Licitações e contratos na saúde pública: peculiaridades e desafios
Em busca da concretização do direito à saúde, as licitações e contratos no SUS enfrentam desafios rotineiros que esbarram no procedimento engessado previsto na legislação atual e clamam por celeridade, eficácia e transparência.
terça-feira, 23 de novembro de 2021
Atualizado às 12:59
O Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição Federal de 1988 (Art. 196) e regulamentado pelas leis 8.080/90 (Lei Orgânica de Saúde) e 8.142/90, é destaque no cenário internacional, sendo conhecido como o único sistema de saúde pública do mundo a atender mais de 190 milhões de pessoas1.
Como é cediço, o direito a saúde constitui direito fundamental (Art. 196 CRFB/88) e é considerado cláusula pétrea na atual conjuntura constitucional, nos termos do Art. 60, §4º do mesmo diploma, o que significa, portanto, que não pode ser alterado nem mesmo por Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
Assim, o SUS, enquanto um conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público2, visa concretizar o direito fundamental à saúde previsto constitucionalmente, que não somente prevê a saúde enquanto direito de todos, mas como um dever do Estado.
O Conselho Nacional de Saúde aponta que 80% das pessoas atendidas pelo sistema, dependem, exclusivamente, dos serviços públicos para qualquer atendimento de saúde3. Além disto, o SUS é gratuito para todos aqueles que desejam acessá-lo, sem distinção, eis que os princípios que versam este sistema são a integralidade, a igualdade e a universalidade - o que inclui o acesso ao SUS por estrangeiros, pois ainda que a legislação em saúde não se refira especificamente a esse ponto, o acesso universal deve ser garantido à todas as pessoas, independente de nacionalidade, em prestígio ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Entretanto, apesar de se concretizar enquanto um modelo de política pública a ser seguido, o Sistema Público de Saúde Brasileiro ainda enfrenta desafios. É neste ponto que as licitações e contratos deste setor merecem atenção.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no Art. 37, caput e inciso XXI determina a obrigatoriedade, para toda a Administração Pública, da abertura de processo licitatório para a contratação de obras, serviços e compras, ressalvados os casos especificados na Lei, obedecendo-se, assim, os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo.
É nesse sentido que, a fim de regulamentar, em âmbito infraconstitucional e nacional, o dispositivo supracitado, a lei 8.666/93 foi editada, versando sobre Licitações e Contratos na Administração Pública. Posteriormente, de forma a complementar as regras nela dispostas, surgiram outras legislações, como a lei 10.520/02, que dispõe sobre a modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns e a lei 12.462/11, que diz respeito ao regime diferenciado de contratação.
Além disto, há de se mencionar as regras excepcionalmente criadas para o combate ao Covid-19: lei 13.979/20, lei 14.065/20 e o Decreto Legislativo 6/20.
Ainda, convém trazer à baila a lei 14.133/21, nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que incorporou tanto a lei do pregão quanto a lei do regime diferenciado de contratação, bem como entendimentos consolidados dos tribunais, trazendo, assim, uma disciplina mais atualizada das licitações, ainda que bastante cautelosa nas mudanças em alguns aspectos, considerando o lapso temporal da entrada em vigor da Lei. 8666/93 até os tempos atuais.
