A nova jurisprudência sobre revisão contratual na pandemia e o princípio da isonomia
Fundamentos contra o novo posicionamento que vem surgindo nos Tribunais que impossibilita a revisão contratual por conta da pandemia da Covid-19.
terça-feira, 16 de novembro de 2021
Atualizado às 11:24
Passado mais de um ano e meio desde o início da pandemia da Covid-19, seus efeitos socioeconômicos vêm sendo cada vez mais sentidos pela população e, assim, começam a surgir nos Tribunais pátrios inúmeros pedidos de revisão de contratos de consumo, principalmente de alienação fiduciária e, sobre este tema, está se estabelecendo em nossa jurisprudência um entendimento restritivo à revisão contratual, cujo fundamento principal é o de que os efeitos da crise sanitária vivida no Brasil e no mundo atingiram a todos indistintamente e, portanto, não seria possível a revisão de cláusulas contratuais em benefício de apenas uma das partes do contrato.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgado recente, negou a revisão do contrato de contrato de financiamento ao consumidor alegando que a instituição financeira ré sofreu os efeitos negativos da pandemia assim como sofreu o autor, conforme se extrai da ementa abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. Ação de Revisão Contratual. Contrato Bancário. Sentença de Improcedência. Inconformismo. Não acolhimento. Financiamento. Aquisição de veículo automotor. Pretensão de revisão dos Contratos de financiamento com a prorrogação dos prazos de pagamento. Descabimento. Necessidade de manutenção dos termos pactuados diante do princípio da força obrigatória do Contrato. Pandemia. COVID-19. Circunstância extraordinária que não deve servir de excludente do dever contratual, além disso, tal situação atingiu todos os setores, não excluindo a Ré, Instituição Financeira, também afetada pela inadimplência dos seus devedores, como bem salientou a r. sentença. Decisão mantida. Ratificação, nos termos do artigo 252, do Regimento Interno. RECURSO NÃO PROVIDO, majorando-se a verba honorária em sede recursal ao percentual de 12% (doze por cento) sobreo valor da causa, observada a gratuidade processual." (TJSP, Apelação Cível 1004412-51.2020.8.26.0229. Relator Penna Machado, 14ª Câmara de Direito Privado, j. 22/06/2021).
Porém, tal entendimento vai de encontro com o princípio constitucional da isonomia, também conhecido como princípio da igualdade material, segundo o qual todo cidadão deve receber tratamento igualitário, respeitando-se, porém, as desigualdades sociais, ou seja, considerando em cada caso as óbvias diferenças que existem dentro de um país tão desigual e resguardando os direitos dos jurisdicionados observando-se suas condições pessoais e sociais, dando a cada um o que lhe é de direito, na medida de sua desigualdade.
Ademais, o referido entendimento também contraria o direito expresso no inciso V, art. 6º do Código de Defesa do Consumidor que este tem de ver alteradas as cláusulas contratuais (não abusivas) quando houver onerosidade excessiva na prestação a ele incumbida, dentro de um contrato de consumo de prestação continuada, desde que o desequilíbrio tenha sido ocasionado por fato superveniente, com a finalidade de reestabelecer o equilíbrio e a justiça contratual
Outrossim, importante salientar que nas relações consumeristas não se aplica a teoria da imprevisão para a revisão de contratos, pois o CDC não condiciona tal alteração contratual a uma imprevisibilidade do fato superveniente, estabelecendo apenas um critério puramente objetivo, segundo o qual basta que a prestação incumbida ao consumidor venha a se tornar excessivamente onerosa durante a vigência do contrato para nascer o seu direito a imposição da revisão contratual pelo Poder Judiciário.
Sobre este tema, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, em comentários ao art. 6º, V do Código de Defesa do Consumidor, ensinam que "Para que o consumidor tenha direito à revisão do contrato, basta que haja onerosidade excessiva para ele, em decorrência de fato superveniente. Não há necessidade de que esses fatos sejam extraordinários nem que sejam imprevisíveis. As soluções da teoria da imprevisão, com o perfil que a ela é dado pelo CC italiano 1467 e pelo CC 478, não são suficientes para as soluções reclamadas nas relações de consumo. Pela teoria da imprevisão, somente os fatos extraordinários e imprevisíveis pelas partes por ocasião da formação do contrato é que autorizariam, não sua revisão, mas sua resolução. A norma sob comentário não exige nem a extraodinariedade nem a imprevisibilidade dos fatos supervenientes para conferir, ao consumidor, o direito de revisão efetiva do contrato; não sua resolução"1
Assim como fez o TJ-SP, em caso similar, a 5ª Câmara de Direito Comercial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em julgamento de revisão de contrato de financiamento requerida pelo consumidor por conta da pandemia da COVID-19, entendeu que "(...) em razão de as consequências econômicas da pandemia de Covid-19 terem sido sentidas tanto pelo agravante como pela agravada, não se pode aplicar a teoria da imprevisão para favorecer apenas uma das partes, o que já foi dito nesta Corte" (Agravo de Instrumento 5002655-79.2021.8.24.0000/SC) conforme trecho de julgado extraído de notícia divulgada pelo site do próprio Tribunal, cujo título é "Teoria da imprevisão por Covid-19 não pode ajudar só uma parte em revisão contratual."2
Além de trazer a teoria da imprevisão, de forma equivocada, para as relações consumeristas, limitando o alcance da norma de direito fundamental de defesa do consumidor inscrita no inciso V do art. 6º do CDC, este entendimento impede a discussão no âmbito judicial de causas que tenham como fundamento alterações promovidas pela pandemia nas relações jurídicas.
