizada no Diploma Civil. Eis a fórmula que não aparece em nenhum capítulo do show: "De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados."

Uma curiosidade, aproveitando que estamos de picuinha com a cerimônia, a batida frase "fale agora ou cale-se para sempre" é uma meia verdade. Explicamos, a alegação da maioria dos impedimentos ou causas de anulabilidade não preclui ou decai com o aceite dos noivos, mas sim em prazos específicos dispostos pelo legislador. Além disso, o "cale-se para sempre" contém outro equívoco, o de ser uma intervenção oral, uma vez que a maior parte dos óbices ao casamento deve ser oposto de forma escrita e com provas (art. 1.529 do CC).

Há também uma interessante questão no que tange ao fato de os participantes receberem cachês a depender da fase do programa em que estes alcançam, conforme noticiado aqui. Ora, se tal for verdade, o que se tem é um estímulo desmedido aos participantes "darem corda" aos relacionamentos, o que pode acabar induzindo-os a, por exemplo, se casarem apenas para serem melhor remunerados. Pois bem, por certo pode existir aí um vício apontado pelo art. 1.550, III, do CC.

Inclusive, a própria velocidade do programa (30 dias) acaba por, além de tornar questionável um "amor" às cegas, mas talvez, tão somente, uma "paixão", pôr em jogo também a possibilidade de anulação do casamento por erro essencial quanto à pessoa do outro (art. 1.556 do CC). A probabilidade de nesse curto período de tempo os nubentes não terem contato com parte do outro  que julguem essencial  - a ideia de essencialidade aqui claramente refém da subjetividade de cada um -  é imensa. Aliás, o programa a todo o momento estimula os participantes a se "jogarem de cabeça" em um casamento sem conhecer o essencial, o que poderia anular o casamento por vício de vontade, além de, quem sabe, até contradizer a proposta do reality.

É certo que, a despeito do que foi falado acerca do vício essencial nos parágrafos acima, há sempre a possibilidade de convalidação, pelo menos desse vício em específico, com a coabitação. É exatamente nesse sentido que o art. 1.559 do CC, introduzindo o conceito do "aceitou morar com a pessoa mesmo depois de saber dos defeitos, aguente" para o mundo jurídico.

Após toda a explanação acima o leitor pode se indagar: e tem alguma validade ou possibilidade de produção de efeitos reais tal casamento? A resposta, que aparentemente seria um sonoro não, se transmuda rapidamente quando aplicamos uma interpretação mais aprofundada sobre o direito de família.

Primeiro, no que tange aos proclamas, podemos dizer seguramente que a finalidade de dar publicidade do casamento é cumprida com mais efetividade no programa da Netflix do que segundo os ritos jurídicos usuais. Com efeito, quem aqui já leu um edital de proclama alguma vez na vida? Ou melhor, quem aqui já se deslocou até a sede de um cartório para acompanhar na porta deste quais seriam os casais a contraírem matrimônio? Poucos, se é que de fato existe alguém. Agora é inegável que diversas pessoas ao redor do globo todo assistem o indicado programa em questão, ou seja, em termos de publicização, vemos que a ratio da norma foi mais adequadamente cumprida no casamento às cegas, ainda que a posteriori, o que pode gerar algumas complicações para os óbices que devem ser alegados até a data da celebração do casamento.

Outro ponto, se ambos os nubentes acreditarem ter se casado, não vemos óbice para a aplicação da regra maior da boa-fé, no sentido de se dar efeito inter partes até a declaração de nulidade (art. 1.561 do CC). Ou seja, a despeito de inválido, o casamento pode produzir efeitos para os noivos.

Há também a questão da união estável, que, por ser uma situação de fato, prescinde de uma declaração formal de vontade. Nesse sentido, ainda que não consideremos que há ali um casamento, podemos entender o evento e a dinâmica do programa como a construção de uma união estável. A celeuma que se dá nesse ponto seria a superação do requisito da duração, necessário para o reconhecimento da união estável. O que se pergunta é: um mês pode ser considerado suficiente para o preenchimento de tal requisito? Fica a dúvida, pois todos os demais requisitos estão preenchidos, com a externalização de vontade de que a partir de lá querem viver conjuntamente, somado ao fato de que há a continuidade e a publicidade já apontada.

Segundo as poucas declarações oficiais da equipe do programa, podemos entender que os participantes possivelmente chegam a assinar um contrato de união estável (conforme vemos aqui). Nesse sentido, se de fato é assinada a união estável, então teríamos a superação do requisito temporal, uma vez que a vontade supriria esse ponto. Logo, do quanto apontado, teríamos, no máximo, uma união estável às cegas, e não propriamente um casamento.

Independentemente da nomenclatura jurídica, enquanto tais relações não chegam aos Tribunais para terem sua essência analisada, só nos resta continuar assistindo ao show. Você aceita?

Paulo Schwartzman

Paulo Schwartzman

Mestrando em Estudos Brasileiros - IEB-USP. Escritor e estudioso, foca-se na interpretação interdisciplinar dos fatos. Assessor de juiz no TJ/SP. Esp. em Direito Civil. Insta:@opauloschwartzman.

Emily Costa Diniz

Emily Costa Diniz

Bacharelanda em Direito pela Faculdade de Direito da USP e labora como estagiária no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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