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Os serviços públicos na Constituição de 1988

Entre a escola francesa e o regime norte-americano das public utilities.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Atualizado às 08:54

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A doutrina francesa do direito administrativo, não obstante as divergências teóricas existentes entre os seus protagonistas1, sempre teve como traço central o reconhecimento dos serviços públicos como categoria jurídica autônoma e evoluiu, nitidamente, no sentido de que a atuação estatal deve dar-se com base em regras e princípios próprios (prerrogativas e privilégios estatais). Deles se serve o Estado para atender ao interesse público. Incide em benefício do Poder Público um direito especial, consubstanciado nas normas privilegiadas de direito público.

É com base nela que se desenvolve e se constrói o direito administrativo brasileiro.2 É corrente na doutrina nacional, desde a lição secular de Temístocles Brandão Cavalcanti, inspirada na "l'Ècole du Service Publique", a afirmação de que, por serem de titularidade estatal, os serviços públicos estariam submetidos a um regime de privilégios derrogatório do direito comum (isto é: o regime jurídico de direito público)3. Todo e qualquer privilégio estatal, desde que voltado para possibilitar ou auxiliar a prestação do serviço público, passa a ser admitido como válido. "A construção intelectual do serviço público", como bem atentaram Floriano Peixoto de Azevedo Marques e Rafael Roque Garofano, "vai saindo da noção de um dever e vai cada vez mais se transformar em uma prerrogativa estatal, um direito do Estado oponível ao prestador (privilégios, exclusividade, prerrogativas da Administração)"4.

Essa orientação, contudo, não mais se sustenta, não guardando respaldo na Carta de 1988.

A regra matriz no campo do direito dos serviços públicos é, induvidosamente, o art. 175 da Constituição. Ali, enfatizou o constituinte que a prestação de serviços públicos pelo Estado, sempre na forma da lei, poderá ser feita diretamente ou por delegação, sob o regime de concessão ou permissão. Significa dizer que, em havendo a efetiva necessidade de prestação de serviços públicos, a atuação estatal deverá ser regulada em lei e poderá ser efetivada diretamente ou por delegação, neste último caso sob o regime de concessão ou permissão, mediante prévio procedimento licitatório.

Não se pode ignorar, nada obstante, que o aludido art. 175 encontra-se inserido no Título VII da Constituição, que trata da "Ordem Econômica e Financeira", mais precisamente em seu Capítulo I, que disciplina os "Princípios Gerais da Atividade Econômica". A parte aqui é o art. 175; o todo é o capítulo que regula a Ordem Econômica. Disso resulta que a adequada compreensão do conceito constitucional de serviço público perpassa, necessariamente, pela interpretação sistemática do conjunto de normas que compõem a Ordem Econômica na Constituição Federal.

Com efeito, em uma inovação sem precedentes na história constitucional brasileira, o constituinte de 1988 erigiu a livre iniciativa ao patamar de fundamento da Ordem Econômica e a princípio fundamental da República Federativa do Brasil (arts. 1º, III, e 170, caput)5. Associado a isso, inseriu o art. 175 no capítulo atinente à Ordem Econômica. Vale dizer: ao mesmo tempo em que reconheceu a existência dos serviços públicos, como categoria autônoma, submetida a um regime jurídico diferenciado, enfatizou que a sua disciplina estaria condicionada à observância dos princípios que regulam a ordem econômica, nomeadamente a livre iniciativa.

Novos ares; novos rumos. Ao menos assim deveria ser. A nova realidade normativa, contudo, foi ignorada pelos administrativistas que integram a corrente doutrinária mais tradicional. Apegam-se a dogmas há muito sedimentados no direito público, sem atentar para as inovações introduzidas na Lei Maior, pelo constituinte de 1988. Leem a Constituição a partir do direito pré-existente; e não o direito pré-existente a partir da Constituição.

Sendo a livre iniciativa fundamento da Ordem Econômica, as normas que disciplinam a intervenção estatal na economia têm natureza excepcional e, como tal, devem ser interpretadas restritivamente6. Por conseguinte, a intromissão estatal no domínio econômico há de ser sempre subsidiária. Possuindo a esfera privada legítimo interesse empresarial, no regime de livre mercado, em prestar o serviço, nada justifica a sua substituição pelo Estado.7

O reconhecimento da existência do princípio da subsidiariedade, como bem enfatiza Jacques Chevalier, conduz ao entendimento de que só será possível enquadrar determinada atividade como serviço público em caso de insuficiência dos mecanismos de mercado ou dos dispositivos de autorregulação social.8 Em havendo interessados dispostos a prestar o serviço na quantidade, preço (modicidade tarifária) e qualidade necessários, o papel reservado ao Estado deve ficar restrito à regulação da atividade, conforme o art. 174 da Carta de 88, de molde a assegurar que a busca legítima pelo lucro se dê em harmonia com os interesses da coletividade. E mesmo a regulação - perceba-se - ficará condicionada à necessidade de tutela de algum interesse de natureza constitucional, como, por exemplo, garantir a isonomia na prestação dos serviços ou ainda, se for o caso, promover a sua universalização.

