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Citação mediante envio ao endereço eletrônico da parte (lei 14.195/21)

Sendo a citação um ato essencial para a observância de garantias constitucionais, ela precisa ser realizada de forma a viabilizar o pleno conhecimento e a reação possível de todas as pessoas - inclusive as que, por exemplo, padeçam de debilidades na saúde, déficit de informação ou sofram com o analfabetismo.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Atualizado em 25 de outubro de 2021 10:47

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 14.195/2021, no capítulo X - intitulado "Da Racionalização Processual" - inseriu novas regras no CPC para priorizar o uso de endereço eletrônico como meio de citação das partes demandadas.

Fruto da conversão da Medida Provisória (MP) 1.040 (que versava sobre temas empresariais), a nova lei promoveu tais inclusões de forma comprometedora. Como as matérias de cunho processual não constavam no texto original da MP e foram integradas ao final por uma emenda, a constitucionalidade é discutível em relação à matéria estranha à proposta original, nos termos de decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI (ação declaratória de constitucionalidade) 5.1271.

O Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) emitiu nota contundente a respeito do vício no processo legislativo que originou a lei2, destacando também que a matéria de direito processual civil, além de estranha ao texto original, não pode ser tratada por medida provisória, por expressa vedação constitucional (art. 62, §1°, I, b, da CF)3.

Apesar do vício, o conteúdo da lei segue em vigor até o reconhecimento da inconstitucionalidade.

A primeira mudança deu-se com a inserção de um novo dever para partes, procuradores e todos aqueles que, de qualquer modo, participem do processo: informar e manter atualizados seus dados cadastrais perante os órgãos do Poder Judiciário (e, no caso do § 6º do art. 246 do Código4, da Administração Tributária), para recebimento de citações e intimações (CPC, art. 77 VII).

A efetivação da regra, se realmente alcançar todos os participantes, vai sobrecarregar o banco de dados do Poder Judiciário5. Imagine que uma pessoa, ao testemunhar em certo processo, forneça seu endereço eletrônico; o registro será útil se ela precisar ser citada adiante em outro processo - caso contrário, não. No mais, se ela alterar seu email anos depois, será que se recordará de comunicar o Judiciário sobre a mudança? Não o fazendo, deverá ser considerado tal lapso de memória como justa causa? O tempo dirá.

No mais, antes da alteração promovida pela lei 14.195/2021 o CPC previa, no art. 246, cinco modalidades de citação: por correio, por oficial de justiça, por ato do escrivão ou chefe de secretaria (se o citando comparecesse em cartório), por edital (art. 256) e por meio eletrônico.

Tal dispositivo foi alterado pela citada lei para que passasse a constar que "a citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, no prazo de até 2 (dois) dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça".

Tal regulamento ainda não existe6. Embora a Resolução 234/2016 do CNJ tenha mencionado a Plataforma de Comunicações Processuais do Poder Judiciário, não houve evolução do tema até 2020, quando a Resolução 335 do CNJ instituiu a política pública para governança e gestão de processo judicial eletrônico, integrando todos os tribunais do país com a criação da Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro (PDPJ-Br). Só que segundo o art. 20 deste ato normativo, a Resolução será disciplinada por atos próprios da Presidência do CNJ, inclusive quanto aos prazos para as ações da PDPJ-Br.

Como bem pontuam Dierle Nunes e Catharina Almeida, "a eficácia prática da medida dependerá, principalmente, do modo como será regulamentada a base de dados do Poder Judiciário pelo CNJ, e seu sucesso também ficará condicionado à recepção do bom uso da ferramenta pelas partes, servidores, bem como pelos magistrados, isto é, os reais beneficiados pela implantação do novo mecanismo7".

Voltando à visão panorâmica sobre a lei, vale ressaltar a mudança em uma clássica regra: antes a modalidade preferencial era a citação postal, mas agora o art. 246 do CPC dispõe que a citação será feita preferencialmente por meio eletrônico.

