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Qual o conceito de vítima e qual sua importância para a criminologia?

O advogado da vítima não pode dispensar o trabalho do Psicólogo Jurídico, pois o laudo produzido será a prova técnica importante para que o juiz arbitre a sanção ao infrator, inclusive sua quantificação em termos pecuniários indenizatórios.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Atualizado em 8 de novembro de 2021 10:02

(Imagem: Arte Migalhas)

Olá colegas Migalheiros!

No artigo de hoje, trago um tema pouco discutido, porém extremamente relevante para a Psicologia Jurídica, que é do interesse de advogados e operadores do Direito, bem como para os psicólogos que se dedicam aos Direitos Humanos e à interface da Ciência Psicológica com o Direito: a Vitimologia.

A Vitimologia e o conceito de vítima surgiram logo após a 2ª. Guerra Mundial, com o advogado israelense Benyamin Mendelsohn que, em 1947, pronunciou na Universidade de Bucareste sua conferência "Um horizonte novo na ciência biopsicossocial: a Vitimologia" (OLIVEIRA, 2018)1.

Assim, diante do contexto do Holocausto e outras manifestações de genocídio e produção de vítimas em larga escala, houve a seguinte conceituação de Vítima:

Declaração sobre os princípios fundamentais da Justiça para as vítimas de delitos e abuso de poder aprovada pela 96.ª Sessão Plenária da ONU, em 29 de novembro de 19852:

  • pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou detrimento substancial de seus direitos fundamentais, como consequência de ações e omissões que violem a legislação penal vigente nos Estados Membros, incluída a que proíbe o abuso de poder;
  • os familiares ou responsáveis que tenham relação imediata com a vítima direta e as pessoas que tenham sofrido danos ao intervir para assistir a vítima em perigo ou para prevenir a vitimização;
  • todas as pessoas sem distinção alguma: raça, cor, sexo, idade, idioma, religião, nacionalidade, opinião política ou de outra índole, crenças e práticas culturais, situação econômica, nascimento ou situação familiar, origem ética ou social, ou impedimento físico.

Ocorre, porém, que existe uma tendência a reproduzirmos representações sociais3 (conforme MOSCOVICI, 2015)4 da fragilidade da figura da 'vítima', da incivilidade da figura do 'agressor' e da brutalidade da concepção de 'violência'. SARTI (2011)5 problematiza essas questões, quando afirma que os estudos sobre a violência contra a mulher nos anos 1980, a partir do conceito de gênero, fizeram a crítica da vitimização, que supunha as mulheres como vítimas passivas da dominação masculina, mas que os mecanismos sociais ainda hoje reiteram esse posicionamento de manutenção dos padrões ao enfocar somente no sofrimento da vítima, descontextualizando dos fatores multifacetados da relação de violência. Para essa autora, a construção da pessoa como vítima no mundo contemporâneo é pensada como uma forma de conferir reconhecimento social ao sofrimento, circunscrevendo-o e dando-lhe inteligibilidade. Do mesmo modo, expressar a dor e o sofrimento supõe códigos culturais que sancionam as formas de manifestação dos sentimentos, suscitando discussões morais e exigindo reparação e cuidado.

Para a Criminologia, essa discussão é relevante porque aponta também para aspectos da personalidade não somente do acusado de agressão (suposto agressor), como também da alegada vítima (ou suposta vítima). Conforme explica OLIVEIRA (2018, p.18, cit.):

[...] os estudiosos e investigadores da Vitimologia se voltam cada vez mais para os dados da personalidade revelados nas repercussões da constituição genética, disposição do temperamento, formação do caráter, adaptação ambiental, reações oriundas da influência do físico sobre o psíquico e vice-versa.  Aqui reside o grande mérito dos recorrentes estudos e pesquisas vitimológicas: possibilitar reflexão sistemática e coerente sobre a criatura humana capaz de sublimar-se na força motora do heroísmo ou degradar-se no espectro do crime com os frutos venenosos.

Nesse sentido, BRETAS (2010)6 entende que a vítima também precisa ser trazida para o palco da discussão criminológica, mesmo no contexto atual brasileiro. Isso porque, segundo ele, ações penais públicas incondicionadas, em que o Ministério Público arroga para si a legitimidade do poder punitivo sem a participação da real vítima, é uma "aberração" (sic, do autor), "[...] quando se tem em mente um crime não violento, contra bem jurídico individual, como o furto, por exemplo. [...]", e padece de legitimidade. "Assim, o redescobrimento da vítima no protagonismo conflitivo do crime é um desafio que deve ser enfrentado pelas investigações de vitimologia" (BRETAS, 2010, p. 33).

