O prenúncio de uma nova "greve" dos caminhoneiros e os abusos verificados em 2018
Este artigo tem por finalidade demonstrar, à luz dos atos perpetrados durante a greve dos caminhoneiros ocorrida em 2018 e sob o prenúncio de uma nova greve em 1º de novembro de 2021, que o direito à greve, apesar de constitucionalmente previsto, não pode ser exercido com abuso, sob pena de configurar ato ilícito, contra o qual são cabíveis medidas jurídicas preventivas e repressivas.
segunda-feira, 1 de novembro de 2021
Atualizado às 08:50
A alta expressiva do preço da gasolina e do diesel, resultado do aumento da demanda por petróleo no mercado exterior, da profunda desvalorização cambial do real e do aumento do dólar - dentre outras causas diretas e/ou colaterais - tem gerado elevada insatisfação no mercado consumidor nacional, sobretudo na categoria dos rodoviários/caminhoneiros. Para agravar a situação, a Petrobras anunciou, em 25/10/2021, que irá reajustar o valor da gasolina em 6,8% e do diesel em 8,8% nas refinarias, o que, segundo analistas, implica a alta de R$ 0,21/litro e R$ 0,28/litro, respectivamente.
Indubitavelmente, o cenário que já estava sendo questionado pelos caminhoneiros, com rumores diuturnos de paralisação, ganhou um novo catalisador para a organização grevista da categoria a nível nacional. Hoje, diferentemente de outros momentos de tensão ocorridos no decorrer do ano, a ameaça de paralisação no dia 1º de novembro ganha contornos de efetividade e traz à memória o medo de revivermos os acontecimentos ilícitos que marcaram a greve dos caminhoneiros de 2018.
Mas por que o medo de revivermos os acontecimentos ilícitos da greve dos caminhoneiros de 2018? A insatisfação da categoria em razão da alta dos preços não seria legítima? O direito à greve não estaria baseado na lei e na Constituição Federal?
Não há dúvida de que a insatisfação da categoria é plenamente legítima e que o direito à greve é legalmente assegurado, conforme dispõe o art. 1º da lei 7.783/1989:
Art. 1º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
Tampouco há dúvida que a Constituição Federal, por meio do art. 9º, constante do título II, eleva o exercício da greve à categoria de direitos e garantias fundamentais:
Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
No entanto, como todo e qualquer direito, o movimento grevista não pode ser exercido com abuso, ou seja, não pode exceder "os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes", sob pena de se transmudar em ato ilícito, conforme dispõe o art. 187, do Código Civil:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Não por outra razão, a lei 7.783/1989 estipula limite ao exercício do direito de greve, definindo no seu art. 2º que ele deve ser pacífico, o que pressupõe a inviolabilidade aos direitos de outros cidadãos no seu exercício, especialmente aos direitos constitucionais de ir e vir, à saúde, à segurança e à vida.
Decerto, no momento em que representantes de determinados Conselhos de Transporte Rodoviário ameaçam adotar as mesmas medidas da fatídica greve do ano de 2018, atos de violação ao direito constitucional de ir e vir, à saúde e à vida, e consequentemente aos "limites impostos"' pelo fim econômico ou social da greve, "pela boa-fé e pelos bons costumes", são rapidamente revividos na memória coletiva.
A propósito, no ano de 2018, caminhões e veículos foram amontoados na pista de rolamento das rodovias estaduais e federais, pneus foram queimados, veículos e pessoas tiveram o direito fundamental de ir e vir cerceados e a prestação de serviços essenciais das Agências Públicas ou Concessionárias responsáveis pela gestão rodoviária - a nível nacional - foi praticamente interrompida.
