Um passo além da criminalização da política
Para afronta ao estado democrático e de direito, ainda mais grave do que a criminalização da política é a criminalização seletiva da política (ou a "politização dos justiceiros"), veículo de preferências ideológicas e de conquista de poder pelos agentes públicos de repressão criminal.
terça-feira, 9 de novembro de 2021
Atualizado às 10:38
A "criminalização da política" no Brasil, fenômeno que por si já embala um grave problema no equilíbrio entre os poderes democráticos, revelou, enfim, sua face oculta, ainda mais deletéria.
Aquilo que a olhos ingênuos aparentava ser apenas um plácido rearranjo de forças "pro societate", um "atalho constitucional-democrático", tem hoje evidenciada a torpeza de propósitos que lhe subjaz.
Lapidou-se, em verdade, a criminalização seletiva da política. Um movimento espúrio de politização de agentes da persecução estatal, que (ab)usaram de seus cargos, prerrogativas e poderes para escoar ideologias e idiossincrasias políticas, religiosas, morais...
Sob a retórica rasteira de estarem eles do "lado do bem", disfarçam o arrivismo de sempre: objetivos e pretensões pessoais de poder político e ganhos financeiros.
Seu método seria o uso soterrante e seletivo do direito penal e do aparato criminal para asfixiar "adversários políticos", seja em favor de aliados, seja em favor próprio, via ingresso direto e desabrido ao jogo político-eleitoral.
O combate à corrupção revelou-se artifício e argumento de quem, de fato, já estava corrompido e inebriado pelos bafejos do poder.
Mas como chegamos a isso?
Vale olhar um pouquinho para trás.
A invocação da "criminalização da política" deriva de discurso sedutor, demagógico, espargido pela mídia corporativa: a política tradicional e seus agentes estão impregnados pelo vírus da corrupção (o mote é historicamente recorrente) e, por isso, devem ser contidos, apeados da vida pública. É necessário fazer um grande expurgo para que algo (supostamente) novo, limpo e perfumado ocupe seu lugar.
Uma vez que a atividade política é apontada como o "alter ego" da corrupção, é ela quem sofre o maior desgaste com o bombardeio midiático diuturno. A Política com "p" maiúsculo, a ciência que busca o bem-estar social, também padece por tabela. O discurso fácil é o da "antipolítica", da "nova política", ainda que expelido pela boca anacrônica de politiqueiros felpudos.
Esse movimento local reflete em alguma medida o que parece ser uma tendência global: vive-se a era da "satanização" da esfera política, em especial, do parlamento, cujo espaço que se abre em termos de credibilidade representativa passa a ser ocupado por atores do âmbito judicial, em guloso ativismo.
A relação da mídia com a esfera judicial-criminal é de estreita simbiose, muito embora recheada de aspectos paradoxais (tão grandes e complexos que não me arrisco pitaquear por aqui). Essa convergência, que nada tem de nova, de tempos e tempos muda de patamar.
Quando atinge o pico, desborda na chamada "pauta única", geralmente a partir de uma concertação tácita entre oligarcas da mídia nacional (e seus recônditos interesses econômicos e políticos), que se expande a atores de outros setores.
Os números e os casos relacionados à propinagem passam a ser apresentados de modo sistemático, massivo e amplificado.
Um suposto nível altíssimo, inédito, sistêmico, de corrupção seria a "novidade" dessa imemorial prática ilícita ("intestinamente" conhecida por nosso baronato midiático). Nesse patamar, ela seria a causa de todos os males e vicissitudes do país e de sua população (na economia, saúde, educação, etc).
Passa-se, então, a incutir maciçamente a mensagem do descalabro, ao tempo em que se "descobre" a solução: é chegado o momento de modelar os heróis que irão salvar a pátria.
Quanto a esse desforço imagético-midiático, abro um parêntese para trazer o exemplo eloquente e icônico da corrupção na Petrobras.
Ricardo Semler, grande empresário, ex-dirigente da Fiesp, tucano histórico, publicou (21/11/2014) na Folha de São Paulo o artigo intitulado "Nunca se roubou tão pouco". Ali o autor revela por conhecimento próprio algo que "todos no mundo dos negócios sempre souberam": desde a década de 70 até recentemente era impossível negociar com a Petrobras sem uma propina "institucionalizada" de 10%.
"Recentemente os percentuais caíram, foi o que mudou", escreveu o articulista (em 2014, repito). Essa informação bate com o que se noticiou nos anos seguintes, já na pauta da Lava Jato: setores da empresa faziam contratos à base de propina, "institucionalizada" no patamar de 3%.
