Como valorizar um produto nacional
A tendência ao crescimento vegetativo do Poder Judiciário é inversamente proporcional à sua eficiência. O Parlamento sabe disso. A sociedade, um dia, também descobrirá.
quarta-feira, 6 de outubro de 2021
Atualizado às 08:18
Tenho procurado evidenciar que a solução do constituinte ao redigir o artigo 236 da Constituição Federal foi acertada e produziu excelentes frutos. Mas ainda não exauriu suas potencialidades.
No momento em que o Brasil precisa alavancar sua economia, seriamente comprometida pelo combo de crises que recaiu sobre a nacionalidade, é preciso fazer com que as delegações extrajudiciais incrementem a atividade negocial. Exercem atividades essenciais, dinamizam o fluxo negocial, têm fé pública e não oneram o governo. Ao contrário: ajudam a reduzir o elevado déficit decorrente de gastos que não revertem para uma sociedade complexa e caracterizada por crescentes desigualdades.
Já mencionei o estranhamento dos estrangeiros, notadamente norte-americanos, quando verificam a existência de um valioso patrimônio imobiliário inexplorado, resultante de se não permitir alienações judiciárias ou hipotecas simultâneas, a recaírem sobre o mesmo imóvel, até exaurimento de seu real valor.
São Paulo é um paliteiro de arranha-céus. Uma utilização inteligente do que representam como possibilidade de obtenção de crédito aceleraria os negócios e daria fôlego para atravessar os dias difíceis que ainda se prenunciam, com inflação em dois dígitos, crise hídrica a deixar milhões sem água e sem energia e o desvario da política polarizada.
A obtenção de vários financiamentos, em lugar de um só, quando um edifício de cem milhões de reais garante apenas uma dívida de vinte milhões, deixando oitenta milhões sem qualquer proveito para a economia nacional, parece uma das tolices da prática jurídica tupiniquim.
E não é só para os grandes negócios. O modesto proprietário de um imóvel de 50 mil reais, poderia realizar sonhos que hoje são utopia. Exemplo: financiar um curso para o neto, realizar aquela viagem prometida aos entes queridos e nunca efetivada. Até reformar a residência necessitada de reparos. Tudo isso seria possível, se pudesse acumular garantias simultâneas.
Não é só. O Registro de Imóveis pode se desincumbir a contento, em menos tempo e com eficiência incomparável à Justiça comum, das questões de adjudicação compulsória, execução hipotecária e a execução de dívidas propter rem. É de sua essência saber trabalhar com essa realidade que aflige milhões de brasileiros.
O RI é um acervo informacional de excelente qualidade. Pode e deve servir para o planejamento de todas as políticas públicas. Detém o acervo das áreas urbanizáveis, da cobertura vegetal a cada dia mais importante na era em que o aquecimento global causador das mudanças climáticas é o maior risco já imposto sobre a humanidade.
Um ponto que merece reflexão e, mais do que isso, ação concreta, é encarar com vontade e seriedade a Regularização Fundiária, política estatal que ainda carece de incremento. Não é apenas uma questão registral, mas um tema com repercussão econômica e cívica. O território informal da propriedade é um outro tesouro inexplorado. No momento em que o ocupante de um pequeno lote, considerado às vezes invasor, ou usuário clandestino de uma terra que não é sua, obtém o título dominial, ele vai movimentar a economia local. Vai obter financiamento para uma edificação, para uma reforma, para valorizar aquilo que agora pode dizer que é seu.
Mais ainda: passará da precariedade para a regularidade formal registrária. Cresce em cidadania. Tem um upgrade no seu status civitatis. Quase sempre é um adquirente humilde e cumpridor de suas obrigações, pois pagou religiosamente suas prestações, e não consegue registro de sua posse. Esse revigoramento ético da condição cidadã é um subproduto muito importante da regularização fundiária.
O Parlamento tem todas as condições para fazer com que isso aconteça e o CNJ poderia atuar na seara. Atendendo à reivindicação da sociedade para que as delegações extrajudiciais assumam todas as atribuições hoje cometidas ao Judiciário e que podem ser desempenhadas com eficiência maior pelos delegatários. Basta observar o que as entidades de classe promoveram em termos de modernização e assimilação proficiente das modernas tecnologias disponíveis. A diligência com que atuam, sem as amarras da administração pública direta, propiciou esse evidente salto qualitativo.
O RI conseguiu melhorar a performance brasileira no doing business do Banco Mundial, que enxergava catorze procedimentos antecedentes ao efetivo registro predial. Requisitos que não guardam pertinência com o ato registral, mas representam a tendência estatal de sobrecarregar parceiros com tarefas anômalas. Cujo custo social recai sobre inocentes.
Também reconhecer as delegações como as principais parceiras do movimento de pacificação e harmonização de uma sociedade complexa e polarizada, pois além de resolver rápida e eficientemente uma questão, poupam ao interessado o calvário de percorrer as quatro instâncias do Judiciário e de se submeter à imprevisibilidade de uma decisão que pode suportar dezenas de reapreciações, diante de um sistema recursal caótico.
Mais ainda: a transferência de atribuições ao extrajudicial poupa o Erário de criar mais Tribunais, mais cargos, mais funções, mais estruturas materiais, mais equipamentos. A tendência ao crescimento vegetativo do Poder Judiciário é inversamente proporcional à sua eficiência. O Parlamento sabe disso. A sociedade, um dia, também descobrirá.