É importante relembrar que a citação por meio eletrônico já era prevista na lei 11.419/2006, observadas as cautelas previstas em seu art. 5°, devendo ser realizadas em portal próprio para aqueles que se cadastrarem nos termos do seu art. 2°. As pessoas cadastradas nos portais deveriam, então, consultá-los periodicamente, sendo considerada a data da citação aquela da consulta, ou, não havendo consulta em até 10 (dez) dias corridos da data do envio do mandado, a citação seria dada como realizada ao final desse prazo. Essa sistemática foi incorporada pelo CPC em sua redação original, como se nota do art. 231, inc. V e da redação original do art. 246, inc. V.

Ademais, a redação impunha a todas as empresas públicas e privadas, exceto as microempresas e empresas de pequeno porte a manter tais cadastros (redação original do art. 246, §1°). Desde a promulgação do CPC, tal obrigação teve aplicação limitada pela falta de regulamentação em diversos Tribunais.

Não obstante, a obrigação foi ampliada pela nova lei para quaisquer empresas públicas ou privadas, sem exceção, a ensejar ainda mais dúvidas sobre sua aplicação na prática e até sobre sua segurança, haja vista que as microempresas e empresas de pequeno porte representam a extensa maioria das empresas em atividade no país8, além de abrirem em fecharam com muita velocidade, sendo difícil acreditar que haverá cautela por parte de todas elas na manutenção dos cadastros judiciais.

Além disso, a lei 14.195/2021 traz previsões aparentemente conflitantes por prever uma forma diversa de contagem do prazo. Foi incluído o inc. IX ao art. 231 do CPC para prever que, salvo disposição em sentido diverso considera-se dia do começo do prazo "o quinto dia útil seguinte à confirmação, na forma prevista na mensagem de citação, do recebimento da citação realizada por meio eletrônico". O inc. V do mesmo artigo foi mantido.

A nova Lei teria criado um segundo método de citação eletrônica, diverso daquele previsto na lei 11.419/2006? Algumas análises iniciais sobre a lei apontam para a resposta positiva, no sentido de que tal antinomia "pode ser dirimida, numa primeira leitura e no atual sistema, com a aplicação do inciso V para a citação nos termos da lei 11.419/06 e o inciso IX para a citação eletrônica do CPC".9 Por isso, encaramos essa nova modalidade não como a citação eletrônica já existente, mas sim como "citação mediante envio ao endereço eletrônico da parte".

De toda maneira, a nova lei prevê que a citação enviada eletronicamente deverá ser confirmada pelo destinatário em até 3 (três) dias úteis do recebimento. Mas e se não ocorrer tal confirmação? Diferentemente da sistemática adotada pela lei 11.419/2006, não há confirmação da citação por decurso de prazo sem consulta. Na previsão da nova lei, não havendo confirmação do recebimento da citação, esta será feita pelas vias tradicionais, quais sejam: I. correio; II. oficial de justiça; III. escrivão/chefe de secretaria (se o citando comparecer em cartório); IV. edital (CPC, art. 246 § 1º-A).O réu citado por uma dessas quatro formas deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, apresentar justa causa por não ter confirmado o recebimento da citação enviada eletronicamente (CPC, art. 246 § 1º-B). Terá então a oportunidade de esclarecer sobre, por exemplo, ter deixado de usar aquele endereço eletrônico e ter esquecido de informar o Poder Judiciário.

Caso os esclarecimentos não sejam reputados aptos a configurar justa causa, uma sanção será aplicada. Considera-se ato atentatório à dignidade da justiça, passível de multa de até 5% (cinco por cento) do valor da causa, deixar de confirmar no prazo legal, sem justa causa, o recebimento da citação recebida por meio eletrônico (CPC, art. 246 § 1º-C). Certamente a aplicação dessa regra despertará consideráveis divergências.

Há quem critique o sistema engendrado pela lei; afinal, "a pretexto de agilizar o andamento dos processos, a nova disciplina acabou criando mais um incidente processual e mais uma questão a ser debatida nos autos em prejuízo da matéria principal10". A observação é muito pertinente, pois o legislador elevou a complexidade da atividade cartorária e do controle de prazos. Ademais, ao prever a necessidade de comprovação de justa causa para a ausência de consulta, já é possível antever os inúmeros embates doutrinários e jurisprudenciais em torno de sua caracterização, além dos inúmeros recursos que a questão pode ensejar.

