Primeiras impressões sobre a nova lei de improbidade administrativa à luz do direito administrativo sancionador
As alterações promovidas pela lei 14.230/21 promovem um redesenho profundo no regime jurídico que tutela os atos de improbidade e desautorizam, ante a sua total incompatibilidade, um eventual apego às balizas do marco legal anterior.
quarta-feira, 27 de outubro de 2021
Atualizado às 11:18
Conjugando-se os artigos 1º, §§ 1º, 2º e 3º, 11 §§ 1º e 2º da Lei de Improbidade Administrativa com a nova redação que lhes fora conferida pela lei 14.230/21, temos que o ato de improbidade passa a ser definido como a conduta funcional dolosa do agente público devidamente tipificada em lei, revestida de fins ilícitos e que tenha o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade.
Trata-se de uma disrupção no modelo adotado pela lei 8.429/92, vez que, ao contrário da lei 14.230/21, que conta com uma redação analítica, a redação lacônica, sintética e generalista de alguns dos dispositivos revogados da antiga Lei de Improbidade Administrativa permitia a caracterização do ato de improbidade quando constatado o elemento subjetivo dolo genérico na conduta do agente (v.g. STJ, AgRg no AREsp 595.192/DF).
Veja, o ato de improbidade, nos termos da nova Lei, sequer pode ser equiparado às hipóteses de responsabilização contidas no art. 28 da LINDB, pois se naquele dispositivo a responsabilização do agente público se dá em caso de dolo e erro grosseiro (que, como se sabe, equivale à culpa gravíssima), na lei 14.xxx/21 só há ato de improbidade se houver a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 não bastando a voluntariedade do agente.
Assim, na Nova Lei de Improbidade exige-se a caracterização de dolo específico (art. 1º, § 2º).
Ainda nesta seara do direito administrativo sancionador, a mudança mais radical foi o tratamento conferido ao descumprimento dos princípios da Administração Pública como elemento caracterizador do ato de improbidade, vez que na redação original do caput do art. 11 da Lei nº 8.429/1992 o ato de improbidade administrativa se manifestava quando da prática de conduta atentatória aos "princípios da administração pública" ou ainda da prática de "qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições", tudo isso sem prejuízo das condutas tipificadas nos incisos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX e X.
Na Nova Lei de Improbidade Administrativa, há um profundo redesenho deste art. 11, pois o dispositivo perde o caráter de "norma penal em branco" que era complementado pela interpretação que o operador do direito desse a conceitos jurídicos indeterminados (como moralidade, por exemplo) e passa a contemplar uma realidade na qual a configuração de ato de improbidade por desobediência a princípios só pode se dar apenas e tão somente quando verificadas as hipóteses previstas no rol exaustivo constante dos incisos do art. 11.
A redação dada pela lei 14.230/21 ao art. 11 da lei 8.429/92 deixa muito claro que tanto o ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública como a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade encontram suas tipificações em uma das condutas descritas nos incisos daquele dispositivo.
Passa a ser impossível, nos termos da Nova Lei de Improbidade Administrativa, ajuizar uma ação civil pública sob a alegação genérica de violação ao princípio da moralidade que seria complementada pela descrição dos fatos na causa de pedir. Assim, ou o pedido condenatório se fundamenta numa das hipóteses vedadas pelos incisos do art. 11, ou se estará diante de uma figura atípica não caracterizadora de ato de improbidade.
Dando sequência à análise das disrupções trazidas pela lei 14.230/21, a redação conferida ao § 4º do art. 1º da Nova Lei de Improbidade Administrativa estabelece que o sistema da improbidade se rege pelos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, o que nos leva a concluir de imediato que no âmbito dos processos penaliformes de improbidade administrativa aplica-se o princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica; veda-se o emprego da analogia in malam partem e admite-se a invocação do estado de necessidade como excludente de ilicitude por exemplo.
O princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica e a sua contraparte, a irretroatividade da norma penal mais gravosa, terão um grande impacto nas ações de improbidade que foram ajuizadas antes da lei 14.230/21 e nas que forem ajuizadas depois desta lei, mas referentes à fatos ocorridos quando da vigência da redação anterior da lei 8.429/92.
Vamos a dois exemplos práticos. No primeiro, ações civis públicas de improbidade fundadas na redação do art. 11 pré-lei 14.230/21 fazendo referência a uma violação ao princípio da moralidade, precisam ser indeferidas ante a aplicação retroativa da "abolitio criminis" decorrente da nova redação do art. 11. No segundo, a prescrição prevista no art. 23 da lei 8.429/92 que era de 5 anos (contado a partir do fim do exercício do mandato/cargo em comissão ou da ciência por parte da Administração), segue sendo aplicável aos casos pré-lei 14.230/21, não sendo possível fazer retroagir o novo prazo prescricional de 8 anos (via de regra contado a partir da data da ocorrência do fato) quando ele for prejudicial ao réu.
Este respeito aos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador na Nova Lei de Improbidade Administrativa também se verifica na redação do art. 12, § 7º que estabelece que estabelece uma expressa vedação ao bis in idem, que, em que pese fazer referência às sanções aplicadas a pessoas jurídicas e à lei 12.846/13, sinaliza claramente que a dupla punição pelo mesmo fato é intolerável, algo que aliás encontra albergue no § 3º do art. 22 da LINDB.
Para finalizar nossas primeiras impressões sobre os impactos que a Nova Lei de Improbidade Administrativa terá no direito administrativo sancionador, destacamos a previsão contida no art. 17, § 6º, I, no qual a lei 14.230/21 inseriu no regime jurídico da lei 8.429/92 a necessidade de individualização das condutas na petição inicial, algo que é simplesmente indispensável para um pleno exercício dialético de um contraditório efetivo no qual se garanta ao imputado a possiblidade de influenciar no resultado do processo.
Obviamente que essas breves linhas não esgotam o tema, mas o que aqui restou analisado já deixa bem claro que as alterações promovidas pela lei 14.230/21 promovem um redesenho profundo no regime jurídico que tutela os atos de improbidade e desautorizam, ante a sua total incompatibilidade, um eventual apego às balizas do marco legal anterior.