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Desmonte do Estado e do Direito à existência digna

O presente artigo analisa as atuais políticas ultraliberais de desmonte do Estado brasileiro e a não observância dos princípios fundamentais, assegurados na Constituição de 1988, que põem em risco a existência digna da população e o meio ambiente equilibrado.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Atualizado às 09:20

(Imagem: Arte Migalhas)

I. Introdução

Nos anos de 1990, quando se intensificou no Brasil o desmantelamento da participação do Estado na ordem econômica, mediante a privatização de empresas estatais que atuavam em áreas estratégicas como siderurgia, mineração, petroquímica, telefonia, debateu-se quais deveriam ser os limites da intervenção do Estado na ordem econômica. Naquela oportunidade, lembrei que:

O Estado, formado pela vontade coletiva organizada, sempre procurou colocar-se, nas diversas fases históricas, conforme os interesses e anseios da sociedade

E' nesse sentido que a ação estatal na atividade econômica se formou ao longo do tempo. Ora o Estado e' convocado para participar do desenvolvimento da atividade econômica, ora e' destituído do exercício de tal atividade, sob a alegação de que não cabe a ele interferir em assuntos dessa natureza.

E' importante destacar que o papel de interventor assumido pelo Estado foi fundamental no desenvolvimento da ordem econômica e da sociedade organizada, principalmente nos períodos de crise enfrentados pelo capitalismo.

Portanto, o papel do Estado e' o de provedor do interesse geral, devendo ser direcionado a` vontade coletiva, seja na ordem política institucional ou na ordem econômica. Assim, o Estado agiu, quando convocado, para atuar como empresário na ordem econômica.1

Ocorre que, efetuadas aquelas privatizações, com a transferência do patrimônio público para o setor privado financeiro, está em curso na atual quadra histórica, principalmente após a instabilidade democrática ocorrida a partir de 2016, o desmonte acelerado do Estado de bem-estar social, o que está sendo feito de forma atabalhoada e em prejuízo da maioria da população do país e do meio ambiente equilibrado.

As reformas apresentadas e colocadas em práticas estão em descompasso até mesmo com as propostas do liberalismo; e tem sido feitas sem observância dos princípios fundamentais estabelecidos na Constituição, inclusive no capítulo referente à ordem econômica.

Este texto visa analisar as propostas de desmantelamento do Estado, apresentadas pelo atual governo brasileiro, de viés de extrema-direita, que colidem com as garantias de bem estar-social construídas pela sociedade brasileira durante o século XX, que estão gravadas como princípios fundamentais e estruturantes da Constituição de 1988.

Como hipótese para este trabalho, pode-se afirmar que o desmantelamento do aparelho estatal brasileiro e das políticas de desenvolvimento e promoção social estão em desacordo com as práticas econômicas e ambientais em curso nos países desenvolvidos, na medida em que governos estão propondo a ampliação de recursos orçamentários para ampliar políticas de desenvolvimento que possam melhorar as condições de vida dos seus cidadãos, que foram agravadas ao longo da pandemia da Covid-192.

II. Políticas de desmonte do Estado e descompasso com o liberalismo

O atual governo atua de modo acelerado para implodir o Estado brasileiro, conforme exigido pelos financistas ultraliberais. O argumento empregado é a necessidade de "liberdade econômica", que pode ser lida como nenhuma ação efetiva do aparelhamento estatal, seja para fiscalizar ou atuar na defesa da sociedade, o que se contrapõe até mesmo ao objetivo de constituição do Estado liberal, como iremos demonstrar a seguir. 

Tendo em vista o prosseguimento dessa política, o destino dos cidadãos encontra-se nas mãos dos senhores do mercado, que, livres para atuar sem fiscalização ou freio, impõem desmatamentos de reservas florestais e preços abusivos sobre produtos essenciais, como alimentos, combustíveis, energia etc.; e, com isto, aumentam exponencialmente os seus lucros diante da exploração da força de trabalho, cujos integrantes empobrecem assustadoramente3.

O grau de exploração atual é tão intenso que se contrapõe à proposta inicial de formação do Estado, que tinha por objetivo garantir a paz e a segurança para as pessoas, uma vez que, no anterior estado da natureza, viviam em permanente guerra e destruição.

Porém, o Estado criado para dar segurança à propriedade e garantir as liberdades individuais não foi suficiente para atender às necessidades humanas, em razão da concentração de capitais. Por isso, com a evolução do liberalismo, tornou-se necessária a concessão de direitos sociais para estabilizar os muitos conflitos, e, por meio do consenso político, econômico e social, buscou-se um caminho para a harmonia imprescindível para a evolução da sociedade.

