Sanha persecutória: o caso das offshores
Deve-se ter cuidado ao ler ou ouvir determinados blogs, sites e jornais. Isso, porque, não raras vezes, a notícia é conduzida de maneira parcial e tendenciosa, sem a preocupação de explicar adequadamente a temática, até mesmo porque enfraqueceria seu caráter sensacionalista.
quinta-feira, 14 de outubro de 2021
Atualizado às 07:46
Recentemente, diversos veículos de comunicação noticiaram a existência de offshores relacionadas a autoridades públicas, empresários, entre outros. E, a partir disso, pedidos de afastamentos e de instauração de inquéritos policiais, muitos, aliás, com nítido propósito político, começaram a ser recorrentes, ainda que o real significado e os verdadeiros contornos de uma offshore sejam completamente ignorados.
Com efeito, a mantença de patrimônio fora de seu país de domicílio, ainda que em localidades consideradas paraísos fiscais ("países ou dependências com tributação favorecida e regimes fiscais privilegiados"), caso atendidas todas as determinações normativas, não constitui ilícito algum. As razões para sua constituição podem ser diversas: proteção patrimonial contra variações cambiais, juros e/ou tributação mais atraentes, financiamentos no exterior, entre outros.
É bem verdade que, por vezes, empresas criadas em paraísos fiscais, ou, na realidade, em qualquer país, podem ser utilizadas para fins ilícitos, como, por exemplo, o cometimento de crimes de evasão de divisas, de sonegação fiscal e de lavagem de capitais. Para tanto, como regra, há a utilização de "laranjas", termo bastante difundido atualmente com o desvelamento de práticas corruptivas.
Todavia, somente quando houver indicativos sérios e idôneos de descumprimento das determinações normativas vigentes, como a necessária comunicação aos órgãos competentes sobre a situação patrimonial, torna-se viável buscar esclarecimentos, molestar a intimidade de cidadãos (autoridades ou não) e movimentar a (onerosa e sobrecarregada) máquina estatal para detectar eventuais ilícitos. O raciocínio não pode ser inverso, sob pena de vivermos em um cenário endêmico de caos, inviabilizador das mudanças sociais, econômicas e políticas tão almejadas.
Apesar dos recentes casos envolvendo comportamentos desviantes, não é possível tornar automaticamente uma prática a princípio lícita em ilícita. Do contrário, não faltarão vítimas desse pensamento: servidores públicos que recebem generosos benefícios previstos em ato normativo; gestores que administram verbas públicas com clara dotação orçamentária; advogados que promovem planejamentos tributários (elisão fiscal); autoridades que, no âmbito de suas atribuições, precisam requerer ou decretar, com base, em princípio, no ordenamento jurídico, o afastamento (temporário e pontual) de direitos fundamentais etc.
Ora, a insegurança e o açodamento não podem reinar...
Por óbvio, qualquer conduta ilícita, como, por exemplo, malversação de recursos públicos e abusos de autoridade, precisa ser devidamente identificada e apurada, na forma da legislação vigente. Para tanto, é preciso ter base empírica concreta, e não meras reportagens/opiniões jornalísticas, sob pena de cometimento, dependendo das circunstâncias fáticas, dos delitos previstos nos artigos 271 e/ou 302 da lei 13.869/2019 (que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade).
Ao ensejo, em relação à posição da população em geral, é extremamente salutar o engajamento social em assuntos tão importantes e sensíveis. Contudo, deve-se ter cuidado ao ler ou ouvir determinados blogs, sites e jornais. Isso, porque, não raras vezes, a notícia é conduzida de maneira parcial e tendenciosa, sem a preocupação de explicar adequadamente a temática, até mesmo porque enfraqueceria seu caráter sensacionalista.
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1 "Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa. Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada."
2 "Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa."
Flávio Mirza
Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre em Direito pela UGF. Professor da UERJ e da UCP. Sócio de Mirza & Malan Advogados.
Diogo Malan
Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Processual Penal pela USP. Mestre em Direito pela UCAM. Professor da UERJ e da UFRJ. Sócio de Mirza & Malan Advogados.
André Mirza
Mestre em Direito Constitucional (IDP/DF). Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu (Univ. de Coimbra). Autor de "Acesso aos autos na colaboração premiada". Sócio de Mirza & Malan Advogados.
Amanda Estefan
Especialista em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Mestranda em Direito Processual pela UERJ. Sócia de Mirza & Malan Advogados.