"Essa Tal Liberdade" e o Marco Civil da Internet
Um relato lúdico e crítico das tentativas do Poder Executivo Federal em alterar a legislação brasileira para, supostamente, garantir liberdade de expressão no uso da Internet.
terça-feira, 5 de outubro de 2021
Atualizado às 08:10
"O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade", assim indagava Alexandre Pires, no auge dos anos 90', em um dos mais famosos sambas deste nosso país. Naquela época, além de vivermos o estopim de alguns dos mais famosos sambas da música popular brasileira, nosso país também vivenciava sua redemocratização, e o início do processo de popularização da computação doméstica. De lá para cá, as tecnologias da informação evoluíram, no ritmo da propagação da Internet. Também testemunhamos a virtualização das relações humanas, e a expansão de grupos e redes sociais. Os suportes físicos das obras musicais foram substituídos pelo streaming. Coagidos pela pandemia global, até as relações de trabalho migraram para o campo do virtual. Ou seja, muita coisa mudou, nestes últimos vinte anos. O que não mudou, no entanto, foi o vácuo de resposta para a pergunta fulcral: "o que é que eu vou fazer com essa tal liberdade".
Com o justo objetivo de tutelar "essa tal liberdade", no ambiente virtual, em 2009, iniciou-se os debates em torno de uma legislação própria e específica: uma "Constituição da Internet". Em 2014, após longos e extensivos debates, o Congresso Nacional aprovou, e a então Presidência da República sancionou, a festejada lei 12.965/14, popularmente conhecida como "Marco Civil da Internet" (MCI). Se, durante décadas, a Internet foi considerada por muitos como terra de ninguém, com o advento do MCI passou a gozar de regramentos mínimos no que diz respeito ao seu uso (ao menos no Brasil), buscando interagir com o sistema jurídico como um todo a partir de um paradigma aberto e axiológico, expressamente sedimentado no fundamentado da "liberdade de expressão" - a propósito, vide artigo 2º, caput; artigo 3º, I; artigo 8º; artigo 19, caput e parágrafo 2º. Mais precisamente, a palavra "liberdade" é grafada em oito oportunidades, no MCI, ao longo dos seus trinta e dois artigos.
Recebido com otimismo nos mais diversos segmentos da sociedade, o MCI é uma legislação moderna e bem construída. Dialogando com a mais arejada base principiológica constitucional da nossa República, verteu para o mundo legislativo infraconstitucional, literalmente trazendo a Constituição para o mundo da Internet, as inspirações democráticas conquistadas a sangue e suor por homens como Ulysses Guimarães - simbolicamente citado neste artigo para homenagear todas aquelas valorosas pessoas que se irresignaram e conquistaram, naquele saudoso 05 de outubro de 1988, a materialização constitucional deste nosso Estado Social e Democrático de Direito.
Certamente, o MCI não é imune a críticas. A regulamentação da famígera questão das "Portas Lógicas", assim como do nefasto "Cyberbullying", são apenas dois campos de críticas que poderiam ser tecidas para a promoção de melhorias à lei. Recentemente, no entanto, no ânimo de supostamente garantir o direito à "liberdade de expressão", a Presidência da República editou uma Medida Provisória (MP), cadastrada sob o 1.068/2021, que pretendia modificar o Marco Civil da Internet para "dispor sobre o uso de redes sociais", e se aplicaria àquelas redes sociais que disponham de mais de 10 milhões de usuários no país, excluídas as aplicações de troca de mensagens instantâneas, assim como aquelas aplicações que tenham como principal finalidade a viabilização do comércio de bens ou serviços.
Em apertada síntese, dentre as alterações pretendidas, a MP criava o artigo "8-A", no MCI, para dispor sobre "direitos dos usuários de redes sociais", tais como: (i) observância, pelas plataformas de redes sociais, do contraditório, ampla defesa e recursos, nos casos de moderação de conteúdo; (ii) restituição de conteúdo gerado pelos usuários, mediante requerimento; (iii) reestabelecimento de contas, perfis e/ou conteúdos, em caso de moderação indevida; (iv) não exclusão, cancelamento ou suspensão, total ou parcial, de contas, perfis e/ou conteúdos, salvo por justa causa; (v) proibição de adoção de critérios de moderação ou limitação de alcance da divulgação de conteúdo que impliquem censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa.
Dito de outra forma, a moderação de contas, perfis e/ou conteúdos, abrangendo as hipóteses de exclusão, cancelamento e/ou suspensão, total ou parcial, antes realizada pelos provedores de redes sociais mediante decisão discricionária, considerando regras próprias insculpidas em seus termos de uso e políticas de privacidade, agora, passariam a observar hipóteses de "justa causa", consoante previsto no "8-B", do MCI, para a moderação de "contas e perfis", ou no artigo "8-C", para a moderação de "conteúdos gerados por usuários". Violação a essas previsões daria ao titular direito de petição para "restituição" e/ou "reestabelecimento" do elemento moderado de forma indevida, além da imposição de indenizações e penalidades, inclusive para questões envolvendo direitos autorais.
A MP, que entrou em vigor na data da sua publicação, ocorrida em 06 de setembro de 2021, conferia aos provedores de redes sociais o prazo de 30 (trinta) dias para adequação de suas estruturas às novas regras, o que abrangeria, no mínimo: (i) alteração de termos de uso e políticas de privacidade, não apenas para adequação do texto às novas exigências da MP, mas, também, para a alteração de estilo que permita fácil compreensão dos usuários às regras utilizadas pelo provedor; e, (ii) criação de canal de comunicação eletrônico com os usuários da Internet, para garantir fácil acesso aos direitos criados pela MP.
Na iminência de um novo pleito eleitoral, que ocorrerá no ano vindouro, as novas regras geram dúvidas sobre as reais intenções da Presidência da República. Considerando o contexto de enfraquecimento progressivo das instituições republicanas, ao ritmo das famigeradas Fake News, a MP aparenta revestir-se de promoção de liberdade travestida de cerceamento da própria liberdade que busca promover. Felizmente, em 14 de setembro de 2021, atendendo pedido liminar nos autos de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), a Ministra Rosa Weber suspendeu a vigência da MP em questão. No mesmo dia, o Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, também formalizou a devolução da MP ao Palácio do Planalto, dentre outras razões, pela dissonância da via eleita pelo executivo federal - medida provisória - para a pretendida alteração legislativa.
Certamente, o melhor cenário seria que os autores desta inovação legislativa assumissem a derrota, e seguindo a reflexão de Alexandre Pires - "eu andei errado, eu pisei na bola", desistissem desta controversa novidade legislativa - para dizer o mínimo. Infelizmente, o assunto não foi encerrado. Insistindo na questão, nos derradeiros dias de setembro, o Poder Executivo submeteu ao Congresso Nacional Projeto de lei (3227/21) que reproduz, integralmente, a Medida Provisória 1068/21 - atualmente, em tramitação na Câmara dos Deputados. Ou seja, em breve, surgirão novos capítulos desta novela - ou, fazendo jus à alegoria deste artigo, novas estrofes deste samba.
Maurício Brum Esteves
Advogado especializado em Direito Digital, Proteção de Dados e Propriedade Intelectual, com dez anos de experiência. Sócio e Data Protection Officer do Silveiro Advogados.