Surgiu assim o Estado-providência ou do bem-estar social e, a partir do utilitarismo, estabeleceu-se que o interesse coletivo deveria prevalecer sobre o individual. Desta forma, todo um sistema de solidariedade foi constituído nos países ocidentais, com a finalidade de prover de forma gratuita a educação, a saúde, o transporte público e a previdência e assistência social, visando assegurar a existência digna como um pressuposto dos direitos humanos.

Tudo isto foi construído e colocado em prática pelos liberais, para conter o avanço dos ideais socialistas, que difundiam uma ordem baseada na valorização do trabalho e na solidariedade.

III. A quimera da desregulamentação do mercado

Porém, nos últimos tempos, no Brasil, tem sido imposto o extermínio de todos os sistemas de proteção social e de solidariedade, outrora constituídos para proteger os homens, motivo de criação do Estado moderno. Induzidos por falsos motivos, os cidadãos são jogados uns contra os outros, levando-os ao conflito permanente; as causas desse mal-estar contemporâneo são distorcidas e atribuídas ao Estado, ocultando-se, entretanto, que, à frente dele está a classe dominante, que se beneficia da exploração do trabalho.

Infelizmente, tem triunfado o discurso do mercado financeiro, essa esdrúxula estrutura onde pouquíssima gente ganha muito dinheiro sem trabalhar, que age disseminando boatos e especulações e propõe para os desavisados que a raiz de todo mal é o Estado e os gastos sociais; e que, sendo assim, este deve ser extinto para que o mercado possa fazer o que quiser, sem fiscalização, como defendido pelo atual governo brasileiro.

Na primeira década do século XXI, esta mesma prática impôs ao mundo duas grandes crises do capital, em consequência da ausência de fiscalização proposta pelo mercado financeiro. A primeira foi em 2002, com a quebra da Enron, gigante americana do setor de energia, cujos dirigentes fraudaram os balanços da empresa para inflar seus lucros. Em 2008, ocorreu a falência do banco americano Lehman Brothers, em decorrência da manipulação da concessão de empréstimos bancários.

Nas duas situações, cujos efeitos se percebem até hoje, a causa foi a submissão a essa proposta de estado mínimo, no qual o mercado é seu próprio fiscal e o Poder Público não pode intervir em nada, devendo abster-se de prestar qualquer tipo de fiscalização, normatização e até mesmo serviços essenciais à população. 

IV. Desmonte do Estado de bem-estar social e ultraliberalismo

Aqueles agentes do mercado financeiro, que praticaram fraudes contábeis, simularam a concessão de financiamentos e impuseram a grave crise econômica que o mundo atravessa até os dias de hoje (crise que tem sido debelada mediante a transferência dos recursos oriundos do trabalho dos cidadãos para os bancos e as empresas falidas), são os mesmos que defendem a demolição do sistema de solidariedade e proteção social (que provê previdência social, educação, saúde etc.), construído a partir do consenso liberal para acomodar os conflitos do passado.

São esses homens do mercado financeiro, como o atual ministro da Fazenda, que defendem o fim do Estado e a privatização de todas as riquezas do país, para que pouquíssimas pessoas no mundo continuem a viver da exploração de todo o resto.

Isto é o que se denomina ultraliberalismo, que propõe a máxima exploração dos homens (sem se importar com nacionalidade, raça, gênero etc.) dos modos mais perversos e cruéis, que atentam diretamente contra a vida, o direito natural por excelência, positivado como princípio fundamental na Constituição brasileira4.

A investida ultraliberal contra o povo brasileiro, imposta e incentivada pelo atual governo, exige a resistência de todos nós, uma vez que estão destruindo o arcabouço de proteção criado para estabelecer a paz e a harmonia social, que até então garantia um mínimo de dignidade para a população e o meio ambiente necessário à sadia qualidade de vida. 

O Estado mínimo proposto por eles significa, efetivamente, nenhuma normatização, fiscalização ou prestação de serviços essenciais, nenhuma ação social, nenhuma proteção, nenhuma salvaguarda na doença, na velhice, na orfandade. 

V. Ordem econômica e existência digna

Desde o seu preâmbulo, a Constituição brasileira manifesta a preocupação em assegurar "o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social".

Nossa Carta estabelece como princípio fundamental da República a dignidade da pessoa humana, em seu artigo 1º, constando entre seus objetivos fundamentais (artigo 3º) o de "construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos".

