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A sentença declaratória de extinção da punibilidade pela morte do agente e a falsa certidão de óbito

A morte do agente é uma causa extintiva de punibilidade, entretanto, a sua declaração com base em documento falso não faz coisa julgada, admitindo-se a rescisão do decisum, com a consequente retomada do prosseguimento da persecução penal.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Atualizado em 27 de outubro de 2021 08:55

(Imagem: Arte Migalhas)

A punibilidade pode ser definida como a possibilidade de ser efetivada a sanção cominada na Lei Penal pelo Estado em decorrência da prática de uma determinada conduta típica, isto é, "com a prática da ação delituosa surge para o Estado o direito subjetivo à imposição da pena, que se expressa na pretensão punitiva. Esse direito subjetivo se exerce em relação ao transgressor da normal penal. A pena aparece como consequência jurídica da realização do crime".1

Esclareça-se, primeiramente, que para a constituição do jus puniendi é indispensável o reconhecimento da infração penal (crime ou contravenção penal), pois, somente a partir daí, em regra geral, é que estará constituído o direito do Estado de aplicar uma sanção penal como consequência da sua caracterização.

Nesse passo, o Código Penal, em seu art. 107, declara de forma exemplificativa algumas causas extintivas de punibilidade. São elas a morte do agente, a anistia, graça ou indulto, a retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso, a prescrição, decadência ou perempção, a renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada, a retratação do agente, nos casos em que a lei a admite e o perdão judicial, nos casos previstos em lei.

Pontue-se que a morte do agente, primeira das hipóteses acima citadas, decorre da aplicação de uma premissa do Direito Romano: "mors omnia solvit" (a morte tudo apaga). Segundo esta, depois do falecimento do indivíduo, não há que se falar em punição na seara penal.

Nesse descortino, "se não se intentou ação contra o acusado, ela não mais pode ter lugar; se se acha em curso e ele falece, o processo não prossegue; se foi condenado e morre, não se executa a pena; Não há, pois, procedimento penal contra o morto".

Por sua vez, a comprovação da morte do agente delituoso deverá ser demonstrada com a apresentação da certidão de óbito emitida pelo Cartório de Registro Civil, nos termos do disposto no art. 62 do Código de Processo Penal, in verbis:

"Art. 62. No caso de morte do acusado, o juiz somente à vista da certidão de óbito, e depois de ouvido o Ministério Público, declarará extinta a punibilidade."

O ponto controvertido, no entanto, está na seguinte indagação: poder-se-á rescindir a sentença penal que declara extinta a punibilidade pela morte do agente, com a consequente retomada da marcha processual, quando a referida comprovação se basear em uma certidão de óbito falsa?

Este questionamento permeia o Direito Penal há décadas e a sua resposta não encontra um posicionamento pacificado pela doutrina. Isto porque, em nosso ordenamento pátrio, somente se admite a revisão de uma sentença penal transitada em julgado em favor do réu, ou seja, não há que se falar em reexame de matéria desfavorável à defesa.

Logo, "se a extinção da punibilidade foi declarada com falsa certidão de óbito, tendo transitado em julgado a decisão, nenhuma possibilidade existe de reabrir o processo", porque "não existe revisão criminal contra o réu", como sustentado pelo saudoso professor Heleno Cláudio Fragoso.

Data maxima venia, referido posicionamento não nos parece compatível com as atuais diretrizes do Direito Penal.

Com efeito, para que um ato judicial produza efeitos no mundo externo é essencial a sua validade, i.e., é inexistente no mundo jurídico qualquer decisão amparada em prova falsa, seja no tocante ao seu conteúdo, ou mesmo quanto aos seus meios de produção.

Em outros termos, um documento falso não é capaz de produzir resultados jurídicos e, por conseguinte, a sentença não produzirá os seus efeitos.

Assim, se não há efeitos a serem produzidos, ela é, na verdade, inexistente para o nosso ordenamento jurídico. Nesse diapasão, a decisão declaratória de extinção da punibilidade pela morte do agente, baseada em falsa certidão de óbito, não faz coisa julgada e, portanto, o processo penal poderá retomar o seu andamento, desde que o prazo prescricional não tenha escoado em sua totalidade.

Aliás, referido entendimento se encontra devidamente alinhado com a jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal Federal, conforme se observa do precedente assim ementado:

"EMENTA "HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE AMPARADA EM CERTIDÃO DE ÓBITO FALSA. DECISÃO QUE RECONHECE A NULIDADE ABSOLUTA DO DECRETO E DETERMINA O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL. INOCORRÊNCIA DE REVISÃO PRO SOCIETATE E DE OFENSA À COISA JULGADA. PRONÚNCIA. ALEGADA INEXISTÊNCIA DE PROVAS OU INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA EM RELAÇÃO A CORRÉU. INVIABILIDADE DE REEXAME DE FATOS E PROVAS NA VIA ESTREITA DO WRIT CONSTITUCIONAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. ORDEM DENEGADA. 1. A decisão que, com base em certidão de óbito falsa, julga extinta a punibilidade do réu pode ser revogada, dado que não gera coisa julgada em sentido estrito. 2. Não é o habeas corpus meio idôneo para o reexame aprofundado dos fatos e da prova, necessário, no caso, para a verificação da existência ou não de provas ou indícios suficientes à pronúncia do paciente por crimes de homicídios que lhe são imputados na denúncia. 3. Habeas corpus denegado."2

Vê-se, pois, que, conquanto se tenha declarada extinta a punibilidade pela morte do agente, comprovada a falsidade da certidão de óbito, a rescisão do r. decisum, com a consequente retomada do prosseguimento da persecução penal, não viola os preceitos constitucionais que norteiam o Direito Penal brasileiro.

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1 Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 10ª edição. Rio de Janeiro, 1986. Pag. 418.

2 STF, HC 104998, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe 9/5/2011, destaque acrescido.

Diogo Toscano De O. Rebello

Diogo Toscano De O. Rebello

Advogado do escritório Serralvo e Gomes Advogados Associados. Professor do JUS21 Cursos Online. Autor de obras para a 2ª Fase do Exame de Ordem.

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