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Os critérios de correção da redação do Enem: violação do indúbio pro alumnus

O princípio do indubio pro alumnus tem autoria brasileira, e merece ser observado pelo avaliador, professor, julgador e intérprete.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Atualizado às 14:30

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 2/6/2021 o Ministério da Educação (MEC) divulgou o edital oficial do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 20211. Como ocorreu em 2020, haverá versão impressa e digital do exame. Nada obstante, ao contrário do que ocorreu em 2020, nesta edição, essas versões terão provas idênticas e serão aplicadas nas mesmas datas, isto é, nos dias 21 e 28 de novembro.

Ao tratar da forma como serão corrigidas as redações, o edital consignou o seguinte [sem destaques no original]:

13.5 A redação será corrigida por dois corretores de forma independente.

13.5.1 Cada corretor atribuirá uma nota entre 0 (zero) e 200 (duzentos) pontos para cada uma das cinco competências.

13.5.2 A nota total de cada corretor corresponde à soma das notas atribuídas a cada uma das competências.

13.5.3 Considera-se que há discrepância entre dois corretores se suas notas totais diferirem por mais de 100 (cem) pontos; ou a diferença de suas notas em qualquer uma das competências for superior a 80 (oitenta) pontos; ou houver divergência de situação.

13.6 A nota final da redação do participante será atribuída da seguinte forma:

13.6.1 caso não haja discrepância entre os dois corretores, a nota final do participante será a média aritmética das notas totais atribuídas pelos dois corretores;

13.6.2 caso haja discrepância entre os dois corretores, haverá recurso de ofício (automático), e a redação será corrigida, de forma independente, por um terceiro corretor;

13.6.2.1 caso não haja discrepância entre o terceiro corretor e os outros dois corretores, a nota final do participante será a média aritmética entre as duas notas totais que mais se aproximarem, sendo descartada a outra nota;

13.6.2.2 sendo a nota total do terceiro corretor equidistante das notas totais atribuídas pelos outros dois corretores e na impossibilidade de aproximação da nota atribuída pelo terceiro corretor com um dos outros dois, por não haver qualquer discrepância entre eles, a redação será corrigida por uma banca composta por três corretores, que atribuirá a nota final do participante, sendo descartadas as notas anteriores;

13.6.2.3 caso haja discrepância entre o terceiro corretor e apenas um dos corretores, a nota final do participante será a média aritmética entre as duas notas atribuídas pelos corretores que não apresentaram discrepância, sendo descartada a outra nota;

13.6.2.4 caso o terceiro corretor apresente discrepância com os outros dois corretores, haverá novo recurso de ofício, e a redação será corrigida por uma banca composta por três corretores que atribuirá a nota final do participante, sendo descartadas as notas anteriores.

Tais cláusulas do edital, que são idênticas ao que foi posto em editais anteriores, notadamente no edital do Enem/2020 (e certamente se repetirá nos exames futuros) aparentemente violam o princípio in dubio pro alumnus,2 além de diversos princípios constitucionais.

Isso porque o candidato sequer tem vista da correção da redação na data em que a sua nota é publicada, o que inviabiliza totalmente um eventual recurso ao INEP, ainda que por via transversa, isto é, com base no direito constitucional de petição. Mais grave ainda: as inscrições para os programas de governo que utilizam a nota do ENEM como requisito de eliminação e classificação (SISU, FIES, PROUNI) normalmente abrem e se encerram antes da divulgação do espelho de correção.

O princípio do indubio pro alumnus aponta para a máxima segundo a qual diante de duas ou mais conclusões lógicas, não é razoável ao julgador/intérprete admitir justamente aquela contrária ao aluno, porque é ele a parte mais fraca a ser protegida na avaliação. No caso, estamos tratando apenas do ENEM, mas nada impede que tal princípio seja adotado para outras situações, como a de um concurso público, por exemplo. O ENEM não é apenas um exame avaliativo, mas uma forma de seleção para o acesso aos cursos superiores nas universidades, conforme é amplamente utilizado.

Na dúvida ou incompatibilidade de correções deve-se aplicar o referido princípio, de modo a favorecer o aluno e não prejudica-lo, especialmente diante dos princípios constitucionais da razoabilidade, proporcionalidade, além da boa-fé e acesso à educação. O espírito do ordenamento jurídico preza pela proteção da parte mais fraca, como por exemplo, no caso do indubio pro reo, indubio pro contribuinte, indubio pro misero, indubio pro consumidor etc.

Nesse sentido, confira-se importante julgado do STJ:

[...] V - Não é razoável admitir, sem qualquer fundamentação, a afirmação de que não tenha havido qualquer prejuízo na correção da prova de candidato, para a qual se utilizou espelho errado, e cuja pontuação o desclassificou por irrisórios 0,03 (três décimos), ou ainda que coubesse ao candidato a comprovação do prejuízo na correção, prova de dificílima produção, já que somente a Administração tem o domínio dos seus elementos. VI - Em casos tais, em que salta aos olhos o erro da Administração, que redunda em grave consequência ao candidato, deve-se prestigiar a presunção em favor do administrado, em analogia aos princípios do in dubio pro contribuinte, in dubio pro reo, in dubio pro misero, in dubio pro consumidor. [...] (REsp 1690252/RJ, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe 25/6/2021).

O ideal, sem ser pretencioso, é que a regra do edital do ENEM fosse interpretada em favor do candidato, nos seguintes termos:

"Caso haja discrepância entre o terceiro corretor e apenas um dos corretores, a nota final do participante será a média aritmética entre as duas notas atribuídas pelos corretores que não apresentaram discrepância, sendo descartada a outra nota, salvo se ela for maior que as outras duas, e beneficiar o participante, situação em que deverá prevalecer".

