"Fresh start e a decadência do direito que não existe"
Presente artigo tem por escopo apresentar analisar crítica acerca da constitucionalidade do artigo 10, §10, da lei 11.101/05, com redação dada pela lei 14.112/20, bem como propõe sugestão de interpretação conforme à constituição do aludido dispositivo.
quinta-feira, 14 de outubro de 2021
Atualizado às 11:07
Num verdadeiro processo de modernização e atualização da Lei de Falências e Recuperações de Empresas, a lei 14.112/20 provocou profundas alterações na legislação de regência, apropriando-se de figuras jurídicas presentes e verificadas no direito comparado, o que foi precedido da promoção de adequações e adaptações, para o devido enquadramento à realidade normativa e social nacional, em um verdadeiro processo de transplante normativo.1
Contudo, algumas zonas de penumbra ficaram expostas nestas alterações normativas, e os Tribunais Superiores certamente terão que trazer luz a estas questões.
Talvez o campo mais obscuro destas alterações tenha ficado com fresh start.2 São alguns os pontos obscuros na nova sistemática de extinção das obrigações do falido, sendo que neste artigo nós iremos limitar à análise do disposto no artigo 10, §10º, da lei 11.101/05, verdadeiro instrumento do fresh start do empresário.
De acordo com o aludido dispositivo, o credor deverá apresentar pedido de habilitação ou de reserva de crédito em, no máximo, 3 (três) anos, contados da data de publicação da sentença que decretar a falência, sob pena de decadência.3
Observa-se que, dentro do contexto de se possibilitar um rápido recomeço ao empresário, por meio do rápido encerramento da falência e extinção de suas obrigações - neste caso, uma vez observados os requisitos legais, em especial aqueles previstos no artigo 158, da lei 11.101/054 -, o legislador criou uma nova hipótese de decadência, cuja constitucionalidade é muito questionável.
Isto porque, tal norma autoriza a subtração do direito do credor de exigir da massa um crédito que apenas venha existir após este prazo.
Não é difícil de imaginar e de verificar, na prática, aludida circunstância. Basta pensar na falência de uma concessionário - ou do fabricante -, que vendeu veículos novos, cujos vícios ocultos apareceram apenas 3 anos após a quebra da empresa. Trazendo o debate para um aspecto prático da falência, e bastante rotineiro, basta pensar nos empregados, que foram demitidos em razão da falência, e ingressaram com demanda perante a Justiça do Trabalho, vindo a sentença a ser proferida - ou o trânsito em julgado das sentenças recorridas - após 3 anos de falência.
Nas situações jurídicas supracitadas, pela mera interpretação literal do dispositivo chegaríamos à conclusão de que o credor não pode mais incluir seu crédito no quadro geral da falida, e, consequentemente, não pode obter sua satisfação no processo coletivo de execução.
Observa-se, assim, que o dispositivo adotou como termo inicial do novo prazo decadencial a data da publicação da decisão que decretou quebra da empresa, e desconsiderou eventuais situações jurídicas litigiosas ou de vícios ocultos, dentre outras situações jurídicas, nas quais o crédito, ainda que de modo provisório, não foi constituído, e cuja constituição pode ultrapassar o prazo decadencial de 3 anos, dando surgimento a uma curiosa hipótese de decadência de um direito potestativo que não existe.
Há aqui nítida violação ao direito fundamental de ação e de acesso à justiça.
Vale observar que geralmente o crédito decorre de uma prestação inadimplida. Ocorre que, para a exigência de uma prestação em juízo, da qual resultará o crédito, a ser incluído no quadro geral, imprescindível que haja prévia e efetiva lesão ou ameaça aos interesses jurídicos da parte, consoante a teoria da actio nata, adotada pelo artigo 189, do CC/02. Assim, diante de prestações cujo vencimento não decorra da simples quebra da empresa - o vício oculto, como um exemplo acima citado -, teríamos curiosa hipótese de decadência do direito potestativo de incluir o crédito no quadro geral sem que sequer tenha iniciado o prazo prescricional para exigir a respectiva prestação.
Frente a este quadro, parece-nos que uma interpretação conforme do dispositivo à constituição faz-se necessária, para adotar ao menos uma das seguintes conclusões: 1) Apesar do silêncio normativo, estamos diante de uma excepcional hipótese de interrupção ou suspensão do prazo decadencial, frente à existência de eventual demanda pendente para constituir título, que irá lastrear o pedido de habilitação ou de reserva de crédito; ou por conta de fato jurídico superveniente, que torne possível o exercício da pretensão em juízo apenas após a quebra, de acordo com a teoria da actio nata; ou 2) Entender que o dispositivo se limita aos créditos já constituídos e exigíveis na data da quebra - ou exigíveis em razão da quebra.
Diante do ponto obscuro que se apresenta, caberão aos Tribunais Superiores definir o âmbito de incidência da nova hipótese de decadência, prevista no artigo 10, §10º, da lei 11.101/05, com especial observância do direito constitucional de ação e de acesso à justiça.
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1 Sobre o chamado processo de transplante normativo - complexidade de sua implementação, argumentos favoráveis, críticas, dentre outras questões - o qual é objeto de intenso debate e estudo nos EUA, vide: Lisboa, Leovanir Losso. Transplantes normativos e algumas refrações da sua utilização em decisões judiciais. Repositório Científico da Universidade de Coimbra. Disponível em: clique aqui. Acessado em 27/09/2021.
2 Sobre o fresh start, vide: Rodriguez, Arthur Fernandes Guimarães e Marques, Thiago Ferreira. Alterações da LRF: Mudanças no procedimento de falência (Fresh Start). Revista Jurídica eletrônica MIGALHAS. Disponível em: clique aqui. Acessado em 12/10/2021.
3 Disponível em: clique aqui. Acessado em 30/09/2021.
4 Art. 158. Extingue as obrigações do falido: I - o pagamento de todos os créditos; II - o pagamento, após realizado todo o ativo, de mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos quirografários, facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir a referida porcentagem se para isso não tiver sido suficiente a integral liquidação do ativo; III - REVOGADO; IV - REVOGADO; V - o decurso do prazo de 3 (três) anos, contado da decretação da falência, ressalvada a utilização dos bens arrecadados anteriormente, que serão destinados à liquidação para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado; e VI - o encerramento da falência nos termos dos arts. 114-A ou 156 desta Lei. Disponível em: clique aqui. Acessado em 30/09/2021.
Maicon Natan Volpi
Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela ESMPSP (Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo). Advogado. Atuou em convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Atualmente exerce o cargo de Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.