NFT e mercado da arte - CUMA?
Os tokens não fungíveis já são uma realidade, mas você sabe o que são eles? Trataremos sobre o mercado da arte; as novas tecnologias e o fenômeno das NFTs e como o direito é atravessado por este universo.
quinta-feira, 11 de novembro de 2021
Atualizado em 12 de novembro de 2021 09:44
INTRODUÇÃO
Non fungible tokens, ou tokens não fungíveis em tradução livre, vêm cada vez mais sendo um assunto bastante discutido no mundo da arte. O universo da arte digital já é uma realidade que nos faz refletir e perceber que o entrelace entre a expressão artística e as novas demandas que emergem das novas tecnologias e plataformas digitais devem ser objeto de discussão.
Por detrás das NFTs, muito se discute sobre as tecnologias que são utilizadas para operacionalizar as transações, como a blockchain e as criptomoedas. Em linhas gerais, ainda que blockchain, criptomoedas e NFTs estejam inseridos num léxico "tech", ao tratarmos de NFTs estamos, em síntese, lidando com "um certificado digital de autenticidade. Ele serve para garantir a originalidade - na mesma linha do reconhecimento por firma, só que online, mais potente, mais seguro e à prova de fraudes." (BECKER, LATORACA, SAMICO, 2021).
Abordaremos, portanto: (i) o mercado da arte; (ii) as novas tecnologias e o fenômeno das NFTs e (iii) como o direito é atravessado por este universo.
"A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA" - UMA SÍNTESE DO MERCADO DA ARTE
Por que necessitamos da arte? Por que ela nos serve enquanto um fenômeno fundamental para nossas vidas?
Seria porque a plenitude humana só é alcançada diante do impulso lúdico que a esfera estética nos proporciona, como propõe Schiller? Seria este impulso lúdico justamente o equilíbrio entre a sensibilidade e razão que não nos ocorre na sobrepujança da razão? (SCHILLER, 2002)
Independentemente do que seja a força motriz da arte em si, que nos afeta em nosso cotidiano, ela deve ser observada não somente no plano dos afetos individuais, mas também enquanto um indicador social, econômico e de capital cultural (ROBERTSON,2005), sendo, portanto, um componente fundamental para a medição de qualidade de vida de determinada nação.
Já em outro sentido, o da criação artística, da obra, a "obra de arte" é encarada enquanto um bem heterogêneo com poucas opções de sua substituição colocando àquele que a possui numa certa condição monopolista (IDEM), o que faz com que obras de arte sejam negociadas como uma espécie de commodity de (possível) alto valor agregado.
O mercado da arte funciona como um palco onde fornecedores e consumidores realizam suas trocas - como em tantos outros. Porém, por sua característica suis generis, produtos artísticos são valorados a partir de uma série de características objetivas e subjetivas que determinam o preço da "arte" - autoria, data da obra, reputação e sobretudo, a quantia em dinheiro à disposição do comprador. Todas estas características são sopesadas quando da determinação do preço de uma obra de arte.
"Diante desta característica própria do mercado da arte o mercado é segmentado de forma horizontal entre o mercado primário, secundário e o chamado "mercado negro". Assim, percebemos que agentes da arte, como galerias e negociantes são essenciais para o fomento destes ecossistemas, porém não o são fundamentais tampouco absolutos. Isto devido ao fato destes se adaptarem às mudanças sociais, econômicas e tecnológicas que ocorrem no mundo" (BSTEH, Sheila, 2021).
NFTs E ATIVOS ARTÍSTICOS DIGITAIS
Como já exposto por outros colegas, podemos dizer que NFTs funcionam como uma espécie de certificado digital de autenticidade (BECKER, LATORACA, SAMICO, 2021). Mas o que isto tem a ver com obras de artes? E com jogos eletrônicos? Mercado Fonográfico?
Ora, tudo!
Vejamos, as NFTs são unidades de dados armazenados em uma blockchain capaz de certificar que determinado ativo digital é único e, portanto, não é intercambiável, enquanto um certificado também único que atesta a propriedade sob aquele ativo digital (NADINI, Matthieu; ALESSANDRETTI, Laura; DI GIACINTO, Flavio; MARTINO, Mauro; LUCA, Maria; BARONCHELLI, Andrea, 2021).