A Constituição de 88, ainda que nela se possa enxergar evidente influência da Escola Francesa de Serviço Público, aderiu a um modelo misto, fortemente influenciado, também, pelo regime norte-americano das public utilities. Conforme ensina Rafael Carvalho Rezende Oliveira, "a principal distinção entre o serviço público francês e as public utilities encontra-se na titularidade da atividade: enquanto o serviço público é de titularidade do Estado, as public utilities são titularizadas pelos particulares, com limitações (poder de polícia) colocadas pelo Estado"9.

Nos Estados Unidos inexiste a categoria dos serviços públicos. Em função do caráter historicamente mais liberal da ordem econômica norte-americana, a regra lá no domínio econômico sempre foi a livre iniciativa. O exercício de toda e qualquer atividade empresarial, com algumas exceções, é (e sempre foi) livre aos particulares. As public utilities não deixam de ser atividades econômicas de caráter privado. A diferença é que, por força do relevante interesse público nelas existente, submetem-se a pesada regulação estatal e se sujeitam a regulamentações e controles diferenciados.

Nesse sentido, o constituinte de 1988, ao reconhecer que os serviços públicos de que tratam o art. 175 são atividades econômicas e, demais disso, que se encontram subordinados aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, aproximou o conceito de serviço público, no Brasil, do regime estadunidense das public utilities, na linha do que igualmente se deu no âmbito do direito comunitário europeu10. Como consequência, retirou do Estado a exclusividade na prestação do serviço. As regras de competência do art. 21 da Lei Magna, assim, devem ser compreendidas como deveres impostos à União; jamais como direitos ou privilégios estatais. Delas não se pode extrair, per se, a exclusividade na prestação do serviço. Muito ao contrário, a regra é a de que, mesmo na presença do Estado, se existir agente privado interessado em exercer a atividade, com intuito de lucro, poderá fazê-lo, estando o Poder Público, no limite, autorizado a usar da regulação para assegurar que o interesse público, de índole constitucional, seja respeitado.

Como resultado disso, a exclusividade na prestação dos serviços públicos passa a ser a exceção absoluta; e não a regra. Não pode a lei estabelecê-la em favor do Estado11, salvo havendo justificativa regulatória, de alta relevância constitucional, em sentido contrário. Não há mais margem na Carta de 1988 para se preservar a exclusividade ("monopólio") da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos na prestação dos serviços postais de que tratam o art. 9º da lei 6.378/78, como o fez a maioria vencedora do STF no julgamento do ADPF 4612.

Não há mais espaço sob a égide da Constituição de 1988, diferentemente do que assentou o Pretório Excelso no julgamento do RE nº 363.412 AgR/BA13, para que se reconheça, em favor da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária - INFRAERO, regime de exclusividade nos serviços correlatos. É dever estatal, atribuído à União, a prestação dos serviços aeroportuários de que tratam a alínea "c", inciso XII, do art. 21, da Carta de 88. Nada obstante, a competência atribuída ao ente federal não exclui a atuação de eventuais agentes privados que tenham interesse em explorar o setor, com fins empresariais. Caberá à União, se necessário for, para preservar o interesse público envolvido na prestação dos serviços, valer-se das estratégias regulatórias disponíveis.

Em realidade, tanto em um (serviços postais) como no outro caso (serviços aeroportuários), a subtração das referidas atividades do regime de livre mercado só se justifica a partir de uma visão ultrapassada de serviço público, que o vê como um privilégio (verdadeiro direito) e não com um dever estatal.

Isso não significa - perceba-se - que exista um mandamento constitucional proibindo, de antemão e de forma absoluta, que se atribua ao Poder Público a exclusividade na prestação de serviços públicos. Inverte-se a lógica, no entanto. Por se tratar de uma restrição à livre iniciativa, a exclusividade será admitida, apenas, caso exista, para tanto, alguma justificativa regulatória de alta envergadura constitucional. Um exemplo valioso é o do transporte de passageiros por ônibus. A abertura do mercado para a iniciativa privada impactaria radicalmente na mobilidade urbana, tornando caótico o trânsito nos grandes centros urbanos. A única forma de gerir o trânsito, de forma minimamente adequada, em tal hipótese, é estabelecendo a exclusividade, em favor do Poder Público Municipal, na prestação dos serviços de transporte coletivo por ônibus. Pode o ente público, evidentemente, delegar a prestação do serviço aos particulares, mediante concessão ou permissão, sem que isso desnature a exclusividade estabelecida, porque neste caso a prestação dos serviços permanece com o Município.

