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A tragédia em números: os habeas corpus e os precedentes vinculantes no processo penal

Diante do uso excessivo do habeas corpus e dos recursos ordinários, a adoção de uma jurisprudência defensiva por parte do STF e do STJ não será eficiente, urgindo a adoção de precedentes vinculantes.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Atualizado às 09:44

(Imagem: Arte Migalhas)

Na sessão realizada no dia 22 de outubro de 2021, os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça externaram sua preocupação com o uso crescente e excessivo do habeas corpus e promoveram a defesa mais estrita do instrumento processual.

O Ministro Rogério Schietti revelou que de janeiro a agosto deste ano "os colegiados do STJ especializados em direito penal receberam cerca de 7.500 processos dessas duas classes (HCs e RHCs) por julgador. No mesmo período, o número de decisões monocráticas e colegiadas foi de, aproximadamente, 12 mil por ministro".1

O magistrado pontuou que em não raras vezes os habeas corpus e os recursos em habeas corpus são ajuizados de forma precipitada, sem o enfrentamento da tese jurídica pelo Tribunal de origem, em colidência com a jurisprudência da Corte, ou em desacordo com os requisitos legais.

Os Ministros Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior e Antonio Saldanha Palheiro aderiram à manifestação e concluíram que a responsabilidade pela tragédia em números deve ser enfrentada de maneira sistêmica, tanto pelo Poder Judiciário quanto pelo Ministério Público e a advocacia.

De acordo com o relatório Justiça em Números, constante da página eletrônica do Conselho Nacional de Justiça2, em 2020 a Corte recebeu 354.398 casos novos, destes, 83.361 habeas corpus e 18.627 recursos ordinários em habeas corpus. A litigiosidade nos Tribunais Superiores, em matéria criminal, cresceu 9,9%.3

É sabido que o habeas corpus, de forma rasa, tem natureza de ação constitucional destinado à salvaguarda do direito de liberdade de locomoção ameaçado por ilegalidade ou abuso de poder. Nos últimos anos este valioso instrumento tem garantido um enorme avanço no reconhecimento de direitos fundamentais e vem promovendo uma verdadeira abstrativização das demandas subjetivas. No entanto, o excesso de impetração vem causando um impacto negativo no sistema jurídico.

A segurança jurídica, a igualdade e o respeito ao devido processo legal substancial demandam uma reflexão mais aprofundada sobre o papel do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos habeas corpus e recursos ordinários.

Diante da multiplicação dos processos, dos julgamentos cada vez mais abrangentes e da crescente necessidade de observância do direito jurisprudencial, urge a implementação de uma teoria de precedentes vinculantes no processo penal que inclua o habeas corpus e o recurso ordinário em sua base.

Não obstante ser o habeas corpus ação de manejo rápido, a própria jurisprudência vem flexibilizando o cabimento do remédio constitucional, conferindo-lhe inegável centralidade. O tempo e a prática jurídica forçaram uma interpretação bastante ampla acerca do instituto, que no Brasil sedimentou-se com maior extensão.

Um exemplo dessa hipetrofia do remédio constitucional é a admissão, tanto pelo STF quanto pelo STJ, do chamado habeas corpus coletivo, uma modalidade que não tem previsão constitucional ou legal expressa.

A complacência dos Tribunais Superiores para com a análise do remédio constitucional contribuiu para a mencionada tragédia em números. A marcha já se direcionou para a frente. A adoção de uma jurisprudência meramente defensiva, que se limita ao não conhecimento das ações impetradas representa um retrocesso e certamente imporá ao Poder Judiciário um desconfortável descrédito popular. Por evidente que se deve observar requisitos mínimos, tais como o enfrentamento meritório da matéria de fundo da impetração e a existência de ilegalidade ou teratologia.

O problema a ser enfrentado daqui em diante é o de impedir um déficit democrático no julgamento dos habeas corpus e recursos ordinários. As Cortes de vértice devem seguir os passos para a formação de um direito jurisprudencial que traga estabilidade estrutural e não apenas atenda a um Direito Penal de Emergência.

Somente os litígios decorrentes de um amadurecimento jurídico e que sejam a expressão de um processo democrático e dialógico possuem o condão de produzir uma eficácia vinculante tão almejada pelas Cortes Superiores.

Uma maior racionalidade e universalidade nas razões de decidir e a abertura do processo de habeas corpus e do recurso ordinário, por mais contraditório que possa parecer, podem indicar a saída para o enfrentamento da crise.

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1 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/22102021-Ministros-da-Sexta-Turma-citam-excesso-de-habeas-corpus-e-necessidade-de-priorizar-os-que-afetam-a-liberdade.aspx

2 https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shResumoDespFT

3 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/relatorio-justica-em-numeros2021-081021.pdf

Manoela Bartos Matos

Manoela Bartos Matos

Analista judiciária do Superior Tribunal de Justiça e mestranda pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília.

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