Novo marco legal do transporte ferroviário facilitará a implantação e a exploração do serviço pelo setor privado
A MP 1.065/21 permite a implantação de novas ferrovias por meio de autorização, sem necessidade de licitação, e institui a figura do operador ferroviário independente para a prestação dos serviços.
terça-feira, 19 de outubro de 2021
Atualizado às 08:00
Até a edição da Medida Provisória 1.065, de 30 de agosto de 2021 ("MP 1.065/21"), as ferrovias públicas somente poderiam ser construídas ou operadas por empresas privadas, no regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação.
A União é a titular dos serviços (art. 21, XII, "d", da CR/88), a quem compete, como regra geral, a outorga do serviço de transporte ferroviário, nos termos do art. 20 da lei do sistema nacional de viação (lei 12.379, de 6 de janeiro de 2011). Por esta razão, o Ministério da Infraestrutura e a Agência Nacional de Transportes Terrestres ("ANTT") serão os responsáveis por implantar as mudanças trazidas pelo novo marco regulatório ferroviário.
Segundo nota do Ministério da Infraestrutura, "o Marco Legal das Ferrovias resultará no aumento dos investimentos privados no setor ferroviário e [segundo a manifestação do Governo] a medida reduz a burocracia para a construção de novas ferrovias e inova no aproveitamento de trechos ociosos e na prestação do serviço de transporte ferroviário"1.
Autorização para a exploração dos serviços, sem licitação
De acordo com os artigos 6º a 16, da MP 1.065/21, a empresa interessada em operar uma nova linha fará o requerimento da autorização para o Ministério da Infraestrutura, que será formalizada em contrato de adesão, cujas cláusulas essenciais estão descritas no art. 12.
O art. 6º, § 1º, estabelece que o contrato de adesão deve ter duração máxima de 99 (noventa e nove anos), prorrogáveis por períodos iguais e sucessivos, desde que, para cada pedido de prorrogação, a autorizatária:
I - manifeste prévio e expresso interesse; e
II - esteja com a infraestrutura ferroviária em operação.
Ainda de acordo com a MP 1.065/2021 (art. 6º, § 5º), nenhuma autorização será negada pelo Ministério da Infraestrutura, exceto nas hipóteses de:
I - inobservância ao disposto na MP 1.065/2021 e em seu regulamento;
II - incompatibilidade com a política nacional de transporte ferroviário; ou
III - motivo técnico-operacional relevante devidamente justificado.
Na execução do contrato de adesão, alguns aspectos definidos na MP 1.065/2021, de responsabilidade dos particulares, são importantes:
a) A fase declaratória do procedimento de desapropriação necessária para a instalação da ferrovia será realizada pela ANTT com base em estudo apresentado pela autorizatária (art. 12, § 1º).
b) Os custos e os riscos da fase executória do procedimento de desapropriação serão de responsabilidade integral da autorizatária (art. 12, § 2º).
c) A autorizatária assumirá o risco integral do empreendimento, sem direito a reequilíbrio econômico-financeiro (art. 12, § 3º).
A outorga para a exploração de ferrovias em regime de autorização pode ser extinta, nos termos do art. 13 da MP 1.065/2021 por: I - advento do termo contratual; II - cassação; III - renúncia; IV - anulação; e V - falência.
Uma das hipóteses de cassação é a não obtenção da licença ambiental (art. 13, § 4º, MP 1.065/21) considerando os seguintes prazos, contados da data da assinatura do contrato: I - licença prévia, no prazo de três anos; II - licença de instalação, no prazo de cinco anos; e III - licença de operação, no prazo de dez anos.
Uso de bens públicos
Quando se tratar de projeto de autorização que envolva bem público (art. 6º, § 4º, MP 1.065/21), após a assinatura do contrato de autorização, os órgãos e as entidades públicas poderão ceder, alienar ou conceder o direito real de uso dos bens, dispensada a licitação, na forma do regulamento (art. 6º, § 5º, MP 1.065/2021).
Trechos sem operação, devolvidos, desativados ou ociosos
A MP 1.065/21 (art. 9º) permite a autorização para a exploração destes trechos por meio de chamamento público a ser realizado pelo Ministério da Infraestrutura, para a escolha dos operadores, a ser realizado por meio da divulgação de edital e seleção da proposta mais vantajosa (art. 10 e 11).
Será considerado como critério de julgamento para a escolha do vencedor o maior lance, incluída a possibilidade de pagamento de outorga, observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (art. 11, Parágrafo Único).
Mudança de regime jurídico: de concessionárias para autorizatárias
O art. 34 da MP 1.065/21 permite que as atuais concessionárias de serviços ferroviários com contrato vigente em 30 de agosto de 2021 solicitem a adaptação do contrato de concessão para autorização, nas hipóteses do § 1º, deste artigo, ou seja: a) caso se sintam prejudicadas pela entrada em operação de ferrovia autorizada; b) caso se comprometam a expandir a extensão ou a capacidade ferroviária.
Caberá ao Ministério da Infraestrutura, conforme art. 34, § 2º, a decisão final pela adaptação do contrato.
