Desmaterialização dos títulos de crédito e o princípio da cartularidade
A desmaterialização dos títulos de crédito por meio de assinaturas eletrônicas ou emissão escritural pode parecer conflitante com o princípio da cartularidade que rege tais títulos de crédito. Entretanto, foi expressamente permitida pela Nova Lei do Agro para vários títulos de crédito, embora já houvesse arcabouço legal no direito brasileiro que admitia as assinaturas eletrônicas em vários instrumentos jurídicos.
quarta-feira, 24 de novembro de 2021
Atualizado às 12:35
O impacto dos avanços da tecnologia no âmbito jurídico é objeto de análise dos juristas já há algum tempo, tendo em vista as consequências práticas do descompasso entre as transformações digitais e as legislações anteriores à era digital. No que diz respeito aos títulos de crédito, instrumentos que ainda desempenham um papel essencial no desenvolvimento da economia moderna através da circulação de riquezas com segurança jurídica, nota-se, atualmente, uma tendência de sua desmaterialização, fenômeno que pode parecer à primeira vista conflitante com a cartularidade, um de seus princípios.
Previsto no artigo 887 do Código Civil, o princípio da cartularidade remete à existência material do título de crédito, consubstanciado na cártula, indispensável ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, havendo, desse modo, um vínculo fundamental entre o documento físico e o seu conteúdo.
O Código Civil prevê, porém, no parágrafo 3º do artigo 889, a possibilidade de emissão do título de crédito eletrônico a partir de caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observada a presença de certos requisitos mínimos, tais como data de emissão, indicação precisa dos direitos conferidos pelo título e assinatura do emitente.
Observa-se um fértil campo para o surgimento de questionamentos no debate jurídico doutrinário referentes à segurança jurídica dos títulos de crédito emitidos e assinados eletronicamente em virtude do princípio da cartularidade. A propósito, esse debate se acentuou no atual momento de crise sanitária e distanciamento social, que impulsionaram a utilização das assinaturas eletrônicas nos mais diversos instrumentos jurídicos.
No plano do agronegócio, importantes alterações na emissão de títulos de crédito foram introduzidas pela Nova Lei do Agro (lei 13.986/20). Ela permitiu expressamente, por exemplo, a assinatura sob a forma eletrônica da Cédula de Produto Rural (CPR, física ou com liquidação financeira), da Cédula de Crédito Bancário (CCB), da Cédula Rural Hipotecária, da Cédula Rural Pignoratícia, da Cédula Rural Hipotecária e Pignoratícia e da Nota Promissória Rural (NPR), desde que garantida a identificação inequívoca do signatário.
A Nova Lei do Agro também admitiu expressamente a emissão no formato escritural do Certificado de Depósito Agropecuário e Warrant Agropecuário (CDA WA), da CPR, da CCB, da Cédula de Crédito Rural (CCR), da Cédula Imobiliária Rural (CIR), do Certificado de Depósito Bancário (CDB), da NPR, do Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA), da Letra de Crédito do Agronegócio (LCA), da Letra de Crédito Imobiliário (LCI), dos Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), da Cédula de Crédito Imobiliário (CCI) e da Duplicata Rural. A ampliação do leque de títulos de crédito que podem ser emitidos sob a forma escritural e, portanto, passíveis de registro em sistema eletrônico de escrituração, se relaciona ao estímulo do ordenamento jurídico quanto à utilização de recursos digitais para o tratamento desses instrumentos jurídicos, estímulo que foi acentuado durante a pandemia de COVID-19.
Indaga-se, assim, o que ocorre com o princípio da cartularidade sob a ótica da desmaterialização de vários títulos de crédito, que se tornou oficial com a Nova Lei do Agro.
Convém considerar para esta discussão a importante crítica elaborada por Cesare Vivante em relação à tradicional percepção que se tem da cartularidade: de acordo com o doutrinador, o direito não estaria incorporado no título de crédito e estritamente condicionado à essa materialização, mas apenas mencionado no documento.1
Adicionalmente, o princípio da especialidade, a partir do qual a norma especial afasta a incidência da norma geral (lex specialis derogat legi generali), se mostra imprescindível para a presente discussão, na medida em que as alterações promovidas pela Nova Lei do Agro foram incorporadas nos textos das legislações especiais dos títulos de crédito. Desse modo, se a lei especial que regula o título de crédito prevê que o mesmo pode ser assinado eletronicamente ou desmaterializado via emissão escritural, apenas formalizou-se o que o arcabouço legal brasileiro já permitia em termos de assinaturas eletrônicas.