Essa nova forma de enxergar os serviços públicos, num meio termo entre a escola francesa e o regime das public utilities do direito norte-americano, oferece solução para alguns importantes paradoxos que vigoram na realidade atual do direito regulatório brasileiro. Nada há de inconstitucional, por este entendimento, na regulação do setor portuário, quando se opta por um regime misto, em que os serviços portuários são prestados ora mediante contrato de concessão, ora por mera autorização, conforme estabelece o novo marco regulatório do setor portuário (lei 12.815/1314). O Poder Público tem o dever constitucional de prestar os serviços de natureza portuária, nos termos do art. 21, XII, "d", da Constituição, e o faz por via delegada, mediante concessão. O contrato de concessão, neste caso, vai reger a relação de parceria formada entre o Estado e o particular, conferindo ao agente privado o direito de explorar a infraestrutura já existente no porto organizado, instalada pelo ente estatal. Em paralelo, nada impede que eventuais interessados se proponham a construir novos terminais portuários fora da área do porto organizado, e a prestar os serviços correlatos, com finalidade lucrativa. O exercício da atividade, todavia, dependerá de prévia autorização estatal, na forma do art. 170, p. u., da Lei Maior, de sorte a assegurar que os serviços sejam prestados em consonância com o interesse público. Com isso, cumpre o Estado o dever constitucional de prestar o serviço público de sua competência e, ao mesmo tempo, preserva-se a livre iniciativa e a livre concorrência, não se interditando a atividade à esfera privada.

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1- Sobre o tema, dentre outros: CRETELLA JUNIOR, José. Conceito moderno do serviço público. Revista da Faculdade Direito, Universidade de São Paulo, v. 61, n. 2, 1966.

2- ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Direito dos serviços públicos, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 78.

3- Vide, por todos: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 28ª ed., São Paulo: Malheiros, 2011, p. 695.

4- MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo & GAROFANO, Rafael Roque. Notas sobre o conceito de serviço público e suas configurações na atualidade. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, ano 12, n. 46, jan./jun. 2014, p. 66.

5- É verdade que as constituições pretéritas sempre fizeram alguma referência à liberdade empresarial, mas sempre em caráter secundário. Nunca se deu tanto realce ao princípio da livre iniciativa (SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Uma proposta de releitura da ordem econômica na Constituição de 1988. In: GUERRA, Sergio (org.). Teoria do estado regulador, Curitiba: Juruá, 2015).

6- MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 9ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 313.

7- TORRES, Silvia Faber, O Princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 154.

8- CHEVALIER, Jacques. As novas fronteiras do serviço pu'blico. Interesse Pu'blico, Belo Horizonte, n. 51, ano 10 set/out 2008.

9- OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Os serviços públicos e o Código de Defesa do Consumidor (CDC): limites e possibilidades. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, n. 25, fev/mar/abr, 2011. Disponível aqui. Acesso em: 26.11.2021.

10- Idem.

11- CASSAGNE, Juan Carlos. La intervención administrativa. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994, p. 35.

12- STF, Tribunal Pleno, ADPF 46, Relator Ministro Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão Ministro Eros Grau, julgado em 05/08/2009, DJe de 26/02/2010.

13- STF, Segunda Turma, RE 363412 AgR/BA, Relator Ministro Celso de Mello, julgado em 07/08/2007, DJe de 19/09/2008. Na verdade, a questão em discussão no RE nº 363.412 AgR dizia respeito à imunidade tributária da INFRAERO, por ser empresa estatal prestadora de serviços públicos. A exclusividade na prestação dos serviços aeroportuários está na ratio decidendi, consistindo em um dos fundamentos utilizados pelo STF para reconhecer a imunidade tributária em benefício da estatal.

14- "Art. 1º (...) § 1º A exploração indireta do porto organizado e das instalações portuárias nele localizadas ocorrerá mediante concessão e arrendamento de bem público. § 2o  A exploração indireta das instalações portuárias localizadas fora da área do porto organizado ocorrerá mediante autorização, nos termos desta Lei."

Gustavo da Rocha Schmidt

Gustavo da Rocha Schmidt

Professor da FGV Direito Rio e Presidente do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem.

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