Realmente não nos parece que a lei andou bem em seu propalado intuito de "racionalização processual", o que nos leva a questionar se tal intuito não seria melhor alcançado pelo aperfeiçoamento dos sistemas dos tribunais e do serviço das unidades judiciárias, estimulando a eficiência do arcabouço normativo já existente em vez de se confiar na criação novas leis que vão demandar o engendramento de novos fluxos de serviço no Judiciário.

Até porque, como indicam Dierle Nunes e Catharina Almeida, a implantação universal da citação eletrônica no processo civil teve apenas seu primeiro passo com a regulamentação da nova lei 14.195/2021 e os órgãos responsáveis poderão se beneficiar de estratégias do legal design para oferecer a melhor efetividade do novo mecanismo. Apenas um sistema conscientemente desenhado com foco nos interessados (stakeholders) pode propiciar soluções adequadas para as suas reais necessidades, assegurando a manutenção das garantias fundamentais e segurança jurídica aos jurisdicionados nesse processo11.

De todo modo, vale lembrar: nas demandas familiares12 que configuram ações de estado13 (por ex., divórcios) e em que pessoas incapazes figuram como rés (por ex., investigatórias de paternidade), o legislador busca maior segurança e prefere a realização da citação por oficial de justiça14. Nessas ações, assim como a regra da citação postal - preferencial até a incidência da lei 14.195/2021 - não era aplicável, também a nova citação mediante envio de comunicação ao endereço eletrônico não será cabível15.

Sendo a citação um ato essencial para a observância de garantias constitucionais, ela precisa ser realizada de forma a viabilizar o pleno conhecimento e a reação possível de todas as pessoas - inclusive as que, por exemplo, padeçam de debilidades na saúde, déficit de informação ou sofram com o analfabetismo16.

Buscamos com este modesto texto trazer visões nossas iniciais e antever possíveis discussões que devem surgir caso a lei 14.195/2021 permaneça em vigor, esperando que contribua para os operadores melhor se situarem diante da novidade legislativa.

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CALVERT, Eduardo. A Lei 14.195/2021 e a nova disciplina da citação. Acesso 16 set. 2021.

CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Conversão da MP 1.040/21 na lei 14.195/21 e os jabutis postos pelo Congresso Nacional no CPC. Disponível aqui. Acesso em 20.09.2021.

INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO PROCESSUAL. Manifestação do Instituto Brasileiro de Direito Processual sobre a promulgação da Lei 14.195, de 26 de agosto de 2021. Disponível aqui. Acesso em 20.09.2021.

NEVES, Professor Daniel. Live - Alteração do CPC pela Lei 14195 de 26 de Agosto de 2021 - Com Caio Cytrangulo. Youtube, 03 set. 2021. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=YSJUlUDRaig>. Acesso em: 16 set. 2021.

NUNES, Dierle; .CATARINA,  Disponível aqui. Acesso 17 set. 2021.

TARTUCE, Fernanda. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. 2ª ed. São Paulo, Método (no prelo).

Processo civil no Direito de Família: teoria e prática. 5ª ed. São Paulo: Método, 2021.

BERGAMASCHI, Andre Luis. Citação eletrônica no processo brasileiro: discussões sobre flexibilização por meios de comunicação não oficiais. In Discussões sobre Direito na Era Digital (coord. Anna Carolina Pinho). Rio de Janeiro: Ed. GZ 2021 (no prelo).

BRANDÃO, Débora. Discussões Sobre Guarda e Convivência à Luz do Equívoco entre Ações de Família e Ações de Estado. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, v. 36, p. 42-55, 2020.

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1 NUNES, Dierle; ALMEIDA, CATARINA, Lei 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do legal design. Acesso 17 set. 2021.

2 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO PROCESSUAL. Manifestação do Instituto Brasileiro de Direito Processual sobre a promulgação da Lei n. 14.195, de 26 de agosto de 2021. Disponível aqui. Acesso em 20.09.2021.

3 Ver também: CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Conversão da MP 1.040/21 na lei 14.195/21 e os jabutis postos pelo Congresso Nacional no CPC. Disponível aqui. Acesso em 20.09.2021.

