A desfaçatez e imoralidade da PEC dos Precatórios
Esclareça-se que nada temos contra a política de inclusão social, desde que não implique sacrifícios de legítimos credores.
terça-feira, 23 de novembro de 2021
Atualizado às 09:36
Poucos têm a exata noção da gritante imoralidade da chamada PEC dos Precatórios, a PEC 23/21, e da inusitada desfaçatez do governo e do Congresso Nacional.
Aparentemente, essa PEC visa possibilitar o pagamento R$ 400,00 a título de Auxílio Brasil (Bolsa Família) para cerca de 20 milhões de pessoas pobres, o que daria uma grande visibilidade à ação do governo no ano preeleitoral.
O governante e os congressistas, dessa forma, cresceriam aos olhos do eleitorado, pois, o discurso da inclusão social tem sido uma bandeira populista dos últimos tempos, dentro e fora do País. Esclareça-se que nada temos contra a política de inclusão social, desde que não implique sacrifícios de legítimos credores.
Então, a bem da verdade, é preciso que se explique o que significa essa PEC 23/21, que prevê a moratória dos precatórios.
O que é precatório judicial?
R: É ordem judicial de pagamento, em cumprimento de decisão judicial condenatória transitada em julgado.
Como é feito esse pagamento?
R: Ao final da longa tramitação do processo judicial a decisão condenatória da Fazenda, no caso, da União, transita em julgado, isto é, não mais cabe qualquer recurso.
Então, o valor da condenação é apurado por meio de liquidação de sentença que calcula o valor do principal, acrescido de juros e correção monetária; de despesas processuais desembolsadas pelo autor da ação; de despesas periciais quando houver; e da verba honorária sucumbencial.
O valor total assim apurado é requisitado por ofício do Presidente do Tribunal que proferiu a decisão exequenda.
Esse ofício requisitório é denominado de precatório judicial. Desde que ele seja entregue à Fazenda devedora (no caso, União) até o dia 1º de julho tem o seu valor incluído no orçamento anual do exercício seguinte, para pagamento no período de 1º de janeiro até 31 de dezembro.
Se o precatório for entregue fora do período requisitorial, isto é, depois do dia 1º de julho, por exemplo, no dia 2 de julho de 2021, o seu valor somente será incluído no orçamento subsequente ao seguinte, isto é, no exercício de 2023, para pagamento no período de janeiro a dezembro de 2023. Nota-se, portanto, que por uma diferença de apenas um dia, o prazo de pagamento de precatório é postergado no mínimo em 18 meses. No exemplo dado, se o precatório for pago no último dia do prazo (31-12-2023), o pagamento estará sendo feito depois de decorridos 30 meses, a contar da data em que o precatório foi recebido pela entidade política devedora.
Devido a morosidade do procedimento administrativo para quitação de precatórios muitos credores acabam morrendo, sem perceber o crédito obtido à dura pena. Isso quando o demandante idoso não falece no curso do longo processo de conhecimento de 5 a 6 anos em média (juízo de primeira instância, Tribunal de Justiça/Tribunal Regional Federal e STJ/STF), ou no curso da apuração do montante do crédito seguida de expedição de precatório, um procedimento que demanda cerca de um ano.
Nos âmbitos estadual e municipal milhares de precatoristas já morreram na interminável fila de precatórios que começou em 5 de outubro de 1988, com a promulgação da Constituição vigente, que concedeu moratória de 8 anos (art. 33 do ADCT). Desde então sucessivas PECs vêm sendo promulgadas e a última delas prorrogou a liquidação dos precatórios pendentes até o dezembro de 2029 (EC 109/21).
Os precatoristas são vítimas silenciosas que vão morrendo ao longo do tempo, sem que a mídia noticie, como ocorre com as vítimas de assassinato ou de covid-19. Ficar aguardando mais de 20 anos na fila e morrer sem usufruir do resultado material da decisão judicial que lhe assegurou o crédito não apenas torna inócua e inútil o princípio da inafastabilidade da jurisdição inserto no art. 5º, XXXV da CF, como também, do ponto de vista social representa uma das mais graves violações dos direitos humanos. Por isso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pretende julgar o mérito das denúncias formuladas por precatoristas de Santo André (São Paulo) e dos Estados do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul contra o Estado Brasileiro por descumprimento sistemático dos precatórios.