Com efeito, para garantir os interesses da sociedade, o Estado não pode renunciar, como propõe o governo, ao seu papel de agente normativo e fiscalizador determinado na Constituição5. Por outro lado, não é admissível desviar a finalidade do Poder Público para chantagear, extorquir e obter vantagens burocráticas e patrimoniais, em detrimento da sociedade. Infelizmente, esse é o modo como se construiu e se estruturou o patrimonialismo brasileiro, que sempre relegou os direitos dos mais pobres em favor dos mais poderosos6, a exemplo do que se observa no desmonte atual das políticas de fiscalização ambiental e das relações de trabalho.

O texto constitucional é tão avançado e preocupado com a dignidade do ser humano que fez questão de ressaltar, nos seus artigos 1º, IV, e 170, a importância social do trabalho, erigido como um valor a ser defendido diante de qualquer outra força econômica.

Além disso, a Constituição valorizou tanto a vida que estabeleceu que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações"7, que foi estendido para a proteção do meio ambiente, uma vez que "o foco no crescimento econômico sem a devida preocupação ecológica consiste em ameaça presente e futura para o progresso sustentável das nações e até mesmo para a sobrevivência da espécie humana", como decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal8.

Isto é, nossa Carta Política reconhece que a existência digna da população está intimamente ligada à preservação do meio ambiente, de modo que é dever do Estado evitar sua destruição, que acarreta a marginalização e o flagelo de populações inteiras; proteger a natureza é essencial, pois, na verdade, a raça humana retira do meio o seu sustento e sua sobrevivência.

Por isso, todos esses preceitos fundamentais do Estado brasileiro não podem ser suprimidos, revogados e esquecidos por governos e legislaturas que atuam de forma contrária aos interesses do povo brasileiro. Para evitar isso é que foi promulgada a Constituição9.

Creio, com todas as vênias, que carecem desta análise os julgamentos de constitucionalidade, em curso na Corte Suprema, a respeito das reformas aprovadas depois de 2016, como a trabalhista e previdenciária, o teto de gastos e a autonomia do Banco Central.

Na verdade, todas as práticas reformistas apresentadas pelos governos, desde então, estão em desacordo também com a ordem econômica prevista na Constituição, que dispõe que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social".

Ou seja, o Texto Maior estabeleceu que a ordem econômica deve ser pautada na "existência digna, conforme os ditames da justiça social" e, desse modo, deixa nítido o conteúdo de proteção social do trabalho humano, que foi por ela apresentado como antecedente ao capital.

VI- Conclusão

Por tais razões, o desmonte do Estado brasileiro, posto em curso por um governo que entregou o destino dos seus cidadãos nas mãos do mercado, constitui gravíssimo atentado à Constituição de 1988. E todas as reformas impostas desde 2016 no Brasil ofendem frontalmente o compromisso assumido na Constituição, inclusive no capítulo da ordem econômica em vigor, pois o direito de todos a uma existência digna, ali assegurado, é o que não está havendo no país, diante da situação de miséria que vem sendo imposta à classe trabalhadora e do desmonte dos serviços públicos e das políticas de proteção ao meio ambiente, que deveriam atender e dar proteção aos cidadãos, em respeito ao princípio fundamental da dignidade humana, proposto pela ordem liberal em curso.

Por fim, o que se passa no Brasil é o reacionarismo mais perverso e ignorante, que se contrapõe às necessárias políticas de transferência de renda e distribuição de riqueza, atualmente debatidas e implementadas por diversos países desenvolvidos, de forma a aliviar a crescente concentração do poder econômico, que está levando a humanidade ao caos e à incerteza, inclusive em relação à própria existência da espécie humana, como alertado pela Organização das Nações Unidas.10

_________

1 OLIVEIRA, Jorge Rubem Folena. O Estado empresário: o fim de uma era. Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, v. 34. n. 134, p. 297.

2 "Biden apresentará projeto orçamentário de US$ 6 trilhões para ano fiscal de 2022." Disponível aqui. Acesso em 29 out 2021.

3 "Brasil começa 2021 com mais miseráveis que há uma década." Disponível aqui. Acesso em 29 out. 2021

4 Artigo 5º

5 Artigo 174.

6 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto - o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

7 Artigo 225.

8 STF, Plenário, ementa do acórdão na ADC 42-DF, relator Min. Luiz Fux.

9 OLIVEIRA, Jorge Rubem Folena. A constituição e povo brasileiro. Consultor Jurídico, 1 jul. 2020. Acesso me 29 out 2021.

10 "Dinossauro quebra protocolo diplomático para fazer apelo aos líderes mundiais". Disponível aqui. Acesso em 29 out. 2021.

Jorge Rubem Folena de Oliveira

Jorge Rubem Folena de Oliveira

Advogado, graduado pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Mestre em direito pela UFRJ. Doutor em ciência política pelo IUPERJ, com Pós-doutorado pelo CPDA/UFRRJ. Diretor do IAB Nacional.

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