Considerando tais premissas, resta evidente que, para proceder à contratação de insumos, serviços e medicamentos hospitalares no sistema público de saúde, é imprescindível a adoção do procedimento de licitação pública, que apenas pode ser dispensado nas hipóteses expressamente previstas em lei, quais sejam, dispensa e inexigibilidade de licitação, dispostas, respectivamente, nos Artigos 24 e 25 da lei 8.666/93 (Arts. 75 e 74 da lei 14.133/21), ainda em vigor no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, conforme disposto no Decreto 47.680/21, sendo certo de que tal entendimento, inclusive, vem sendo adotado pela Procuradoria Geral da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Cumpre-nos esclarecer que os casos de dispensa de licitações são taxativos e dependem da discricionariedade do administrador, ou seja, da avaliação da conveniência e da oportunidade no caso concreto. Tais hipóteses encontram-se previstas nos incisos do Art. 24 da lei 8.666/93, e conforme preleciona Rafael Oliveira, a dispensa de licitação pode ser assim entendida:
"a licitação é viável, tendo em vista a possibilidade de competição entre dois ou mais interessados. Todavia, o legislador elencou determinadas situações em que a licitação pode ser afastada, a critério do administrador, para se atender o interesse público de forma mais célere e eficiente. É importante notar que as hipóteses de dispensa de licitação representam exceções à regra constitucional da licitação, permitidas pelo art. 37, XXI, da CRFB ("ressalvados os casos especificados na legislação"). O legislador autoriza o administrador a dispensar, por razões de conveniência e oportunidade, a licitação e proceder à contratação direta."4
Já no que tange à inexigibilidade de licitação prevista no Art. 25, o renomado autor Hely Lopes Meirelles sustenta que esta decorre:
"Da impossibilidade jurídica de competição entre contratantes, quer pela natureza específica do negócio, quer pelos objetivos sociais visados pela Administração."5
Contudo, apesar da existência expressa de hipóteses em que é legalmente permitida a contratação pública sem a necessidade de realização do processo licitatório, estas situações são apenas exceções ao dever de licitar, não podendo se fazer regra, mas, ao revés, devem ser evitadas a todo o custo.
Todavia, o que se verifica é que, muitas vezes, tendo em vista as complexidades, demandas urgentes e situações peculiares enfrentadas pela saúde pública, alguns acontecimentos não conseguem ser abarcados pela legislação genérica, implicando em contratações emergenciais, sob pena de desabastecimento dos estoques dos hospitais e risco de vida aos pacientes, fazendo com que o que deveria ser a exceção, se torne a regra.
A fim de ilustrar o que ora se afirma, é mister relembrarmos o período pandêmico, especialmente, no momento mais crítico do ano de 2020, em que altas demandas em prol de insumos e medicamentos exigiu a criação às pressas de uma lei que simplificasse o processo de contratação pública e atendesse às necessidades daquele período.
Assim, como já anteriormente citado, foi editada a lei 13.979/20 que dispunha sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do Coronavírus, prevendo do Art. 4º ao art. 4º-k, soluções céleres e seguras para a contratação dos serviços da saúde, dispensando-se o moroso processo licitatório. Ainda, mais recentemente, entrou em vigor a lei 14.217/21, que autorizou a administração pública a comprar, com dispensa de licitação, insumos, bens e serviços, inclusive de engenharia, para o enfrentamento da pandemia de covid-19.
Entretanto, apesar de sabermos que períodos pandêmicos tal qual o surto ocasionado pelo covid-19, são ocasionais e até mesmo raros, há muito o que ser simplificado para atender às reais necessidades cotidianas de um ambiente público hospitalar que, por vezes, atende além de sua capacidade para conseguir suprir as carências da população hipossuficiente, fato este que demanda agilidade nos procedimentos burocráticos em prol do atendimento adequado aos pacientes.
Neste ínterim, é importante exemplificar com os casos dos medicamentos de alto custo de pacientes com risco grave de morte. Conforme matéria jornalística divulgada pelo G1, "mesmo após decisões judiciais favoráveis, ainda há entraves que impedem que os remédios cheguem a quem precisa e na hora certa. Além do tempo da Justiça, há o tempo dos trâmites burocráticos em órgãos de saúde estaduais, como análise de documentos médicos e abertura de licitações para compras dos remédios."6
Ademais, segundo o relatório sistêmico de fiscalização da saúde lançado pelo TCU no ano de 2014, através do TC 032.624/2013-1 (Acórdão 693/2014 - Plenário - Sessão: 26/03/2014 - Relator Ministro Benjamin Zymler)7, no tópico referente à avaliação dos hospitais visitados quanto à frequência com que ocorrem restrições na realização de procedimentos em função da falta de medicamentos e insumos, concluiu-se que "a ampla cadeia de agentes e procedimentos envolvidos na gestão de medicamentos e insumos expõe o processo a uma gama de eventos de riscos, que vão desde a intempestiva identificação dos baixos volumes de estoques até a perda de validade por falhas de distribuição desses materiais e fármacos às unidades hospitalares."