Na forma como está redigida, as cláusulas sob comento violam a própria constituição, notadamente o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, insculpidos no art. 5º, LV, da CF/88, já que o candidato sequer tem acesso ao espelho de correção na data em que é divulgada a nota.

Mais que isso, viola o próprio direito de petição, porquanto, a Constituição Federal de 1988 assegura no art. 5º, XXXIV, alínea "a" "o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder".

O edital não é superior à lei e à Constituição, muito pelo contrário, deve se curvar a elas se curvar. Não pode um edital, que é ato administrativo, galgar poder maior que a lei e a Constituição Federal, retirando do participante o direito fundamental de recurso!!!

Conforme o princípio in dubio pro alumnus, em caso de divergência entre as notas atribuídas pelos corretores, a que deveria prevalecer era a maior nota por eles dada, porquanto, isso sim, prestigia o ordenamento jurídico como deve ser concebido, que protege o mais fraco, ou seja, aquele que está no começo da vida, buscando realizar os seus sonhos e projetos de forma honesta e digna, entrando numa universidade e se qualificando para o mercado de trabalho.

Assim, é que ressoa inequívoca a violação à Razoabilidade, Proporcionalidade, Boa-fé e o Acesso à Educação, princípios de índole eminentemente constitucional.

O princípio do acesso à educação, diga-se de passagem, não só está insculpido no art. 3º, XIII, da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), como possui índole de direito fundamental, previsto no art. 205, da Constituição Federal, sendo que o acesso à universidade, viabilizado pelo Enem prestigia o espírito da norma constitucional, qual seja: o "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

O INEP não pode escudar-se em uma pretensa discricionariedade para criar barreiras arbitrárias e desproporcionais para o acesso às universidades públicas, de modo a ensejar a sensível diminuição do número de possíveis competidores e a impossibilidade de escolha pelos cursos com maiores nota de corte, como o de medicina.

Não se pode desprezar o fato de que "a letra mata, mas o espírito vivifica", conforme citou o Ministro Napoleão Maia Nunes, do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Mandado de Segurança 14.405/DF, DJe- 2/8/2010, no sentido de que "é mister que a Administração proceda como um autêntico Julgador, inclusive assimilando a força normativa dos princípios constitucionais, sem o que a exegese jurídica se torna pobre e desprovida dos seus fins: justiça e equidade. Littera enim occidit, spiritus autem vivificat (Apóstolo Paulo, II. Cor. 3:6)".

A autarquia federal ligada ao MEC não pode desempenhar o papel de adversária do participante do ENEM, incumbindo-lhe, ao revés, assegurar que minorias possam ter amplo acesso às universidades públicas. O Estado de Direito republicano e democrático que é, impõe à toda Administração Pública que os editais por elas publicados, estejam entrincheirados, sobretudo, pelos direitos fundamentais em um ambiente de perene diálogo com os participantes.

Deveras, para além de normas postas friamente no edital, é importante registrar que "Hoje, o sentido de Estado Democrático de Direito não se rege mais pela simples legalidade, que assumiu a feição de legalismo. O Estado contemporâneo submete-se à juridicidade, que abrange, além das regras positivas, os princípios jurídicos da justiça, da razoabilidade e da proporcionalidade. Desse modo, os conceitos abertos ou indeterminados não fornecem mais base jurídica suficiente para afastar a incidência de direitos subjetivos fundamentais".3

Assim, considerando a natureza social do ENEM, embora o edital seja a lei do Exame, certo é que a atividade administrativa se subordina indiscutivelmente aos princípios constitucionais acima elencados. O art. 6º da CF/88, para finalizar, traz como primeiro direito social, a educação, não podendo ser ela embaraçada por norma editalícia sob qualquer pretexto.

O princípio do indubio pro alumnus merece especial atenção pela Administração Pública, notadamente pelos gestores do Exame Nacional do Ensino Médio, de forma a dar ao edital que rege o ENEM a interpretação que mais beneficie o candidato, na esmagadora maioria, aspirante ao ingresso em uma universidade pública.

Outrossim, os julgadores, desde a Primeira Instância até as Cortes Superiores precisam estar atentos à eventuais violações aos diretos dos candidatos, evitando, quando provocados, criar barreiras que chancelam a qualquer custo os atos administrativos do INEP quanto ao tema, mas, na prática, inviabilizam o direito de o candidato recorrer ao controle jurisdicional do exame.

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1 Disponível aqui. Acesso em 26/10/2021.

2 Tal princípio foi capitaneado pela advogada Dra. Wanda Marisa Gomes Siqueira, OAB/RS nº 11060, que atuou como amici curiae no Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADP 186/DF, pelo Movimento contra o Desvirtuamento do Espírito da Política de Ações Afirmativas nas Universidades Federais e Instituto de Direito Público e Defesa Comunitária Popoular-IDEP. Para a causídica "O Direito Educacional não é valorizado, cheguei a criar um princípio in dubio pro alumnus para que os Juízes se apercebam que se o princípio in dubio pro reo é aplicado para absolver quem pratica delitos, com a mesma razão o principio in dubio pro alumnus deve ser aplicado para proteger o direito dos estudantes, especialmente para evitar o jubilamento de alunos nos cursos universitários e o direito de acesso e permanência nas Instituições de ensino". Disponível aqui. Acesso em 26/10/2021.

3 (STJ. MS 20.001/DF, Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/6/2019, DJe 2/9/2019).

Leonis de Oliveira Queiroz

Leonis de Oliveira Queiroz

Conselheiro Suplente do Conselho Penitenciário do Distrito Federal, servidor do Superior Tribunal de Justiça, Especialista em Direito Público e Mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília - UNB.

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