4 CPC, art. 246-A. § 5º As microempresas e as pequenas empresas somente se sujeitam ao disposto no § 1º deste artigo quando não possuírem endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim).  § 6º Para os fins do § 5º deste artigo, deverá haver compartilhamento de cadastro com o órgão do Poder Judiciário, incluído o endereço eletrônico constante do sistema integrado da Redesim, nos termos da legislação aplicável ao sigilo fiscal e ao tratamento de dados pessoais.

5 NEVES, Professor Daniel. Live - Alteração do CPC pela lei 14195 de 26 de Agosto de 2021 - Com Caio Cytrangulo. Youtube, 03 set. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2021.

6 Considerada a realidade brasileira até 16/09/2021, data da redação do presente artigo.

7 NUNES, Dierle; ALMEIDA, CATARINA, Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do legal design. Acesso 17 set. 2021.

8 NUNES, Dierle; ALMEIDA, CATARINA, Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do legal design. Acesso 16 set. 2021.

9 NUNES, Dierle; ALMEIDA, Catarina, Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do legal design. Acesso 16 set. 2021.

10 CALVERT, Eduardo. A Lei 14.195/2021 e a nova disciplina da citação. Acesso 16 set. 2021.

11 NUNES, Dierle; ALMEIDA, CATARINA, Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do legal design. Acesso 16 set. 2021.

12 Nas ações de família a citação será feita na pessoa do réu (CPC, art. 695, § 3.º). Assim, se uma filha move ação revisional de alimentos contra seu pai (pessoa capaz), a citação poderá se dar correio - mas o réu precisará assinar o comprovante de recebimento da correspondência.

13 Nas ações de estado, busca-se "adquirir, modificar ou extinguir um direito relacionado ao estado civil da pessoa, especialmente no que concerne ao estado familiar. Portanto, é forçoso concluir que ações que versam sobre guarda não alteram o estado familiar da criança ou do adolescente porque disciplinam o exercício de um atributo do poder familiar, apenas. O poder familiar não é alterado. Se a discussão fosse sobre a destituição ou suspensão do poder familiar, seria ação de estado. A mesma lógica deve ser aplicada ao exercício da convivência familiar, costumeiramente chamada de "direito de visitas". Essa afirmação merece esclarecimento, porque genitores não devem ser visitadores, mas cuidadores, convivendo com seus filhos intensamente, na medida do possível, para poderem educar, independentemente de vínculo conjugal - já que a relação é meramente parental, norteada pelo especial interesse da criança e do adolescente e pelo princípio da parentalidade responsável (arts. 227 e 226, § 7º, da CF)" (TARTUCE, Fernanda; BRANDÃO, Débora. Discussões Sobre Guarda e Convivência à Luz do Equívoco entre Ações de Família e Ações de Estado. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, v. 36, p. 42-55, 2020, p. 47).

14 Em demandas familiares, o legislador anteviu situações que necessitam de maior adequação à forma de  efetuar a citação e garantir a informação do citando ao vedar a citação por correio em causas de estado e naquelas em que o réu for pessoa incapaz  (TARTUCE, Fernanda. Processo civil no Direito de Família: teoria e prática. 5ª ed. São Paulo: Método, 2021, p. 67).

15 CPC, art. 247. A citação será feita por meio eletrônico ou pelo correio para qualquer comarca do País, exceto: (redação dada pela Lei nº 14.195, de 2021) I - nas ações de estado, observado o disposto no art. 695, § 3º ; II - quando o citando for incapaz (...).

16 TARTUCE, Fernanda. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. 2ª ed. São Paulo, Método (no prelo).

André Luís Bergamaschi

André Luís Bergamaschi

Doutor e Mestre em Direito Processual pela USP. Professor em cursos de especialização na Escola Paulista de Direito (EPD). Advogado, mediador e autor de publicações jurídicas.

Fernanda Tartuce

Fernanda Tartuce

Doutora e mestra em Processo Civil pela USP. Professora e coordenadora em cursos de pós graduação em Direito. Advogada, mediadora e autora de publicações jurídicas.

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