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PEC 159/2019: um risco à função jurisdicional

Em regra, o suposto casuísmo legislativo não é elemento judicialmente sindicável.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Atualizado em 2 de dezembro de 2021 10:01

O aventado casuísmo da Proposta de Emenda Constitucional 159/19 (conhecida como PEC da Bengala) não é um argumento de natureza jurídica. Diversas leis ou mesmo Emendas Constitucionais1 já foram aprovadas em momentos históricos que poderiam torna-las dignas do adjetivo casuísta, fato que não as tornou ilegais ou inconstitucionais.

Em regra, o suposto casuísmo legislativo não é elemento judicialmente sindicável. É dizer, não compete ao Poder Judiciário, no controle de constitucionalidade difuso ou concentrado, imiscuir-se nas razões de mérito do legislador.

Na espécie ora em exame o que importa saber, em verdade, é se a proposta submetida ao crivo do Parlamento dispõe das condições jurídicas necessárias para ser votada e, em caso de aprovação, promulgada pelo Presidente da Câmara dos Deputados (vale lembrar que o processo legislativo de emendas constitucionais é encerrado no Congresso Nacional).

No cenário atual, a relatora da referida Proposta na Comissão de Constituição e Justiça - CCJ da Câmara dos Deputados, Deputada Federal Chris Tonietto do PSL/RJ, votou pela admissibilidade do encaminhamento, o qual foi aprovado por 35 votos favoráveis e 24 contrários, em 23/11/2021. O texto está, portanto, apto a ser votado em plenário.

Mas, será que a questão posta à deliberação daquela Casa Legislativa de fato é constitucional?

Uma análise mais vertical do tema conduz à uma resposta negativa. Senão, vejamos.

A Proposta de Emenda Constitucional - PEC em questão altera o art. 40, § 1º, II, da Constituição Federal e revoga a Emenda Constitucional 88/15, (PEC da Bengala), e o art. 100 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para fixar em 70 anos a idade para aposentadoria compulsória dos servidores públicos.

A autora da proposta, Deputada Federal Bia Kicis (PSL/DF), argumenta que "a mencionada elevação de idade para aposentadoria compulsória, além de não proporcionar à administração pública qualquer benefício considerável, revelou-se extremamente prejudicial para a carreira da magistratura, que ficou ainda mais estagnada do que já era".

Pretende-se, desse modo, reestabelecer o texto original da CF/1988 que previa 70 anos como a idade limite para que magistrados e demais servidores públicos permanecessem no exercício de seus cargos.

Porém, em relação aos magistrados há a necessidade de uma interpretação sistemática do texto constitucional para que a PEC em questão com ele se coadune.

Nessa esteira, embora argumente-se que tanto a doutrina quanto a jurisprudência dos Tribunais sejam pacíficas no sentido de não haver direito adquirido a regime jurídico no serviço público, o caso dos magistrados é singular.

Isso porque a questão envolve o exercício da Jurisdição constitucionalmente atribuída aos membros do Poder Judiciário. Não há falar, assim, em mero regime jurídico administrativo, que, na clássica e ainda válida lição de Hely Lopes Meirelles

[...] consubstancia os preceitos legais sobre a acessibilidade aos cargos públicos, a investidura em cargo efetivo (por concurso público) e em comissão, as nomeações para funções de confiança; os deveres e direitos dos servidores; a promoção e respectivos critérios; o sistema remuneratório (subsídios ou remuneração, envolvendo os vencimentos, com as especificações das vantagens de ordem pecuniária, os salários e as reposições pecuniárias); as penalidades e sua aplicação; o processo administrativo; e a aposentadoria.2

O exercício do poder jurisdicional não se enquadra na classificação de regime jurídico administrativo. Tanto é verdade que os juízes são órgãos do Poder Judiciário, conforme a exata dicção do art. 92 da Constituição Federal. Isso não significa que os magistrados gozem de privilégios ou estejam submetidos a regime administrativo ou previdenciário especiais. Não é disso que se trata. Os juízes devem submeter-se às regras funcionais e previdenciárias previstas em lei e na Constituição.

Porém, em se tratando de Emenda Constitucional que verdadeiramente restringe o exercício do Poder Jurisdicional, na medida em que encerra a jurisdição de magistrados por limite de idade, o que se tem é uma limitação dos órgãos de um dos Poderes da República, ainda que de modo temporário.

