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O erro do médico no sexo do feto e suas consequências jurídicas

O texto descreve a situação de erro médico do diagnóstico do sexo do bebê em exame de ultrassom, e a possível indenização aos pais pelos danos causados decorrentes da informação incorreta.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Atualizado às 10:58

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Eis que uma mulher grávida segue a recomendação médica de realizar o exame de ultrassom durante o pré-natal, conforme a boa prática médica determina. Esse ultrassom tem o propósito de analisar a morfologia do feto, suas características e seu crescimento. Durante o exame, é comum o médico relatar à paciente qual o sexo do nascituro, muitas vezes diante de ansiosas súplicas, recheadas de curiosidade.

Nesse contexto, caso o médico consiga identificar o sexo do feto, ele prontamente satisfaz a curiosidade da genitora, que invariavelmente se emociona com a notícia. Ato contínuo, diante de lágrimas e soluços, é comum o nome ser escolhido ali mesmo e algumas fotos e vídeos serem registrados. O médico entrega o resultado do exame, que é guardado com carinho, como um marco importante. Tudo são flores nesse momento de sublime bonança!

Munida da informação dada pelo médico acerca do sexo do nascituro, os genitores começam a longa peregrinação por shoppings, lojas e sites de comércio eletrônico em busca dos itens que guarnecerão os aposentos do futuro bebê, suas roupinhas, sapatinhos de lã, além de diversos outros mimos ornamentais, e naturalmente fazendo o registro nas redes sociais de cada aspecto dessas escolhas, com cada curtida e comentário sendo contabilizado.

Ainda nesse clima de entusiasmo, seguindo a última moda, a revelação do sexo do bebê para os amigos e familiares virou motivo de uma festa própria, em que se cria um suspense durante o evento, até a apoteótica revelação, cheia de brilho, luzes, com a cor azul representando um menino e a cor rosa uma menina, que futuramente comporá um membro naquela família. Ainda nesse momento glorioso, o nome da criança é revelado e festejado pelos ali presentes. Mais uma vez, tudo isso deve ser ritualisticamente fotografado, filmado e postado em redes sociais, em que os genitores aguardam com indistinta apreensão a validação através de comentários e curtidas de uma miríade de pessoas, muitas vezes de completos estranhos, sem um genuíno interesse no evento.

Então chega o grande dia, em que contrações do parto e a ida às pressas ao hospital é acompanhada pela procissão de parentes e amigos que vigilam de perto a situação. Depois da habitual ansiedade, todos gozam de alegria com as notícias do parto bem-sucedido. Entretanto, há uma surpresa nessa situação, o bebê nasceu com o sexo diferente do aventado pelos pais. O silêncio momentâneo, com mãos tapando a boca e olhares brevemente arregalados buscando respostas em outros olhares na mesma situação, são sinal de que algo gravemente errado aconteceu.

Os pais do recém-nascido, ainda um pouco atordoados com essa situação delicada, procuram focar no que há de bom naquele momento, que é o nascimento de uma criança saudável. Após um breve hiato, em que os pais voltam para casa depois da efusiva alta hospitalar, há um ressentimento crescente contra o médico que diagnosticou erroneamente o sexo do bebê, uma semente da cólera recém-plantada já irrompe raízes nos corações desses pais.

Com um breve passar do tempo, e diante de todo um investimento emocional e material perdidos no enxoval do bebê, frases como "médico incompetente" e "fui enganado" ecoam na mente dos pais. Essa mistura de emoções cria um ambiente favorável para a tempestade perfeita, em que vendavais de xingamentos abruptos, cobertos pela névoa da mais densa ira, cortam o ar, e entre as nuvens de pensamentos maledicentes, surgem pedras de granizo que são lançadas contra o médico. A palavra "justiça" é exclamada para a condenação desse profissional da saúde. Tudo são raios nesse momento de tempestade.

No dia seguinte, ainda encharcados de indignação, os pais se dirigem a um advogado, para que ele cuide da situação, e processe o médico pelo ato errôneo, requerendo perdas e danos por todo o prejuízo patrimonial e extrapatrimonial experimentados naquela situação amarga e imperdoável.

Diante de um caso desse, o advogado pode tentar um acordo extrajudicial com o médico, negociando o valor da reparação dos danos experimentados pelos clientes, e caso tal acordo não aconteça, o processo judicial será o caminho a ser tomado.

Nessa situação descrita, o advogado deve se atentar primeiramente na relação entre a paciente e o médico, que é consumerista. Nesse caso, é muito importante que o médico se atente às suas responsabilidades como fornecedor de serviços, em especial na questão da informação dada à pessoa que é atendida. Segundo o art. 6, III, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o consumidor tem direito a receber informações claras e adequadas sobre os produtos e serviços que adquire.