NFTs são a representação de um bem único com a devida certificação de propriedade digital, podendo ser utilizado em objetos físicos como por exemplo uma obra de arte, uma moeda antiga rara ou também em casos de cards colecionáveis. Todavia, percebemos que a utilização dos NFTs vem aparecendo com mais frequência na comercialização dos chamados objetos digitais como por exemplo obras de artes digitais, "skins" dentro de jogos online ou até mesmo um "meme".
Diferente das criptomoedas, que também se aproveitam da tecnologia descentralizada do blockchain, os NFTs não são fungíveis já que eles não podem ser substituídos por outras de valor equivalente. Daí sua singularidade, o que explica sua utilização na indústria da arte, ou, mais especificamente, da arte digital.
Portanto, os NFTs funcionam como uma espécie de certificado de autenticidade e propriedade digital, garantido ao seu detentor a posse de determinado item exclusivo ou digital. Essa modalidade vem sendo muito aproveitada para ativos como artes digitais, cards colecionáveis e itens internos de jogos.
"The first example of NFTs used to represent digital art concerns CryptoKitties, a blockchain game on Ethereum that allows players to purchase, collect, breed and sell virtual cats. In December 2017, the game congested the Ethereum network. By many considered a chief example of the irrationality driving cryptocurrency market in 2017" (Idem)
No ano de 2021, apenas nos seus primeiros quatro meses, o mercado de NFTs movimentou em torno de 2 bilhões de dólares, quantia dez vezes superior à registrada no ano inteiro de 2020 (Idem).
Já imaginou gastar 570 mil dólares por um GIF de gatinho? E quase 3 milhões de dólares por um "tweet"? Estes não são exemplos fictícios.
"Em março de 2021, a prestigiada casa de leilões Christie's vendeu uma coleção do artista Beeple intitulada "Everydays: the first 5000 days", contendo cinco mil dias de obras de arte digitial certificadas por um NFT, pelo valor recorde de 69 milhões de dólares. Esta foi a primeira casa de leilões tradicional a vender um NFT e a transação atraiu imediatamente a atenção do mercado artísticio global para a novidade" (NFT 2.0 - BLOCKCHAIN, MERCADO FONOGRÁFICO E DIST. DIRETA DE DIR. AUTORAIS).
Contextualizando o impacto das NFTs no mundo artístico, podemos inferir que (i) há uma certa democratização do acesso à este mercado, dado que os leilões de NFTs são públicos e diferem significativamente das casas de leilões tradicionais e seu caráter "elitista" bem como (ii) dá ao artista um alto grau de independência de determinadas instituições e stakeholders envolvidos no mercado (BSTEH, Sheila, 2021).
Walter Benjamin em "A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica" destaca como a Arte vai perdendo sua "aura" por começar a circular fora dos locais onde aquela lhe era concedida, como todo o ritual que inaugurava a experiência da, por isso também rara e única, Obra de Arte.
Considerando que o mundo digital é talvez um ápice da reprodutibilidade técnica, os NFTs representariam assim um retorno à "aura" e, por isso, dando condições ainda mais objetivas para sua valorização tal qual o mercado da Arte.
INTERSEÇÕES JURÍDICAS
No plano geral, dentre as vantagens das NFTs estão o altíssimo grau de transparência, junto da proteção ao direito autoral e, também no que tange à gestão de royalties. Isto dado à possibilidade de o autor da obra programar por meio de contratos "smarts" (smart contracts), o recebimento de seus royalties diretamente em criptomoeda.
É este justamente o caso envolvendo o primeiro leilão brasileiro de arte em NFT, do artista plástico Bel Borba. Em julho deste ano será negociada a obra "Fronteira Fisico/Digital" que será recortada em cem partes e leiloada com lance mínimo de 600 dólares.
Pelas transações serem realizadas em uma blockchain, de forma rastreável, o artista brasileiro irá "receber uma porcentagem do valor sempre que uma das cem partes de sua obra for leiloada for vendida novamente (BECKER, LATORACA, SAMICO, 2021).
Assim, compreendemos que as NFTs instauraram no mercado da arte múltiplas possibilidades no que tange à autenticidade e distribuição de direitos autorais. Eis que o fenômeno da tokenização de obras e fonogramas merece destaque frente às transformações tecnológicas de nossa época.
PERSPECTIVAS DE MERCADO E MEDIDAS KYC E AML
Os efeitos econômicos regulatórios sobre transações realizadas em ativos artísticos digitais devem ser bem observados a longo prazo. O que podemos afirmar é que este parece ser um caminho sem volta.
