O crescimento pandêmico da fome e a doação de alimentos
Neste dia 30 de novembro de 2021 se comemora o Dia de Doar, criado para promover a cultura de doação, conectando pessoas a causas sociais e ambientais importantes para suas comunidades e para o país.
terça-feira, 30 de novembro de 2021
Atualizado às 08:42
Muito se pensava que a saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU, em 2014, significaria um país a caminho de garantir o direito humano à alimentação adequada, saudável e universal. Esse direito, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, vem acompanhado dos conceitos de soberania alimentar e segurança alimentar e nutricional - noções primeiramente debatidas em 1996 na Cúpula Mundial de Roma sobre o tema e que preveem que todo indivíduo deve ter acesso a alimentos saudáveis, regular e sustentavelmente, de acordo com a identidade de seu povo e região.
Mas essa não tem sido a realidade do Brasil. Com a dramática pandemia de Covid-19, que agravou todas as mazelas sociais que o país enfrenta, somada à gestão de um governo despreocupado com suas camadas mais vulneráveis, houve um aprofundamento dos problemas econômicos e sociais enfrentados pelos brasileiros, dentre os quais, infelizmente, figura a fome.
O tema é de atenção global. De acordo com o relatório da ONU "O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo" publicado em julho desse ano, cerca de um décimo da população mundial enfrentou a fome em 2020 e 2,37 bilhões de pessoas não tiveram acesso à alimentação adequada nesse mesmo período.
Especificamente no Brasil, dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em Contexto de Covid, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, revelam que 52% dos domicílios brasileiros estão em insegurança alimentar leve, moderada ou grave e, desses, 19,1 milhões passam fome. A insegurança alimentar se agrava ainda mais quando se trata de mulheres que lideram famílias, pretas ou pardas e com baixa escolaridade, uma vez que a pandemia afetou de forma mais grave as condições de renda e de trabalho da população mais vulnerável.
Na tentativa de mitigar o cenário de fome e insegurança alimentar que já prometia se agravar desde o início da pandemia, em junho de 2020, foi aprovado em regime de urgência, o Projeto de Lei 1.194/20, que deu origem à Lei Federal 14.016/20 (Lei de Doação de Alimentos). O tema há muito já vinha sendo discutido pelas organizações que atuam como "banco de alimentos". A norma autoriza estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos a doarem os excedentes, que ainda sejam próprios para o consumo humano, isto é, que estejam dentro do prazo de validade e nas condições de conservação especificadas pelo fabricante, quando aplicáveis; não tenham comprometidas sua integridade e a segurança sanitária, mesmo que haja danos à sua embalagem; tenham mantidas suas propriedades nutricionais e a segurança sanitária, ainda que tenham sofrido dano parcial ou apresentem aspecto comercialmente indesejável.
Essa normativa apresenta muitas lacunas em sua redação no que diz respeito aos atores envolvidos nas doações, o que prejudica o atingimento dos objetivos pretendidos por essa legislação. A lei apresenta duas modalidades de doação: a doação direta, realizada diretamente pelo estabelecimento que tem excedentes de alimentos e deve contar com a colaboração do poder público; e a doação intermediada por bancos de alimentos e algumas organizações da sociedade civil. A legislação é pouco clara sobre quais os limites da atuação dos intermediários, mas o entendimento majoritário é de que as intermediárias captam as doações, devendo repassá-las para entidades beneficiárias - instituições públicas ou privadas que atendem diretamente os cidadãos.
Fato é que dentre as inúmeras organizações da sociedade civil que poderiam se engajar como intermediárias apenas são autorizados pela legislação os bancos de alimentos, entidades religiosas e aquelas com certificação de entidades beneficentes de assistência social - "CEBAS", titulação concedida apenas a organizações das áreas de assistência social, saúde ou educação e que atendam aos requisitos da Lei 12.101/2009 e agora do recém aprovado PLP 134/19, que está em fase de sanção presidencial. Esse gargalo da legislação limita errônea e desnecessariamente o amplo leque de entidades que poderia se engajar na captação da doação de alimentos.
