A delação de Witzel contra Moro na CPI da Covid
"Delação" serendipitosa na CPI da Covid - notícia de crime escondido sob ato oficial do ex-ministro da justiça -, na medida em que se relaciona a crime de ação penal pública, deve sofrer a devida apuração.
sexta-feira, 19 de novembro de 2021
Atualizado às 12:26
Antes, um "causo".
Anos 2000. Em curso investigação da Polícia Federal para desbaratar esquema de tráfico internacional. Diferentes superintendências de vários Estados envolvidos. Investigação desenvolvida sob a égide da lei 9.034/95, com interceptações, quebras de sigilo, ações (supostamente) controladas. Eis que, pela manhã, um agente da PF é alertado por um "colaborador" (ex-integrante do esquema investigado) que daí a poucas horas haveria um homicídio: um dos chefões da mesma ORCRIM determinara, por ciúmes, que fosse executada sua ex-namorada tão logo ela saísse da escola, ainda na rua, o que deveria ocorrer pontualmente às 12h00. Sem conseguir autorização de seus superiores, o agente federal resolve impedir aquele "crime comum" (motivação passional, de competência da justiça estadual) e reúne colegas, inclusive das polícias locais, também a tanto dispostos. O crime é evitado, mas a grande operação da PF articulada para os dias seguintes terminou por ficar frustrada. O agente federal responde processo disciplinar; a visada vítima e seus filhos ingressam no programa de proteção. Os demais "mocinhos" não tiveram punições: sua participação foi havida somente na qualidade de cidadãos exortados a impedir um crime capital.
As implicações jurídicas, morais, institucionais envolvidas nesse "causo" - hipótese da chamada serendipidade "de segundo grau", já que não há conexão com os fatos investigados - são material farto para inúmeros estudos, em diversas áreas, inclusive filosóficas. Mas não é o que interessa aqui.
No "causo", não houve, tecnicamente, encontro fortuito de prova, mas, sim, encontro fortuito de informação, estilo "denúncia anônima", que, como visto, mereceu, na prática, verificação e atuação ostensiva, ainda que por agentes "incompetentes", isto é, sem atribuição funcional. Ali havia emergência, que seria a justificativa para a atuação imediata de servidores estatais em defesa legítima de terceiros, como qualquer cidadão em tese poderia fazer.
Pois no âmbito da CPI da COVID foi ouvido o ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Ele, ali assentado como colaborador (em sentido amplo), não trouxe provas, mas informações, algumas verossímeis, acerca de crimes que refugiam ao delimitado objeto investigativo daquela CPI.
Witzel, ainda que em possível narrativa para fins de autodefesa jurídico-política (sofrera impeachment por atos ilícitos graves que lhe foram atribuídos), sinalizou deter informações - eventualmente provas - acerca do envolvimento de seu ex-parceiro político, atual desafeto, o Presidente da República, em esquemas ilegais de milícias, incluindo os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Falou de forma genérica, "en passant", desse suposto envolvimento da família presidencial e se insinuou "à disposição" para aprofundar informações, minuciar dados, municiar eventual investigação com elementos de prova. Trouxe ele, ao que parece, pouca contribuição concreta, quase tudo na linha do que já se podia extrair dos indícios fartamente noticiados em matérias jornalísticas.
Mas o "colaborador" foi além.
Discorreu, agora concreta e pontualmente, sobre "crime cometido pelo ex-Ministro da Justiça, Sergio Moro", ao fazer uso espúrio da Lei de Segurança Nacional.
Mais do que tachá-lo de "menino de recado presidencial", Witzel imputou-lhe a autoria de fato conhecido e incontroverso, ato oficial, mas com "um detalhe": a motivação e intenção espúrias (o dolo), que transmutaria em crime o que seria um ato administrativo afeto à sua pasta. Disse Witzel: "O porteiro, uma pessoa simples, prestou depoimento à Polícia Civil. Logo depois, o ministro Moro, de forma criminosa, lamentavelmente, requisita um inquérito para investigar crime de segurança nacional, porque o porteiro depõe, prestou um depoimento para dizer que o executor da Marielle teria chegado no condomínio e mencionado o nome do presidente". Revelava o "colaborador", em suma, que Moro usara de seu cargo e prerrogativas para, em claro abuso criminoso, coagir testemunha e turbar investigação incômoda a seu chefe, o Presidente da República.
A CPI deparou-se com essa espécie de serendipidade informativa. O fato, aliás, como dito, já era midiatizado, notório, sua materialidade também é de índole pública, oficial.
O diferencial é a informação, prestada por um "insider", agora "colaborador da CPI", que se articulava e se relacionava com o autor do fato (foram aliados políticos e ex-colegas de toga), acerca da real intenção do ato, que o alça à subsunção típica criminal, com finalidade claramente tredestinada, torpe, em relação ao interesse público que deveria subjazer ao grave ato administrativo (requisição de inquérito fundado na famigerada LSN).
Ao contrário do premido agente federal do "causo" inicialmente narrado, não se está em situação de emergência vital. Mas também não há qualquer sentido se deixar de adotar as providências próprias e imediatas, que, aliás, independeriam até mesmo do Relatório Final da CPI. É o que ocorre de modo comezinho nas investigações em geral. Cabe ao órgão persecutório competente, no caso o MPF, investigar o ato criminoso atribuído ao ex-ministro Moro, ora sem prerrogativa de foro.
Porém, o tema parece ter ficado esquecido, deixado de lado (talvez, para as calendas).
Se a fonte da delação (Witzel) pode ter sua idoneidade questionada, não menos questionável eram as fontes utilizadas recentemente (doleiros, ex-políticos já condenados, empresários corruptores, etc). Aliás, são fartos os estudos e teses que apontam, ontologicamente, a questionabilidade em geral dos delatores e de seus propósitos...
Importam os fatos e os caminhos para apurá-los e não a honorabilidade dos delatores (não isso o que sempre se diz, inclusive na operação Lava-jato?).
Um abuso como esse noticiado na CPI, no ambiente jurídico de um passado recente, na metodologia lavajatista, utilizada a régua do ex-juiz que a notabilizou, poderia até ensejar a prisão preventiva do malfeitor. O ex-juiz talvez mandasse prender o ex-ministro...
Aliás, um abuso como esse noticiado na CPI, no ambiente midiático de um passado recente, na metodologia lavajatista... Fossem outros os personagens, provavelmente não se teria "passado pano". Ou não se passou pano?
Witzel e Moro há muito desceram para playground da política, arena que opera com lógica, regras e juízes próprios. Até anteontem aliados, parecem ser a mesma face da mesma moeda. Não estão mais com a caneta na mão; muito menos, acima da lei.
O Brasil merece conhecer até o avesso todos bastidores que vinham motivando atuações político-judiciais em geral (em especial, a recorrente invocação da Lei de Segurança Nacional, não só outrora, mas também recentemente).
Conhecer e estudar erros e abusos. E evitar repeti-los. Isso é mais velho do que andar de pé.A