A Vitimologia se ocupa também do estudo da personalidade do infrator e da vítima, sob dois aspectos (OLIVEIRA, 2018, cit,):

a) Perturbações: personalidade psicopáticas, desvios sexuais, alcoolismo, dependência de drogas.

b) Núcleo vitimológico: entendimento de que a vítima não se reduz a uma passiva receptadora da ação delituosa, mas também pode revelar uma especial tendência ou inclinação para ser vítima, a partir de uma predisposição, em decorrência de certa debilidade biológica ou psicológica que faz a pessoa ser propensa tanto a ser criminosa como de ser vítima de si ou dos outros7. Não confundir com a teoria da 'vítima nata' ou do 'criminoso nato'8.

E o que é Vitimização?

Vitimização é qualquer tipo de violência praticada contra a vítima, podendo ser física, sexual e/ou psicológica. Os requisitos para sua ocorrência são:

  •       causar um dano;
  •       fazer uso da força (física ou psíquica);
  •       ser intencional;
  •       ir contra a livre e espontânea vontade de quem é objeto do dano.

Os principais tipos de vitimização são:

  Física:

  • Negligência (com a higiene, alimentação);
  • Abandono;
  • Maus-tratos, agressão.

  Sexual:

  • Carícias, toques, prazer, desejo, sedução, atenção especial;
  • Tortura, Sadismo, Masoquismo, Conjunção carnal (estupro), Sexo oral;
  • Voyeurismo, Exibicionismo, Pornografia;
  • Cyberpedofilia, Sexting, "Revenge porn" (pornografia de vingança/revanche), envio de imagens de nudez.

  Psicológica:

  •  Negligência afetiva;
  • Manipulação/chantagem emocional;
  • Alienação Parental / Síndrome de Alienação Parental.

As principais consequências da Vitimização são:

  • Consequências físicas: variando de pequenas cicatrizes até danos cerebrais permanentes;
  • Consequências psicológicas: de baixa autoestima até desordens psíquicas severas;
  • Cognitivas: desde deficiência de atenção e dificuldades de aprendizado até distúrbios orgânicos cerebrais graves;
  • Comportamentais: de dificuldades de relacionamento até suicídio.

Para se apurar o dano, há a necessidade de realização de uma Avaliação Psicológica completa, analisando vários aspectos da personalidade da vítima, mensuração de eventuais sequelas neuropsicológicas, contexto da vitimização, inclusive traçar o perfil do agressor (se possível), mediante entrevistas e utilização indispensável de instrumentos (testes, protocolos) validados pelo Sistema SATEPSI-CFP. Com o laudo em mãos, é possível comprovar o nexo causal entre o dano sofrido pela vítima e a vitimização alegada. O Advogado da vítima não pode dispensar o trabalho do Psicólogo Jurídico, pois o laudo produzido será a prova técnica importante para que o juiz arbitre a sanção ao infrator, inclusive sua quantificação em termos pecuniários indenizatórios.

Espero que tenham apreciado o artigo, e compreendam a importância do trabalho conjunto do Psicólogo Jurídico com os operadores do Direito, para a plena assessoria à Vítima, em nome da Cidadania e dos Direitos Humanos.

Até o próximo artigo!

_________

1 OLIVEIRA, E. Vitimologia e Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2018.

2  Disponível aqui.

3 Segundo o autor, uma reprodução de representações sociais anacrônicas que se tornam tão 'fossilizadas' (MOSCOVICI, 2015, p.34) quanto mais inconscientes forem as suas origens.

4 MOSCOVICI, S. Representações sociais: pesquisas em Psicologia Social. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

5 SARTI, C. A vítima como figura contemporânea. Caderno CRH. Salvador, v. 24, n. 61, p. 51-61, jan.-abr. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2020.

6 BRETAS, A.S.N. Fundamentos da Criminologia Crítica. Curitiba: Juruá, 2010.

7 OLIVEIRA (2018, p.32, cit.) menciona HENTING (1962) expõe o conceito de "vítima latente ou por tendência":

[...] aquele que tem especial predisposição ou inclinação para converter-se em objeto de todas as catástrofes e ações criminosas, dada a sua predisposição ou vocação a esses efeitos na personalidade. Trata-se, assim, de indivíduo que não nasce vítima, contudo sofre a diminuição de sua resistência orgânica devido a uma combinação de forças de índole biológica ou de encadeamento mesológico, forças essas aptas a alterar o ritmo da conduta e a reduzir o poder de crítica e de determinação frente aos fatos e atitudes. 

8 A noção do criminoso nato, a partir dos anos 50, recebia contribuições de diversas correntes de pensamento (inclusive a Antropologia Criminal de Cesare Lombroso - que deu origem ao 'racismo científico' no Brasil) -, e entende o crime como uma expressão de um instinto inato, acrescentado de uma anomalia genética.

Denise Maria Perissini da Silva

VIP Denise Maria Perissini da Silva

Psicóloga clínica e jurídica. Coordenadora PG Psicologia Jurídica UNISA. Prof.SEWELL/SECRIM. Colaboradora Comissões OAB/SP. Autora livros Psicologia Jurídica. Perissini Cursos e Treinamentos S/C.

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