A título de exemplo, o contingenciamento de caminhões e pessoas na pista de rolamento das rodovias estaduais e federais, em violação ao direito constitucional de ir e vir, impediu:
(i) O tráfego de ambulâncias para atendimento de ocorrências e enfermos, o que agrava o risco de vida;
(ii) O tráfego de outros caminhoneiros com alimentos perecíveis, remédios, vacinas, insumos para testes, equipamentos médicos (máscaras, respiradores etc.) e outros produtos essenciais a todos os cidadãos, o que agrava o risco à segurança e à saúde;
(iii) O tráfego de veículos de resgate (guincho) para acidentes e outros, o que agrava o risco à segurança, à saúde e à vida;
(iv) O tráfego de valores para abastecimento dos pedágios e de instituições financeiras.
Exatamente por isso, o Código de Trânsito Brasileiro positivou nos arts. 181, V e 253 a vedação de manifestações que tumultuem a higidez do tráfego e/ou bloqueio da pista.
Art. 181. Estacionar o veículo: [...] V - na pista de rolamento das estradas, das rodovias, das vias de trânsito rápido e das vias dotadas de acostamento: Infração - gravíssima. [...]
Art. 253. Bloquear a via com veículo: Infração - gravíssima; Penalidade - multa e apreensão do veículo; Medida administrativa - remoção do veículo.
A prática de restrição e fechamento de estradas e rodovias pode ainda exteriorizar diversas condutas que, claramente, constituem ilícitos penais, a exemplo de:
Coisas em lugar de uso comum (LCP):
Art. 37. Arremessar ou derramar em via pública, ou em lugar de uso comum, ou do uso alheio, coisa que possa ofender, sujar ou molestar alguém.
Incitação ao crime (CP)1
Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.
Apologia de crime ou criminoso (CP)
Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou
de autor de crime:
Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa."
Como se vê, as condutas praticadas na greve do ano de 2018 são contrárias ao deve ser jurídico e, portanto, mesmo sob análise abstrata, caso novamente praticadas, serão passíveis de represália e, por via de consequência, de tutela judicial dos direitos de todas as pessoas, físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, que forem efetivamente afetadas por tais atos.
Sem dúvida, desde a Concessionária que se vê diante da grave ameaça de não poder cumprir o serviço público essencial de manutenção, segurança e vigilância da rodovia em razão do risco de fechamento das pistas de rolamento, até o cidadão que for impedido de levar um ente querido ao hospital, todos têm direito - ao menos em abstrato - de obter tutela judicial, a fim de se prevenir em relação a tais ilícitos, por meio de tutelas inibitórias - a exemplo do interdito proibitório, no caso das gestoras da rodovia -, bem como de reprimi-los, por meio de medidas cominatórias, a exemplo da ação de reintegração de posse, ou até mesmo de ações lato sensu de obrigação de fazer e indenizatórias.
Portanto, ainda que sob as vestes do direito à greve, qualquer ato que viole o direito de outrem, que extrapole os limites impostos pelo seu fim social e econômico, pela boa-fé e pelos bons costumes, deve ser coibido.
Com isso não se está negando o direito à greve. Jamais! A reflexão que se pretende transmitir diz respeito exclusivamente aos excessos cometidos no ano de 2018, que certamente, e se espera, não ocorrerão dessa vez, sob pena de contra eventuais infratores, e não legítimos manifestantes, serem adotadas todas as medidas judiciais cabíveis para proteção do patrimônio público, bem como para impedir ocupações indevidas e irregulares da rodovia, preservando a vida humana e o direito de ir e vir dos usuários - ambos, constitucionalmente assegurados (art. 5º, da CRFB).
1 A incitação ao crime é constatada com certa frequência nos casos de fechamento de vias públicas, já que se percebe o aproveitamento de aglomerações de pessoas para a indução, instigação, provocação ou estimulo aos crimes acima expostos, iniciando a ideia da transgressão ilícita ou corroborando com sua ocorrência, já tendo ela previamente sido delineada por outrem.
Alexandre Cunha de Andrade
Advogado, atuante na área de Concessões e Infraestrutura, sócio do Fraga & Trigo Advogados, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e em Direito e Gestão Imobiliária pela Faculdade Baiana de Direito.