Demonstrando-se a gravidade do excesso de formalidades das licitações e seu impacto na saúde, é que, de acordo com o Relatório, gestores de 25 dos 116 hospitais visitados responderam que a falta de medicamentos e insumos restringia a realização de procedimentos ou cirurgias em suas unidades8.
Outrossim, de acordo com o Artigo "Avaliação dos desfechos em processos licitatórios na modalidade pregão eletrônico de um hospital universitário" publicado na Revista de Administração em Saúde, em julho de 2019, após levantamento e análise dos pregões eletrônicos para aquisição de medicamentos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), a pesquisa concluiu que "Dos 984 itens licitados 496 (50,41%) tiveram sucesso no processo de aquisição, porém 488 itens (49,59%) tiveram a compra fracassada (...)"9.
Ora, com o fracasso na compra dos medicamentos, o certame é repetido, o que acarreta desabastecimento dos estoques nos setores hospitalares, além de maior custo e tempo dispendido por parte da Administração Pública, o que repisa a ineficácia da legislação vigente para a Saúde.
Também não se pode olvidar de um dos problemas recorrentes que impacta diretamente nas contratações públicas nesta seara: a falta de planejamento entre os setores hospitalares, geralmente decorrente da ausência de comunicação entre os departamentos, que ocasiona a falta dos insumos necessários à realização de cirurgias ou tratamentos não esperados, obrigando o gestor a contratar emergencialmente.
Do mesmo modo, nos casos de medicamentos listados pelo SUS como de compra obrigatória, o que se observa é ocorrência de uma estimativa, por parte do administrador, que é muitas vezes aquém da quantidade necessária no ano. Assim, no decorrer do tempo, percebe-se a necessidade de nova contratação e, como há situações em que nem mesmo há a possibilidade de aditamento ao contrato para suprir a necessidade do insumo, procede-se à utilização da contratação direta emergencial com base no inciso IV do art. 24 da lei 8.666/93.
É neste sentido, que pelas peculiaridades e dinâmica diferenciada que a saúde pública reserva para si, o procedimento licitatório em vigor no Brasil se demonstra insuficiente.
As formalidades atualmente previstas apesar de satisfazerem o processo de contratação pública em muitos setores, não se apresenta como solução viável ao contexto hospitalar, pois, ao fim, esvazia-se o sentido das regras ora em vigor ao se perceber que as hipóteses de exceção previstas no sistema se demonstram mais eficazes e implementáveis para o cumprimento do objetivo-fim do sistema de saúde: salvar vidas.
Além do mais, é de vital importância mencionar que o Sistema Único de Saúde se apresenta peculiar principalmente pelos valores nele investidos. No ano de 2019, somente a União investiu mais de 5.7 bilhões de reais em contratos na área da saúde10, seja em medicamentos, insumos ou prestação de serviços. Isso decorre diretamente do comando constitucional, em especial o art. 198, §2º, que determina uma aplicação mínima na saúde pública de 15% da receita líquida do exercício financeiro, no caso da União e, em relação aos Estados e Municípios, a regra estabelece o investimento mínimo de 15% da arrecadação de seus respectivos impostos.
Tendo isto em vista, é possível concluir que as contratações públicas de serviços, medicamentos e insumos hospitalares devem passar por uma análise de Gestão de Saúde Pública, o que inclui noções de logística hospitalar, gestão de estoque e planejamento de compras considerando as adversidades e minúcias do cotidiano hospitalar, de forma tal que se faz premente a busca por um processo licitatório simplificado, que se demonstre célere e eficiente, sem prejuízo do atendimento aos princípios da legalidade, impessoalidade ou igualdade, moralidade, publicidade e eficiência, que norteiam as licitações, conforme previsão constitucional outrora mencionada.
Com efeito, esclareça-se que as hipóteses de dispensa previstas na nova Lei de Licitações encontram-se dispostas no art. 75 e a disciplina se manteve muito semelhante ao previsto no art. 24 da lei 8.666/93. Apenas com relação à dispensa de licitação em situação emergencial, o art. 75, VIII, da nova lei amplia o prazo de contratação de 6 meses para 1 ano, além de proibir a recontratação de empresa já contratada emergencialmente, o que traduz uma limitação criticável nos casos em que a mesma empresa apresentar as melhores condições para nova contratação.