Embora seja incontestável o argumento de que os efeitos negativos da pandemia do Covid-19 atingiram todos nós, é igualmente irrefutável o fato de que tais efeitos não foram os mesmos para todas as pessoas, sendo sentidos com maior intensidade pelas camadas mais pobres da população brasileira e pela classe média. Alguns setores da economia encontram-se recuperados da paralisação da economia e, alguns até lucraram na crise, como depreende-se da simples análise de alguns dados econômicos.
Segundo o Relatório de Estabilidade Financeira (REF) divulgado em outubro pelo Banco Central, os bancos lucraram R$ 63 bilhões no primeiro semestre de 2021 no Brasil. Segundo o próprio BC, "a rentabilidade do sistema recuperou-se e retornou aos níveis pré-pandemia"3
Ademais, conforme relatório da Oxfam, organização não governamental destinada ao combate à desigualdade social, os 42 bilionários do país aumentaram sua riqueza em US$ 34 bilhões em 2020.4
Em contrapartida, segundo matéria publicada no dia 8 de outubro 2021 no jornal Folha de São Paulo, a inflação registrada no mês de setembro de 2021 foi de 1,16%, o maior percentual registrado para o mês desde 1994.5 Também conforme o mesmo jornal, em matéria datada do dia 15 de setembro de 2021, a inflação para os brasileiros mais pobres é de 10,63% no acumulado dos últimos 12 meses.6
Impossibilitar a revisão contratual em favor do consumidor, baseada apenas no argumento de que a pandemia afetou a todos, não só ignora a histórica e abissal desigualdade social brasileira como também fere o princípio da isonomia e o direito fundamental de defesa do consumidor.
No mínimo, a análise de revisão de contratos de consumo deveria ser realizada casuisticamente, estudando-se as peculiaridades de cada relação jurídica e das partes que as integram e deve ser feita com cuidado para não condenar uma pessoa que já está buscando no judiciário uma redução de suas dívidas, ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios com base em argumento vago.
Deve ser prestigiado o art. 20 da lei de Introdução as Normas ao Direito Brasileiro que aduz que:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Cabe ressaltar que não é desarrazoada a elevação da proteção do consumidor ao patamar de direito fundamental. Assim o fez o legislador constituinte não só por saber de sua vulnerabilidade frente as grandes corporações, principalmente estrangeiras, que regem a orquestra da ordem econômica, mas por saber, também, que, dentro do sistema capitalista, um mercado de consumo forte, estável e com poder de compra é o combustível que faz girar as engrenagens da economia.
Não é preciso ser especialista em macroeconomia para chegar à conclusão de que ninguém vai querer investir em um país onde há baixo poder de compra, inclusive, não é por acaso que muitas empresas estão saindo do Brasil, que sofre há alguns anos um processo continuo de desindustrialização.
Segundo estudo feito pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) para o Estadão/Broadcast, nos últimos 6 (seis) anos foram extintas 36,6 mil fábricas no Brasil, o que equivale a uma média de 17 fábricas fechadas por dia dentro deste período.7
Em contra partida, o mercado de carros de luxo está decolando em terras tupiniquins. A BMW teve um aumento de 43% nas vendas no primeiro semestre de 20218, enquanto Porsche bateu recorde de vendas em maio deste ano.9
Estes dados, combinados aos números cada vez mais negativos da economia nacional, demonstram que o consumo da classe mais abastada da população não tem o condão de aquecer o mercado consumidor e uma das razões para isso é que muitos destes produtos consumidos pelos mais ricos são importados.
Deste modo, fomentar a desigualdade social contribui para a estagnação da economia e para o processo de deterioração acelerada de nosso país, que chegou a ser a sexta maior economia do mundo em 2010 e hoje se encaminha para ser a 13ª, posto que ocupava em 2002.
Inclusive, o superendividamento da população brasileira é uma matéria que preocupa o legislador, que recentemente, alterou o CDC para criar medidas destinadas a evitar o endividamento do consumidor de boa-fé que demonstrar não conseguir arcar com seus débitos sem que tenha que comprometer seu mínimo existencial.
Portanto, a revisão de contratos de consumo é uma ferramenta que possibilita reequilibras a balança da economia, que a muito vem sendo desregulada, principalmente quando estão na parte oposta ao consumidor grandes corporações e instituições financeiras que não sofreram e não sofrem as consequências negativas da pandemia no Brasil.
Estabelecer o critério objetivo de que todos sofreram igualmente com a pandemia da Covid-19 é ignorar o princípio constitucional da isonomia, o princípio da vulnerabilidade do consumidor e a importância da grande massa de consumo, composta pelas classes mais humildes e pela classe média deste país, que são a imensa maioria da população e, sobretudo, é fechar os olhos para os brasileiros que hoje formam filas para comprar ossos, enquanto a fila de espera para comprar um Porsche é de 6 meses.
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