Também importante falarmos sobre a segurança sanitária dos alimentos doados. O Convênio ICMS 136/94, mais antigo que a Lei de Doação de Alimentos aqui analisada, trata da isenção de ICMS sobre as saídas, a título gratuito, de produtos alimentícios de estabelecimento varejista com destino à Banco de Alimentos, organizações da sociedade civil, entre outros, destinados a pessoas carentes. Contudo, o mencionado Convênio, ainda vigente e que deveria ser atualizado, é incompatível com os critérios de segurança alimentar dispostos, mesmo que de forma genérica, na Lei de Doação de Alimentos. As saídas de produtos que ficam isentas de ICMS, de acordo com o Convênio, são daqueles alimentos considerados "perdas", isto é, produtos que estiverem com a data de validade vencida, impróprios para comercialização e com a embalagem danificada ou estragada. Condições próprias e seguras para consumo devem ser os principais requisitos a serem observados em uma doação de alimento.
Ainda sobre ICMS, recentemente, o Convênio ICMS 18/03 que dispunha sobre isenção de ICMS nas operações relacionadas ao Programa Fome Zero, foi alterado pelo Convênio ICMS 101/21, com efeitos a partir 1 de setembro de 2021, para as operações realizadas no Programa de Segurança Alimentar e Nutricional. Foi perdida a oportunidade de atualizar o conceito de organizações da sociedade civil e retirar redação antiga que vinculavam as entidades assistenciais serem reconhecidas como de utilidade pública. A lei 91/1935 que instituía a declaração de Utilidade Pública Federal foi revogada desde 2015 pela Lei n° 13.204, no âmbito das discussões do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil.
Ao invés de avançarmos na desburocratização, racionalização de procedimentos administrativos e universalização de medidas para induzir a potente rede socioassistencial existente no país, seguem sendo elaboradas normas equivocadas e que confundem os administrados na sua aplicação. Na prática, as empresas seguem doando para quem querem, sem gozar do benefício da isenção do ICMS, ou seguem com dúvidas quanto às entidades para quem poderia doar.
A Lei de Doação de Alimentos também traz dispositivo importante e que é de difícil execução em razão do contexto político e econômico como a previsão para que o governo federal dê preferência à aquisição de alimentos produzidos pelo Programa de Aquisição de Alimentos, produzidos e comercializados de forma direta por agricultores familiares e pescadores artesanais, para fins de viabilizar as doações a populações carentes. A previsão legal não é coerente com os cortes feitos ao próprio Programa de Aquisição de Alimentos e ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - que culminou na queda de oferta de alimento às famílias brasileiras. - A inconsistência das políticas públicas e regulações para combate aos efeitos sociais da pandemia faz com que testemunhemos cenas trágicas da fome no país noticiadas pelos jornais, agravadas pelos altos índices de desemprego e inflação acumulada em 10,73% nos últimos 12 meses.
É urgente que a população se mobilize para cobrar ações mais efetivas na área da segurança alimentar. Que bom que existem organizações da sociedade civil que não desistem e seguem atuando como intermediárias nessa cadeia alimentar de fazer chegar comida a quem precisa. Doar alimentos e bens de primeira necessidade para pessoas e comunidades carentes ajuda muito, mas não resolve a questão estrutural que está por trás.
Neste dia 30 de novembro de 2021 se comemora o Dia de Doar, criado para promover a cultura de doação, conectando pessoas a causas sociais e ambientais importantes para suas comunidades e para o país. A data surgiu nos Estados Unidos um ano antes de chegar ao Brasil, e já se espalhou formalmente por 55 países. Em inglês a ação tem como nome o "GivingTuesday", que acontece sempre na primeira terça-feira após o Dia de Ação de Graças, o Thanksgiving Day, celebrado em alguns países da América do Norte. Entre as tantas possibilidades de doação, a de alimentos também constitui importante forma de exercício da solidariedade humana. Que possamos ter melhores regulamentos para induzir a apoiar a um ambiente mais favorável às doações, com vistas à formação e consolidação de uma mais ampla cultura de doação no país, diretriz 3 do esforço que vem sendo empreendido pelo Movimento por uma Cultura de Doação já há alguns anos.
Laís de Figueirêdo Lopes
Advogada, Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra, Mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP e Sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Integra o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a Coordenação da Frente Jurídica da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva. Foi Conselheira do Conade - Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência representando o Conselho Federal da OAB, de 2006 a 2011, e Ex-Assessora Especial do Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, de 2011 a 2016. Participou do comitê ad hoc de elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU de 2005 a 2006, e do processo de ratificação no Brasil de 2007 a 2009.
Natalia Toito Galli
Advogada de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.