Nesse sentido, o ordenamento jurídico brasileiro possui diversos exemplos de leis especiais que já permitiam mesmo antes da Nova Lei do Agro o uso das assinaturas eletrônicas por entes públicos e privados, evidenciando a sua ampla utilização em vários instrumentos jurídicos.
Em 24 de agosto de 2001, foi reeditada a Medida Provisória nº 2.200-2, que instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), garantindo a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica que utilizem certificados digitais padrão ICP-Brasil, os quais presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, e, ainda, considerou válidas as assinaturas eletrônicas que comprovem a integridade e autoria por certificados não emitidos no padrão ICP-Brasil, desde que admitidos como válidos pelas partes.
Cumpre mencionar, também, a lei 12.682/12, que dispõe sobre a elaboração e o arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos. Alterada pela Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/19), essa legislação autoriza, no caput de seu artigo 2º-A - regulamentado, por sua vez, pelo Decreto 10.278/20 -, "o armazenamento, em meio eletrônico, óptico ou equivalente, de documentos públicos ou privados, compostos por dados ou por imagens", observado o disposto nela, nas legislações específicas e no regulamento. Ela garante, ainda, a validade do documento digital e de sua reprodução como meio probatório, equiparando-se ao documento original, desde que realizada de acordo com seus dispositivos (parágrafo 2º do artigo 2º-A).
Outra inclusão relevante feita pela Lei da Liberdade Econômica na lei 12.682/12 consiste na exigência da utilização de certificação digital no padrão ICP-Brasil para a garantia de preservação da integridade, da autenticidade e da confidencialidade de documentos públicos (parágrafo 8º do artigo 2º-A). Nesse mesmo sentido, alterada pela lei 14.129/21, que dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública, a lei 12.682/12 prevê que o processo de digitalização deve ser realizado de forma a manter a integridade, a autenticidade e, se necessário, a confidencialidade do documento digital, com o emprego de assinatura eletrônica (artigo 3º).
Mais uma norma relevante para o regime da referida assinatura eletrônica é a lei 14.063/20, que dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, em atos de pessoas jurídicas e em questões de saúde e sobre as licenças de softwares desenvolvidos por entes públicos.
A referida lei foi responsável por ampliar a relação de documentos públicos que podem ser validados digitalmente, sem com isso perder o valor legal da assinatura tradicional (de próprio punho), considerando três tipos de assinatura eletrônica que variam no nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular de acordo com a sua classificação: a assinatura simples, a assinatura avançada (utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica) e assinatura qualificada (utiliza certificação digital emitida pela ICP-Brasil).
Ademais, o que se entende por bem destacar a partir da lei 14.063/20 é a admissão da tese, que predomina no âmbito do direito civil e do direito empresarial, de que prevalece também no contexto das assinaturas eletrônicas de documentos privados, no que diz respeito à verificação da integridade desse documento, aquilo que for previamente admitido pelas partes como válido.
É evidente, portanto, que existe a viabilidade jurídica de assinatura eletrônica e desmaterialização escritural para os títulos de crédito, por amparo de legislações especiais diversas que compõem o ordenamento jurídico brasileiro já há considerável tempo, conforme analisado.
Ainda assim, é importante se ater às legislações especiais responsáveis pela instituição de cada um dos títulos de crédito, dado o atual ímpeto do legislador quanto à inclusão nos textos normativos de dispositivos que regulem a assinatura eletrônicas e desmaterialização desses instrumentos jurídicos, como evidencia a Nova Lei do Agro e as demais normas que foram editadas durante a pandemia. Porém, é importante ressaltar que quaisquer instrumentos jurídicos como por exemplo títulos de crédito com garantias cedularmente constituídas, que dependem de registro perante os cartórios, exigirão assinaturas qualificadas com certificação digital emitida pela ICP-Brasil, o que ainda pode representar um obstáculo à ampla utilização de assinaturas eletrônicas no agronegócio brasileiro.
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1- DE LUCCA, N.; DEZEM, R. M. M. Títulos de crédito. Enciclopédia Jurídica da PUCSP, Tomo Direito Comercial, Edição 1, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 03 de novembro de 2021.
Juliana Galante
Advogada do Galante Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Bancário, Financeiro e Agronegócio. Possui mestrado (LLM - Master of Laws) em Direito Financeiro e Bancário pela London School of Economics and Political Science, Londres, UK (2004). É formada em Administração pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo - FGV/SP (1995) e em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP (2000).