No mesmo artigo, Semler, após apontar a hipocrisia de parte da elite econômica que se apresentava supostamente "escandalizada" com a corrupção de então, faz o seguinte registro: "A turma global que monitora a corrupção estima que 0,8% do PIB brasileiro é roubado. Esse número já foi de 3,1%, e estimam ter sido na casa de 5% há poucas décadas".
Fecho o parêntese para apresentar a constatação óbvia: menos importam os dados concretos e científicos para aferir, no Brasil, as variações do execrável fenômeno da corrupção. O que vale mesmo é a sensação que a mídia corporativa incute no imaginário popular, emparceirada de forma oportunista a outros atores (representantes do mercado, lideranças institucionais, religiosas, políticas).
Em suma: quem define o tamanho da corrupção pública não é o seu quantitativo real ou o grau de incrustamento no estado (medido por régua científica), mas o quão exaustivamente ela é apresentada pela mídia, segundo seu arbítrio e objetivos subterrâneos.
A imagem de dutos de dinheiro desviados, cédulas escondidas na cueca de um "mula" qualquer, se arraiga no córtex do telespectador e do (e)leitor. A sensação buscada - sensacionalismo - é de que a esmagadora maioria dos recursos do Brasil deixa de girar, escorre pelo ralo ou acumula-se estática nos cofres de corruptos e corruptores (como se esse naco de dinheiro surrupiado, 0,8%, parasse de girar e, mais que isso, obstruísse os outros 99,2%...). Enquanto todo o resto - saúde, educação, emprego - segue à míngua, a macroeconomia combalida, tudo por causa desses cuecões recheados.
De nada valem os números, os indicadores sociais e econômicos, a técnica, a ciência, enfim, os fatos. Pobres fatos! O que vale é o que foi noticiado, a versão goebellsmente repetida por mil vezes. Não importa qualquer processo de checagem e validação da versão; importa que "todo mundo (já) sabe que fulano é corrupto" e "na estatal sicrana só se faz corrupção". E aí reside o grande truque, é nessa hora que o prestidigitador esconde as mãos: a versão mil vezes publicada ganha vida própria, desvincula-se de quem a pariu e se transforma em fato aparente, com foros de notoriedade.
Chega o momento em que o alarme da intolerabilidade, da revolta, do repúdio à prática da corrupção vem de ser calculadamente engatilhado por esses atores aliados, responsáveis por seu disparo no momento mais oportuno. O mesmo alarme que se manteve mudo convenientemente por muitas décadas, enquanto o sistema atendia plenamente aos interesses dessa mesma oligarquia.
O processo formal de responsabilização quanto à culpa pré-estabelecida virá em seguida. Servirá para "vestir" a versão e aquela "certeza" formatada sobre algo que seja, de preferência, minimante verossímil. Remodelam-se os fatos. Pobres fatos!
É nesse ambiente, em meio à concertação liderada pela "mídia do mercado", que, de tempos em tempos, emergem os oportunistas, os salvadores da pátria, os bastiões da moralidade, paladinos anticorrupção, caça-marajás e outras tranqueiras mais.
Suas ações e feitos - reais ou artificiais - tornam-se fetiches, ocupam as novas "pautas únicas" que se justapõem às pautas da corrupção. No bloco anterior só se falava dos malfeitos e malfeitores; agora, há também os heróis que combatem os crimes e os criminosos. A retórica que esses heróis regurgitam vale mais do que qualquer fato (pobre fato!), não precisa ser checada, muito menos questionada. E nem mesmo lícita: afinal, vazamentos criminosos são muito bem-vindos!
Com o ambiente midiático propício, o persecutor arrivista se assanha, esgarça o direito penal, flerta com a responsabilização objetiva, mitifica convicções e vantagens indeterminadas, enxovalha princípios processuais, estupra regras procedimentais, roteiriza delações, lambuza-se de provas ilícitas. Afinal, o público e notório, ainda que forjado, não precisa ser provado: "todo mundo sabe"...
Se algo fugir do controle e sua batata assar, o arrivista ainda pode se livrar do peso morto, despir-se das vestes talares, arreganhar os dentes e seguir pessoalmente para o front.
O produto mais recente de toda essa concertação escapou um tiquinho do script. Pariu-se um filho feio. Só por isso, seus genitores desnaturados avançaram mais um passo: sacaram a fantasia e, desavergonhadamente, já voltam a copular.
A seletividade da criminalização da politica, enfim, se apresenta ao respeitável publico. Nua e crua.