Não se trata de mera expectativa de direito funcional, mas de substancial exercício de poder conferido pela Carta Magna aos órgãos de um de seus Poderes.

Nesse contexto, torna-se imprescindível que tal restrição observe, para ser válida, entre outros, os princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade.

Cabe registrar que em recente decisão proferida na ADIn 6.678-MC/DF (ainda pendente de referendo pelo Plenário da Suprema Corte), o eminente ministro Gilmar Ferreira Mendes, ao analisar a compatibilidade dos incisos I e II do art. 12 da lei 8.429/92, com os arts. 15 e 37, § 4º da CF/88, afirmou que no "direito constitucional alemão, outorga-se ao princípio da proporcionalidade ou ao princípio da proibição de excesso qualidade de norma constitucional não escrita".

Para melhor compreensão do argumento, extraio trecho do voto de Sua Excelência:

O princípio da proibição de excesso, tal como concebido pelo legislador português, afirma Canotilho, 'constitui um limite constitucional à liberdade de conformação do legislador'.

Portanto, a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada, mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade. Essa orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal (Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos (Geeignetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit).

O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. A Corte Constitucional examina se o meio é 'simplesmente inadequado' (schlechthin ungeeignet), 'objetivamente inadequado' (objetktiv ungeeignet), "manifestamente inadequado ou desnecessário' (offenbar ungeeignet oder unnötig), 'fundamentalmente inadequado' (grundsätzlich ungeeignet), ou 'se com sua utilização o resultado pretendido pode ser estimulado" (ob mit seiner Hilfe der gewunschte Erfolg gefördet werden kann).

O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso ao indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos.

Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo almejado puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele a um só tempo adequada e menos onerosa. Ressalte-se que, na prática, adequação e necessidade não têm o mesmo peso ou relevância no juízo de ponderação. Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado.

Pieroth e Schlink ressaltam que a prova da necessidade tem maior relevância do que o teste da adequação. Positivo o teste da necessidade, não há de ser negativo o teste da adequação.

Por outro lado, se o teste quanto à necessidade revelar-se negativo, o resultado positivo do teste de adequação não mais poderá afetar o resultado definitivo ou final. De qualquer forma, um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito). É possível que a própria ordem constitucional forneça um indicador sobre os critérios de avaliação ou de ponderação que devem ser adotados. Pieroth e Schlink advertem, porém, que nem sempre a doutrina e a jurisprudência se contentam com essas indicações fornecidas pela Lei Fundamental, incorrendo no risco ou na tentação de substituir a decisão legislativa pela avaliação subjetiva do juiz.

Tendo em vista esses riscos, procura-se solver a questão com base nos outros elementos do princípio da proporcionalidade, enfatizando-se, especialmente, o significado do subprincípio da necessidade. A proporcionalidade em sentido estrito assumiria, assim, o papel de um controle de sintonia fina (Stimmigkeitskontrolle), indicando a justeza da solução encontrada ou a necessidade de sua revisão". (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional, 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 223/226).

Sob a perspectiva lançada pelo eminente ministro do STF, é possível afirmar que a PEC 159/2019 não encontra ressonância frente ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito, o que acaba por atrair uma inconstitucionalidade material da proposta.

Isso porque a Emenda Constitucional ao encerrar a jurisdição de parte dos órgãos do Poder Judiciário pelo critério da idade enquanto esses estão em pleno funcionamento, limitaria sensivelmente esse Poder da República, em potencial violação ao princípio da harmonia e independência dos Poderes (art. 2º da CF/88).

Perceba-se que o problema se encontra na limitação do poder jurisdicional, o que não ocorreu com a alteração promovida pela Emenda Constitucional 88/2015 que, ao contrário, ampliou a vigência para o exercício desse poder constitucional.

Todavia, em se tratando dos ministros do STF, a questão é mais sensível e acarreta outras implicações de ordem prática e constitucional.

