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Levando o Direito a sério: opiniões pessoais e juízos morais não atendem o requisito legal de fundamentação das decisões judiciais

Um magistrado se torna um magistrado precisamente por meio de procedimentos não eletivos e não representativos, que pressupõem que o investido na função se trata de um profundo conhecedor do Direito e portador de destacadas capacidades de análise técnico-jurídica.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Atualizado às 14:09

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em decisão liminar, na semana passada, uma juíza da 2ª Vara Cível da comarca de Gaspar/SC concedeu autorização para que uma professora da rede pública não seja vacinada contra a covid-19.1 Os fundamentos da decisão, alheios à normatividade jurídica vigente, são sustentados em considerações opinativas da magistrada (cumpre frisar: não sobre legislação ou jurisprudência, mas sim sobre medicina), que entende que as vacinas "ainda estão em fase de teste" e que a exposição ao vírus tem o condão de desenvolver "a imunidade almejada por qualquer vacina", sem necessidade de qualquer procedimento.

A decisão seria um "fenômeno isolado", uma "excentricidade" de um juízo de primeira instância de comarca interiorana, um fato banal indigno de nota? Não parece ser o caso. Esta semana, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro suspendeu o chamado "passaporte da vacina" em toda a capital do estado, alegando que o decreto municipal não poderia "impedir a liberdade de locomoção" do cidadão não vacinado.2 A decisão, da lavra do desembargador Paulo Rangel, classificou as medidas municipais como "ditadura sanitária" e comparou a divisão da sociedade entre vacinados e não vacinados com perseguições sofridas no passado por escravos e, em tempos mais recentes, pelos judeus nas mãos do regime nazista.

Não nos interessa, aqui, discorrer sobre o mérito das opiniões pessoais e dos juízos de valor fartamente invocados por ambos os magistrados em suas respectivas decisões. Problemáticas e falhas o quanto sejam, são opiniões às quais ambos têm direito em um ambiente democrático. Chamo a atenção, isso sim, para um problema estritamente jurídico, qual seja: decisão judicial não fundamentada é decisão judicial nula - e fundamentar, neste sentido, não é um requisito formal de exercício discricionário de retórica opinativa, mas sim um elemento constitutivo do ato de aplicação da lei, que demanda a elaboração de um raciocínio hermenêutico-normativo, que foi solenemente ignorado em ambos os casos.

Primeiramente, cumpre esclarecer que o pretendido debate moral sobre liberdade versus obrigatoriedade da vacina não encontra amparo na normatividade do nosso ordenamento jurídico. O caráter compulsório da vacina (que não se confunde com vacinação forçada) encontra-se estabelecido pelo inciso III, d do art. 3º da lei 13.979/2020, bem como pelo §4º do mesmo artigo. Além disso, eventual discussão sobre a aplicação ou constitucionalidade de tais medidas não encontra mais qualquer amparo jurídico após o julgamento das ADIs 6.586 e nº 6.587 pelo Supremo Tribunal Federal.

Na esteira da legislação e das decisões supracitadas, se é verdade que vacinação compulsória não é vacinação forçada e que a imunização exige sempre o consentimento do cidadão, por outro lado não há controvérsia em relação ao fato de que a compulsoriedade da vacinação pode assumir caráter coercitivo indireto por meio de medidas restritivas, cuja definição e implementação é de competência concorrente da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Nos termos do art. 489 do Código de Processo Civil, os fundamentos da sentença constituem elemento essencial da decisão e pressupõem a análise das questões de direito - sendo que não se considera fundamentada qualquer decisão que meramente empregue conceitos jurídicos indeterminados ou que não analise jurisprudência ou precedente invocado. Tais pressupostos dialogam diretamente com o comando normativo estabelecido pelo art. 926 do mesmo diploma legal, que dispõe que os tribunais devem "uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente" - dispositivo cuja redação possui explícita influência de matriz dworkiniana3 e, mais diretamente, da Crítica Hermenêutica do Direito4 capitaneada pelo grande mestre Lenio Streck, um dos principais constitucionalistas do país.

Por óbvio, se a fundamentação da sentença é considerada inexistente se calcada na mera invocação de conceitos indeterminados, ainda que de natureza jurídica, muito menos é possível conceber que este elemento essencial da decisão seja atendido com base no apelo a preferências e opiniões pessoais sobre questões extrajurídicas, juízos valorativos sobre áreas do conhecimento humano externas às ciências jurídicas e analogias históricas de improviso5.