Nessa ótica, no contrato de prestação de serviços ou no próprio resultado do exame, é muito importante que o médico deixe bem explicado os riscos, probabilidades de acerto e variáveis dos procedimentos realizados. No caso do ultrassom, cujo propósito principal é para avaliar o desenvolvimento da gestação, ele também é utilizado para conhecer o sexo do feto. Entretanto, o ultrassom não é preciso no seu resultado sobre o sexo do nascituro, podendo acontecer equívocos por parte do médico em sua conclusão final.

Assim sendo, faz-se necessário o médico se resguardar de resultados destoantes de sua avaliação através da menção à probabilidade de erro do sexo indicado, não dando o juízo de certeza sobre a situação. O exame adequado para se avaliar o sexo do feto é a sexagem fetal, e não o ultrassom. Assim, por ser conhecedor da técnica médica, o médico possui mais informações para avaliar os casos que lhe são trazidos pelos pacientes, e os pacientes, por serem leigos nas ciências médicas como regra geral, são o polo vulnerável desse vínculo, e precisam saber os detalhes do que está acontecendo, havendo, portanto, uma assimetria informacional nessa relação.

Dessa forma, é importante que o médico deixe claro ao paciente as variáveis dos resultados dos procedimentos e exames, a fim de que o consumidor possa administrar suas próprias expectativas sobre a situação avaliada, e consequências desagradáveis não se desdobrem de mal-entendidos.

Como regra geral, de acordo com o CDC, a responsabilidade civil dos fornecedores é objetiva (art. 14), ou seja, independe de comprovação de culpa civil (dolo, negligência, imprudência e imperícia), entretanto, a regra geral não se aplica ao médico por ser este um profissional liberal, cuja responsabilidade é subjetiva, dependendo de comprovação de culpa (art. 14, §4°).

Vários casos sobre erro no diagnóstico do sexo do nascituro, feitos através de exame de ultrassonografia, já foram apreciados pelo Poder Judiciário. O entendimento das cortes é no sentido de que a informação bem dada é que orienta o rumo do julgamento para condenar ou não o médico. Por isso é muito importante que o exame realizado venha escrito que o sexo do feto indicado pelo médico possui uma margem de erro no diagnóstico, sendo aquela informação meramente probabilística, orientando ainda a paciente a fazer outro exame mais adequado para aferir a sexagem fetal.

Para exemplificar o acima exposto, segue Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) sobre o tema:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - SUPOSTO ERRO DE DIAGNÓSTICO SOBRE SEXO FETAL EM EXAME DE ULTRASSONOGRAFIA - DADO DE PROBABILIDADE - AUSÊNCIA DE RESULTADO ABSOLUTO - DEVER DE INDENIZAR AFASTADO. Não se há de falar em dever de indenizar por erro de diagnóstico sobre sexo fetal em exame de ultrassonografia, se no relatório de referido exame constou apenas um dado de probabilidade ("sexo provável"). Ademais, se o exame realizado pela gestante tinha por objetivo avaliar o desenvolvimento, a biometria e perfusão uteroplacentária, tendo, pois, outra finalidade precípua que não a de identificar o sexo fetal, não se pode concluir que houve erro médico de informação. (TJMG -  Apelação Cível  1.0702.15.049325-3/001, Relator(a): Des.(a) José de Carvalho Barbosa , 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 25/01/2018, publicação da súmula em 02/02/2018).

Em outro sentido do julgado acima, o TJMG, no Acórdão da Apelação Cível n° 1.0043.12.002501-0/001, condenou o médico e o hospital a indenizar a paciente pelo erro no diagnóstico do feto em exame de ultrassom.

Portanto, o médico deve ter bastante clareza no momento de diagnosticar qualquer situação do paciente, em especial sobre o sexo do feto, deixando por escrito que o resultado não é preciso, informando o paciente de forma adequada acerca de todos os meandros da situação.

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1- Acórdão TJMG -  Apelação Cível  1.0702.15.049325-3/001, Relator(a): Des.(a) José de Carvalho Barbosa , 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 25/01/2018, publicação da súmula em 02/02/2018.

2- Acórdão TJMG -  Apelação Cível  1.0043.12.002501-0/001, Relator(a): Des.(a) Márcia De Paoli Balbino , 17ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/06/2014, publicação da súmula em 11/07/2014.

3- BRASIL. Lei 8.078/90. Código de Defesa do Consumidor.

4- Exame de sexagem fetal. Disponível aqui . Acesso em 16 de novembro de 2021.

5- Exame de ultrassom. Disponível em aqui Acesso em 16 de novembro de 2021.

Giovanni Carlo Batista Ferrari

Giovanni Carlo Batista Ferrari

Graduado em direito pela UFMG. Pós-Graduado em Direito Digital pelo CERS. Pós-Graduado em Direito do Consumidor pela faculdade Legale.

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