Os desafios da Sociedade Anônima de Futebol
O modelo de clube-empresa não é garantia de êxito e modernização, e deve ser acompanhado de uma gestão profissional e capacitada, em termos esportivos e econômicos. No entanto, a lei 14.193/2021 pode trazer inúmeros avanços ao futebol brasileiro, significando um passo importante rumo à sua profissionalização e modernização.
segunda-feira, 4 de outubro de 2021
Atualizado em 8 de outubro de 2021 08:33
A organização de clubes de futebol através de um modelo empresarial não é tema recente e já avançou em diversos países da América, como Chile, Colômbia e México, e da Europa, como Portugal e Espanha. A Sociedade Anônima de Futebol (SAF) foi abordada, no Brasil, pelo Projeto de lei 5.516 de 2019, que foi sancionado, com vetos, pelo Presidente da República, dando origem à lei 14.193/21. Nesta semana, alguns dos vetos presidenciais foram derrubados pelo Senado Federal e, agora, a matéria segue para a análise da Câmara dos Deputados, já que a derrubada dos vetos precisa ser ratificada pelas duas casas do Congresso Nacional.
De acordo com dados divulgados pela plataforma Professional Football Landscape, anunciada pela FIFA, o Brasil possui cerca de 656 clubes de futebol profissional, o que representaria, aproximadamente, 15% dos clubes existentes no mundo.
O mercado do futebol do Brasil, ainda que seja um espaço de elevada circulação de ativos, não possui mecanismos que viabilizem o financiamento de clubes, que adotam, atualmente, o modelo de associação civil sem fins lucrativos, o que dificulta a captação de recursos, em um cenário no qual os times possuem dívidas significativamente maiores que suas próprias receitas.
A título de ilustração, os 20 clubes brasileiros mais endividados somam um saldo devedor de R$ 10,2 bilhões, de acordo com estudo divulgado pela consultoria Sportsvalue, possuindo as dívidas naturezas diversificadas: dívidas trabalhistas com ex-atletas e funcionários, dívidas tributárias e dívidas de natureza privada, por exemplo.
Através da sanção da lei 14.193/21, objetiva-se a concretização do futebol como uma atividade econômica e a efetiva separação dos clubes futebolísticos da logística adotada pelas associações civis. Dessa maneira, a lei prevê a possibilidade de criação da Sociedade Anônima de Futebol (SAF) por meio da transformação do clube ou de outra pessoa jurídica que o tenha criado, da cisão de seu departamento de futebol ou da iniciativa de pessoa jurídica ou natural.
Em um primeiro momento, o próprio clube de futebol seria o controlador da SAF, ou seja, deteria a totalidade das ações emitidas pela nova sociedade. No entanto, posteriormente, seria possível a entrada de novos sócios, o que já ocorre em grandes clubes do exterior, como é o caso do Bayern de Munique, que possui como acionistas grandes nomes, entre eles Adidas e Allianz. A entrada de parceiros econômicos seria viabilizada pela emissão pela SAF de ações, debêntures e títulos, o que não é possível no atual modelo de associação civil.
Com a instituição da SAF, haveria uma separação entre o clube como associação civil e o clube como empresa. Todas as questões relacionadas à administração e à gestão profissional do futebol - ou seja, exploração econômica de ativos, de formação de atleta profissional e outras atividades conexas ao futebol - ficariam a cargo do "clube-empresa", que não assume as dívidas contraídas pelo "clube-associação". O "clube-associação" ainda será o titular de seus próprios ativos, como nome, marca, símbolo e patrimônio, com a opção de integralizá-los na SAF, a depender do modelo optado por cada clube.
O texto legal traz inovações nas regras de governança, através da obrigatoriedade da instituição de conselho de administração e conselho fiscal, bem como regramentos para a ocupação dos respectivos cargos administrativos. Nesse sentido, a lei dispõe que tais funções não poderão ser ocupadas por jogador profissional com contrato de trabalho vigente, por membro de órgão executivo de outro clube-empresa, entre outros impedimentos. Ademais, para evitar quaisquer conflitos nas tomadas de decisão, a lei estabelece que o acionista controlador da SAF não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra Sociedade Anônima do Futebol.
O Projeto de lei também criou o Regime de Tributação Específica (TEF), o qual havia sido vetado pelo Presidente da República, mas foi restabelecido pelos parlamentares do Senado Federal. O regime institui unificação, mediante arrecadação mensal em documento único, dos seguintes tributos: IRPJ, PIS/Cofins, CSLL e contribuições previdenciárias, inclusive a incidente sobre a receita bruta de associação desportiva que mantém equipe de futebol profissional.
A alíquota única seria, para os 5 primeiros anos-calendários da constituição da SAF, 5% incidente sobre a sua receita mensal, excetuadas as receitas relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas.
Já a partir do sexto ano da constituição da SAF, a alíquota passaria a ser de 4%, incidente sobre a receita mensal obtida, inclusive as receitas relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas.
Através do TEF e da potencial carga tributária mais benéfica, o modelo de Sociedade Anônima será mais atrativo e possibilitará que os clubes adotem, de forma efetiva, um modelo de governança e lucratividade coerentes com a lógica do mercado.
Além do regime tributário específico, o Senado Federal derrubou parcialmente veto do Presidente, permitindo que a SAF possa captar recursos oriundos do governo através da lei de Incentivo ao Esporte, que funciona como um investimento do poder público no setor. Dessa maneira, os clubes poderão fazer a captação de recursos, de modo, no entanto, que continua vetada a permissão para que a verba seja utilizada para quitação de dívidas trabalhistas.
Apesar da força que a lei ganhou, alguns vetos foram mantidos pelos senadores, como o veto em relação à exigência da SAF informar sua composição acionária, ou seja, informações relacionadas aos seus acionistas e respectivas participações societárias, o que representa um entrave para a transparência das novas sociedades.
Ademais, o senado manteve veto que impede a emissão da "debênture-fut" e de qualquer outro título ou valor mobiliário, na forma da lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, ou conforme regulação da Comissão de Valores Mobiliários, criado especificamente para desenvolvimento da atividade futebolística ou não.
O modelo de clube-empresa não é garantia de êxito e modernização, e deve ser acompanhado de uma gestão profissional e capacitada, em termos esportivos e econômicos. No entanto, a lei 14.193/2021 pode trazer inúmeros avanços ao futebol brasileiro, significando um passo importante rumo à sua profissionalização e modernização.
Giovanna Dias
Advogada no escritório CQS/FV - Cesnik, Quintino, Salinas, Fittipaldi e Valerio Advogados.
Rafael Rocha
Colaborador do escritório CQS/FV - Cesnik, Quintino, Salinas, Fittipaldi e Valerio Advogados.