Podemos subdividir os itens transacionados no mercado de NFTs em algumas categorias como (i) arte; (ii) colecionáveis; (iii) metaverso; (iv) jogos; (v) outros e; (vi) utilitários NADINI, Matthieu; ALESSANDRETTI, Laura; DI GIACINTO, Flavio; MARTINO, Mauro; LUCA, Maria; BARONCHELLI, Andrea, 2021)
Atualmente, o mercado artístico atua com certa preponderância dentre as categorias de NFTs representando entre janeiro de 2019 e julho de 2020 aproximadamente 90% do volume de transações em NFTs.
"Overall, we observe that the share of volume spent in Art has been growing since 2020, while the share of transactions has been decreasing. The discrepancy between volume and transactions reveals that prices of items categorized as Art are higher, on average, compared to other categories". NADINI, Matthieu; ALESSANDRETTI, Laura; DI GIACINTO, Flavio; MARTINO, Mauro; LUCA, Maria; BARONCHELLI, Andrea, 2021)
A constatação acima nos faz acender um certo alerta, considerando que o mercado de obras de artes é comumente conhecido como um caminho para a lavagem de dinheiro e outros crimes de natureza econômica.
O mercado da arte já é tido como sensível às atividades que Lavagem de Dinheiro, Financiamento ao Terrorismo e à Proliferação de Armas de Destruição em Massa (PLDFT/AMLFTWD), sendo a Portaria 396 de 15 de setembro de 20161 regulando ao comando da lei de Lavagem de Dinheiro, 9.613/98.
Com a sistemática internacional de Prevenção à Lavagem, a nova lei dos Estados Unidos, a Anti Money Laudering and Countering of Terrorism Act of 20202 traz outras novidades para o controle, sendo o mercado da Arte desde sempre observado, vide o relatório elaborado pelo senado norte-americano intitulado "The art industry and US Policies that undermine sanctions" (INSERIR BIBLIOGRAFIA)
Com as NFTs também ao alcance deste controle, a gerência de Risco às operações precisa de atenção redobrada, informando-se e estruturando continuamente seus instrumentos de Compliance, em especial os Procedimentos de Conhecimento. Mais importante é percebermos que ao risco de crimes, o contínuo debate entre diferentes profissionais e experiências é o caminho para uma prática acentuada e profunda reflexão sobre como manter-se no mercado pelos seus próprios interesses, e não servindo a operações ilícitas.
CONCLUSÃO
Considerando o alto volume de negociações de NFTs a nível global, acreditamos que esse é um "trem que já partiu". É natural que as transações envolvendo artes em NFT devam permanecer em crescimento progressivo nos próximos anos.
Finalmente, existem uma série de desafios que deverão ser superados até que as transações dessa natureza sejam difundidas para a população em massa, sobretudo os cuidados que os stakeholders desse mercado devem ter em políticas para mitigar ilegalismos bem como o desenvolvimento dessas transações enquanto uma ferramenta de empoderamento de artistas quando da distribuição direta de seus royalties.
Enfim, "não há mercado de arte sem incertezas" (Klamer, 2014).
_________
_________
BECKER, Daniel; LATORACA, Nicole; SAMICO, Paulo. What the NFT. JOTA, 2021.
BSTEH, Sheila. From Painting to Pixel: Understanding NFT artworks, 2021 Disponível em: < xxxxxxxxxxxxxxxxxx>. Acesso em: 30.07.2021.
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 2002.
ROBERTSON, Iain. Understanding International Art Markets and Management, Routledge, London and New York, 280 pp, 2005.
NADINI, Matthieu; ALESSANDRETTI, Laura; DI GIACINTO, Flavio; MARTINO, Mauro; LUCA, Maria; BARONCHELLI, Andrea. Mapping the NFT revolution: market trends, trade networks and visual features, 2021.
PESSERL, Alexandre. NFT 2.0: Blockchain, Mercado Fonográfico, Distribuição Direta e Direitos Autorais. Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, vol. 1, nº 1, p 255-294, 2021.
KLAMER, Arjo. Without uncertainty there is no art market. Em: DEMPSTER, Anna, Risk and uncertainty in the art world, pp 275- 287. Bloomsbury, Londres, 2014.
SENADO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, Subcomitê Permanente de Investigações, The art industry and US Policies that undermine sanctions, Washington, 2020.
Ivan Siqueira
Sócio fundador da Cardoso, Siqueira & Linhares; Mestre em Ciência Política, Pós-graduando em Direito Digital.