Ademais, os incisos X e XI do art. 24 da lei 8.666/93 não mais consubstanciam hipóteses de dispensa na nova lei. O inciso X, que tratava da compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da Administração passa a ser hipótese de inexigibilidade, prevista no art. 74, V. O inciso XI, por sua vez, que previa a dispensa em caso de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em consequência de rescisão contratual, é disciplinado na nova lei no capítulo de formalização dos contratos administrativos, que em seu art. 90, § 7º, possibilita à Administração convocar os demais licitantes classificados para a contratação.
Em suma, mesmo com a chegada da nova lei, os percalços enfrentados pela aplicação das regras para licitação na Saúde Pública se mantiveram.
Do exposto, o que se objetiva pôr em reflexão é a necessidade de o processo de licitação na saúde se desvencilhar do formalismo excessivo, incluindo exigências que fogem à realidade deste seguimento. Ao invés de se engessar o procedimento, tendo como premissa a má-fé do licitante, o mais correto a se implementar é um sistema que realmente funcione e atenda às demandas da realidade posta, transpondo-se o rigor apenas para a fiscalização e aplicação de sanções, sem que se perca a lisura e seriedade do procedimento.
Assim, dentre as medidas a serem adotadas, é possível citar alguns pontos a serem desenvolvidos no que tange à transparência, à publicidade e à accountability de cada etapa do procedimento, partindo da mais interna e cotidiana à mais externa e evidente, do setor administrativo ao departamento jurídico.
Neste quesito, o uso das tecnologias se apresenta como solução viável para auxiliar na busca pela concretização da transparência e, ainda que sua implementação e aprimoramento implique em custos, a longo prazo evitar-se-ia eventuais desvios e casos de corrupção a prejudicar o erário, pois com maior fiscalização por parte da sociedade, há a preservação do Estado Democrático de Direito, o que, por conseguinte, proporciona eficiência e probidade.
Não obstante, a estipulação de prazos certos a serem cumpridos para cada setor envolvido demonstra-se essencial para atender em tempo hábil as necessidades das unidades requisitantes. Em complemento, a maior comunicabilidade e assertividade entre os departamentos, quanto às reais necessidades e demandas hospitalares de cada unidade, corrobora para que se evite eventuais desabastecimentos ou mesmo a sobra de insumos em decorrência de uma contratação em quantidades além do necessário.
Por fim, o empenho na elaboração da pesquisa de preço, de modo que esta seja de fácil compreensão pelo setor jurídico, a fim de que de maneira mais efetiva possa ser identificada possível falha ou inadequação, uma vez que é a pesquisa de preço que irá determinar se a licitação será bem-sucedida ou fracassará. Importante também a sintonia com o andamento das questões de gestão e administração, para que o parecer jurídico seja célere, de modo a atender às necessidades dos licitantes, do hospital, e dos cidadãos que se beneficiam dele, sem que, contudo, haja prejudicialidade quanto à análise e fundamentação adotada pelo parecerista.
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1- Disponível aqui. Acesso em 08 nov. 2021.
2- BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Para entender a gestão do SUS. Brasília: CONASS, 2003. p. 25.
3- Disponível aqui. Acesso em 08 nov. 2021.
4- OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021. p. 699.
5- MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 112.
6- Disponível aqui. Acesso em 08 nov. 2021.
7- Disponível aqui. Acesso em 12 nov. 2021.
8- ROSSETTI, Suzana Maria. GONÇALVES, Oksandro. PROCESSOS DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA E O DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO: Uma análise a partir do Relatório do TCU/2014 sobre Saúde Pública.
9- ARANTES, Tiago. SFORSIN, Andréa Cássia Pereira. PINTO, Vanusa Barbosa. MARTINS, Maria Cleusa. Avaliação dos desfechos em processos licitatórios na modalidade pregão eletrônico de um hospital universitário. Rev. Adm. Saúde (On-line), São Paulo, v. 19, n. 76: e174, jul. - set. 2019, Epub 23 jul. 201.
10- Disponível aqui. Acesso em 12 nov. 2021.