A adaptação mencionada ficará condicionada ao atendimento das seguintes exigências pelo outorgado (art. 34, § 5º):
I - inexistência de multas ou encargos setoriais não pagos à União;
II - manutenção, no contrato de autorização, das obrigações financeiras perante a União e das obrigações de eventuais investimentos estabelecidos em contrato de concessão, inclusive os compromissos de investimentos em malha de interesse da administração pública, além das obrigações de transporte celebradas com os demais usuários do sistema;
III - prestação de serviço adequado, nos termos do contrato; e
IV - manutenção de serviços de transporte de passageiros no novo contrato de autorização, na hipótese de a concessionária requerente já operar linha regular de transporte de passageiros.
Há regras específicas previstas para a reversão de bens (art. 34, § 9º e 10º), se houver pedido de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, atendidos os critérios do art. 35 e 36.
Assim, conforme as regras editadas, a mudança do regime jurídico não deverá afetar as obrigações financeiras e de investimentos previstas no contrato de concessão firmado com a União (Cf. art. 36, MP 1.065/2021).
Operador Ferroviário Independente
A MP 1.065/21 também instituiu o operador ferroviário independente, definido como a pessoa jurídica autorizada pela ANTT para prestação de serviços de logística ou mobilidade em ferrovia própria ou de terceiros (art. 2º, III).
Este operador, nos termos do art. 18, incisos I e II, poderá explorar serviços em ferrovias próprias ou de terceiros, mediante celebração de contrato com a administradora ferroviária. O que inclui as rodovias outorgadas por autorização, permissão ou concessão. Para exercer a atividade, deverá apresentar a documentação exigida à ANTT e a autorização será expedida automaticamente (art. 18, § 1º).
Conforme descrito no art. 18, § 3º, os contratos celebrados entre administradoras ferroviárias (concessionários, permissionários e autorizatários) e os operadores ferroviários independentes, serão regidos pelas normas de direito privado, sem estabelecimento de qualquer relação jurídica entre os operadores ferroviários independentes e o poder concedente, sem prejuízo das atividades regulatória e fiscalizatória da ANTT.
As funções da ANTT, neste contexto, estarão restritas a questões de trânsito e segurança. (art. 17, Parágrafo Único, MP 1.065/2021).
Programa de Autorizações Ferroviárias
A MP 1.065/21 cria o Programa de Autorizações Ferroviárias, com a finalidade de promover investimentos privados no setor ferroviário por meio de outorgas por autorizações (art. 42).
O programa abrange, entre outras atividades (art. 42, § 1º):
I - a cooperação com Estados, Distrito Federal e Municípios, a fim de identificar e selecionar ferrovias de acesso e de ligação aptas à exploração pelo mercado;
II - a interlocução com o setor produtivo para priorização de segmentos ferroviários por meio de autorização;
III - o planejamento, a supervisão e a oferta de segmentos ferroviários para exploração por autorizações;
IV - a deliberação sobre as diretrizes necessárias ao desenvolvimento tecnológico no setor ferroviário; e
V - a fixação das diretrizes da autorregulação, descritas entre os artigos 30 a 33 da MP 1.065/2021.
Pedidos de autorização apresentados ao Ministério da Infraestrutura
Em notícia divulgada em 23 de setembro de 2021, o Governo Federal apresentou a lista dos pedidos de investidores privados interessados em construir e operar uma ferrovia no país pelo instrumento da autorização ferroviária, estabelecido na Medida Provisória 1.065/21: "São 5.360 quilômetros de novos trilhos, cortando 12 unidades da Federação. Pedido mais recente cria a Estrada de Ferro JK"2.
Tramitação
Como informado pela Câmara dos Deputados: "Em razão da pandemia, a Medida Provisória 1065/21 será analisada diretamente nos Plenários da Câmara dos Deputados e do Senado."3
Considerações finais
O tema é complexo e as mudanças no regime jurídico do modal ferroviário são significativas.
A principal discussão que o texto deve enfrentar em sua tramitação e futuramente - caso aprovada nos termos em que foi apresentada - é a adequação da autorização, sem licitação, por instrumento contratual, ao disposto no art. 175 e no art. 21, XII, "c", da CR/88.
Como este aspecto da proposta, em especial, espelha-se no regime jurídico de outros setores como telecomunicações, portuário e aeroportuário, o Governo acredita que esta modelagem traz segurança jurídica ao setor privado para a expansão do transporte ferroviário no País.
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1 BRASIL. Ministério da Infraestrutura. Marco legal das ferrovias vai fortalecer investimentos no transporte ferroviário: setor ganha segurança jurídica e regulamentação contemporânea, Brasília, 31/08/2021. Disponível aqui. Acesso em: set. 2021.
2 BRASIL. Ministério da Infraestrutura. Setembro ferroviário: com 14 pedidos, chega a R$ 80,5 bilhões previsão de investimentos com autorizações ferroviárias. Disponível aqui.
3 BRASIL. Câmara dos Deputados. Medida provisória institui novo marco legal do transporte ferroviário: texto simplifica autorização para construção de novas ferrovias, buscando atrair mais investimentos para o setor. Brasília: Agência Câmara de Notícias, 31/08/2021. Disponível aqui.
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia-Executiva do Vilas Boas Lopes e Frattari Advogados e responsável pela equipe de Direito Administrativo /Regulatório do Escritório, com experiência de mais de 20 anos na área. Exerceu cargos públicos na administração Municipal e Estadual, no Poder Legislativo Estadual, e produziu publicações especializadas, projetos de lei, opiniões legais e pareceres. Professora associada do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ministra a disciplina Direito Administrativo da UFMG.