Com efeito, se aprovada hoje, a referida PEC imediatamente inviabilizaria os trabalhos no STF, uma vez que o Tribunal ficaria sem 3 de seus integrantes, considerando que o Senado não realizou a sabatina do nome indicado para ocupar a vaga aberta pelo Excelentíssimo Senhor ministro Marco Aurélio. Assim, a Segunda Turma funcionaria com seu quórum mínimo de três integrantes e a Primeira Turma com 4 membros.

Tendo em vista a relevância e repercussão das questões apreciadas pela Corte, um desfalque desse porte gera inevitáveis prejuízos à prestação jurisdicional.

É de se reconhecer, contudo, que esse fato, embora relevante, não é suficiente para impedir a tramitação da PEC em questão. É preciso, pois, ventilar razões de ordem constitucional para obstar a deliberação da proposta de alteração do texto da Carta Magna.

Assim, em relação aos magistrados do STF, temos um tratamento jurídico constitucional expressamente diferenciado e que não pode, portanto, ser desconsiderado pelo legislador.

É sabido que os ministros do STF estão credenciados pela Carta da República a exercerem nas estritas hipóteses nela previstas o poder político que ordinariamente é conferido aos parlamentares e ao Chefe do Executivo.

Tal situação é observada, por exemplo, quando o Presidente do Supremo Tribunal preside o Senado Federal nos casos de julgamento de impedimento por crimes de responsabilidade previstos nos incisos I e II do art. 52 da Constituição. Ou, ainda, na hipótese de impedimento ou vacância dos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, que está descrita no art. 80 da CF/88.

Aliás, justamente por estarem na linha sucessória presidencial, os ministros do STF (Presidente ou Vice no exercício da Presidência) exercem temporariamente o cargo de Presidente da República nas situações de ausência do Vice-Presidente e dos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

E esse exercício temporário de poder se dá de forma efetiva e plena, uma vez que o magistrado do STF terá todas as prerrogativas e competências constitucionais de Chefe do Executivo enquanto no cargo estiver, sem, no entanto, perder a sua jurisdição.

A Constituição, inteligentemente, permite esse acúmulo de poderes temporários exclusivamente aos juízes da Suprema Corte.

Percebe-se, desse modo, que a Constituição de 1988, de forma expressa, conferiu aos ministros do STF (e somente a eles) não apenas o poder jurisdicional, mas, também, um poder político pleno, ainda que exercido exclusivamente em situações especiais.

Por essa razão, uma Proposta de Emenda Constitucional que limite o gozo de tais poderes pelo critério da idade pode, em tese, atingir um ministro da Suprema Corte no pleno exercício de seu poder jurídico-político, resvalando, por consequência, a esfera de independência do Poder Judiciário, em clara afronta ao princípio da independência dos poderes, o que, por óbvio não encontra respaldo na Constituição Federal.

Nessa quadra, uma possível solução para esse uróboro normativo seria a inserção de dispositivo na Proposta de Emenda Constitucional que preserve os atuais ocupantes dos cargos. Assim, estariam atendidos os requisitos-regra em questão (razoabilidade, proporcionalidade em sentido estrito e independência dos Poderes).

Conclui-se, por fim, que embora plenamente possível o trâmite e deliberação de Proposta de Emenda Constitucional nos termos sugeridos na de número 159/2019, é indispensável que o Parlamento realize uma interpretação sistemática de seu conteúdo, de modo a não permitir violações ocultas ao texto constitucional.

Aliás, consoante ensina o Professor e ministro Luís Roberto Barroso, não é possível compreender alguma coisa - seja um texto legal, uma história ou uma composição - sem entender suas partes, assim como não é possível entender as partes de alguma coisa sem a compreensão do todo3.

Essa, sem dúvida, é a hipótese a ser adotada para a PEC 159/2019.

De resto, a competência legislativa é ampla e plena para alterar a Carta da República em busca de seu constante aprimoramento.

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1- Cite-se, por exemplo, a EC 96/2017 que acrescentou o § 7º ao Art. 225 da Constituição Federal.

2- MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª ed. atual. Malheiros Editores. São Paulo. 1999. p. 368.

3- BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Saraiva. São Paulo. p. 140.

Dennys Albuquerque

Dennys Albuquerque

Advogado. Ex-assessor de Ministros do STF. Ex-Secretário Judiciário do STF. Ex-Secretário de Documentação do STF. Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Arquivos. Mestrando em Direito pela UNINOVE.

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