Já é possível compreender que essa PEC 23/21 outra coisa não faz senão apropriar-se do dinheiro pertencente a credores, por decisão judicial transitada em julgado, para financiar um programa social com vistas às eleições de 2022. Esses valores, na verdade, R$ 89 bilhões, pertencem a precatoristas, tanto é que figuram na proposta orçamentária de 2022 em discussão no Congresso Nacional. Tratam-se de dinheiros carimbados com destinação certa.
Logo, esses precatórios são pagáveis, salvo na improvável hipótese de a receita ficar aquém do montante estimado. Não se tratam, portanto, de precatórios que não podem pagar, mas, de precatórios que não querem pagar.
Do exposto conclui-se que o que o governo e o Congresso Nacional estão fazendo é simplesmente apropriar-se de recursos pertencentes a legítimos credores, para dá-los aos menos favorecidos de nossa sociedade. O Chefe do Executivo e os congressistas estão negociando o montante de precatórios a não serem pagos, isto é, estão negociando sobre créditos de terceiros. Por que não negociam as verbas provenientes de emendas individuais e de bancadas a que fazem jus os congressistas? Ou os recursos dos fantásticos fundos partidário e eleitoral?
A ação dos parlamentares de elaborar e aprovar a PEC 23/21 em nada difere do comportamento de alguém, solidário e altruísta, que promove uma doação substancial a integrantes de uma entidade beneficente, porém, com os recursos financeiros furtados ou roubados de seus vizinhos.
Se os destinatários dessa doação, sabedores da origem dos recursos doados, ficarem gratos e agradecidos ao doador significa que eles perderam a noção de ética, enveredando-se pelo caminho da imoralidade.
Governante e congressistas se identificam com o quadro retrocitado. Duas das importantes instituições públicas (Poder Executivo e Poder Legislativo) agem com a maior desfaçatez apropriando-se de dinheiro pertencente a credores por decisão judicial, para distribuí-lo a um contingente de hipossuficientes. O que é pior, cogita-se de utilizar parte dos recursos surrupiados para engordar o fundo eleitoral e majorar os valores das emendas do Relator.
Uma população esclarecida jamais poderia aceitar, muito menos aplaudir essa ação ignóbil que denigre a imagem do Estado, dentro e fora do País, pela prática de conduta ilegal, inconstitucional, imoral e caracterizadora de infração penal.
Essa PEC 23/21 é materialmente inconstitucional, por violar em bloco, o princípio da universalidade de jurisdição; o princípio da razoável duração do processo; o princípio do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada; os princípios da irretroatividade, da legalidade, da impessoalidade e da eficiência; além de atentar contra o direito de propriedade, todos protegidos em nível da cláusula pétrea.
Padece, também, do vício do processo legislativo, porque o Presidente da Câmara convocou, por via remota, 17 deputados que se encontravam no exterior participando dos trabalhos da COP 26, em Glasgow, Escócia, para votarem, sem terem a menor noção do que estava sendo debatido, sabendo unicamente que cada deputado que votasse favoravelmente à aprovação da PEC 23/21 faria jus a R$ 15 milhões, a título de Emenda do Relator. Resultado, a PEC 23/21 foi aprovada em 1º e 2º turnos superando com tranqüilidade os 308 votos necessários.
Dessa forma, à imoralidade material soma-se a imoralidade processual.
Nem a decisão monocrática da ministra Rosa Weber, que proibiu o pagamento dessa Emenda do Relator por ausência de transparência, publicidade e de mecanismos de controle e fiscalização da despesa abalou a firme determinação do Presidente da Câmara de manter o calendário da votação em segundo turno, que acabou acontecendo, como se viu.
Esse episódio representa uma verdadeira radiografia moral dos componentes dos Poderes Executivo e Legislativo que transformam o Estado Federal Brasileiro em um ser aético despido de moral e de pudor. Os 323 parlamentares que votaram pela aprovação dessa PEC 23/21, bem como o governante que a patrocina são pessoas não habilitadas para o nobre exercício de cargos públicos e, por isso, devem ter seus nomes guardados na memória da população ordeira, para que sejam expurgados da vida pública nas eleições de 2022, por calotearem os credores por precatórios e que estão, aos poucos, morrendo à espera do prolongado tempo para percepção de seus créditos.