A questão central aqui, obviamente, não se limita à mera crítica a duas decisões anômalas esparsas - até porque cumpre esclarecer que, no momento da elaboração do presente artigo, já circulavam notícias sobre a reforma de ambas as decisões (respectivamente, pelo TJSC e pelo STF).6 O problema real reside no fato de que as decisões aqui criticadas são sintomas de uma duradoura cultura de discricionariedade judicial, que persiste no senso comum teórico dos juristas e resiste aos avanços da Teoria do Direito (e até mesmo da própria legislação). Esta cultura voluntarista opera dentro de uma lógica defensiva de poder, que subverte o ato de aplicação da norma e o transforma em uma questão de "escolha" do julgador, uma "opção", a respeito da qual ele não se encontra adstrito à normatividade sistêmica existente, prestando contas única e exclusivamente à "sua consciência".

Não custa lembrar que, em nosso ordenamento jurídico, um magistrado se torna um magistrado precisamente por meio de procedimentos não eletivos e não representativos, que pressupõem que o investido na função se trata de um profundo conhecedor do Direito e portador de destacadas capacidades de análise técnico-jurídica. Isso se dá porque o cidadão, quando bate às portas do Poder Judiciário requerendo a prestação jurisdicional, pretende obter uma solução fundada naquilo que o Direito tem a dizer sobre determinada pretensão por ele disputada - o que é muito diferente de imaginar que o cidadão recorre ao Judiciário para saber o que o juiz "A" ou "B" subjetivamente pensa, em termos de opiniões pessoais ou considerações morais, sobre o mérito de sua pretensão.

Se assim não fosse - ou seja, se a resposta jurisdicional buscada pelo cidadão fosse dada não pelo Direito, mas sim pelos pré-conceitos, pré-juízos e preferências pessoais de cada magistrado -, por óbvio toda a nossa organização judiciária estaria erigida sobre fundamentos equivocados. Neste caso, seria mais democrático e justo estabelecer que a magistratura passaria a ser integrada, por meio do voto popular, por diferentes representações proporcionais de categorias profissionais variadas, como empresários, varejistas, jornalistas, médicos, professores, sindicalistas, profissionais liberais, etc. Trata-se de um cenário hipotético bastante excêntrico e de viabilidade duvidosa, sem dúvida - mas não mais excêntrico e duvidoso do que imaginar que as preferências e opiniões pessoais de um magistrado, quando invocadas como fundamento para decidir sobre os direitos dos cidadãos, "valeriam mais" ou seriam mais qualificadas do que as preferências e opiniões pessoais de quaisquer das pessoas acima referidas.

O fundamental, aqui, é a compreensão coletiva de que a vida organizada em sociedade e o Direito existem precisamente para, em algum grau, impor limites e interditos a todos7, inclusive aos encarregados da aplicação das normas jurídicas.

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3 Sobre a teoria do Direito como Integridade, ver: DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

4 Ver: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

5 Não se trata, aqui, de sugerir que o raciocínio analógico seria antijurídico, mas sim de que o recurso à analogia precisa se dar dentro de um argumento jurídico. Cabe mencionar a lição de Weinreb: "O direito pede a nossa lealdade e, tendo o monopólio legítimo do uso da força, exige a nossa obediência. O esforço para consolidar a suficiência racional do argumento jurídico analógico é incitado pela ideia de que, se a decisão judicial pecar por falta de racionalidade, ela será também normativamente insuficiente. [...] O esforço para proceder por meio de normas impõe [...] que as pessoas encarregadas de aplicar as normas tentem cuidadosamente ser fiéis aos termos destas, dispondo da experiência e da instrução necessárias para tanto. Tal esforço exige a honestidade dos homens públicos, não a eliminação do juízo humano. O requisito da determinação, afinal de contas, consubstancia-se em que as normas tenham limites razoáveis e determináveis na prática, não em que tais limites sejam autodetermináveis". WEINREB, Lloyd L. A razão jurídica: o uso da analogia no argumento jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2008. p. 122-124.

6 Sobre este ponto, cabe inclusive questionar se a rápida resposta "corretiva" dada pelas instâncias superiores, em ambos os casos, tem a ver tão somente com o manifesto excesso de arbitrariedade discricionária presente nas duas decisões - ou se o verdadeiro fator determinante destas respostas rápidas, na realidade, foi a grande repercussão de mídia e redes sociais gerada pelas decisões iniciais, posteriormente reformadas. Parece claro que a irritabilidade social, por vezes, pode gerar constrangimentos institucionais e fomentar respostas do Poder Judiciário de uma forma que seria muito difícil (ou até impossível) por meio do mero constrangimento argumentativo-epistemológico.

7 Especificamente sobre este tema, remeto ao meu artigo "As liberdades individuais no contexto da Covid-19: Constituição em tempos de pandemia", publicado no site do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul em maio de 2020. Endereço: clique aqui.

Henrique Abel

VIP Henrique Abel

Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS/RS, com estágio doutoral na School of Law of Birkbeck, University of London. Autor. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Advogado.

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