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A inquisição cearense. O Estado de exceção adotado no sistema penitenciário estadual

As medidas elencadas na Portaria 725/21 da Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará exclama os maus tratos a que são diuturnamente submetidos os apenados custodiados nas cadeias do Estado.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Atualizado às 08:03

(Imagem: Arte Migalhas)

A Inquisição foi um período da história humana caracterizado pela perseguição, julgamento e imposição de penas pela Igreja a pessoas acusadas de desviar-se dos padrões de conduta vigentes à época. Foi um período sangrento da história humana onde as autoridades constituídas atribuíam a si mesmas o Poder Divino para decidir, como bem entendem-se os destinos das pessoas comuns. Violações de direitos fundamentais, que sequer eram cogitados à época, foram consumados à exaustão, com a imposição de penas cruéis aqueles eventualmente condenados.

A Portaria 725/2021 da SAP/CE estabeleceu seu próprio movimento inquisitorial. O ato normativo exclama os maus tratos a que são submetidos os custodiados nas cadeias estaduais. A inconstitucionalidade quanto à forma de ingresso do recluso naquele estabelecimento e às restrições impostas anunciam a insegurança jurídica, cada vez mais crescente nas cadeias cearenses, tornando urgente a reflexão e o debate sobre o tratamento desumano dispensados aos custodiados. Parece-nos que regredimos algumas centenas de séculos, onde pequenos grupos outorgam para si o direito de decidirem o futuro dos demais. Estabeleceu-se, naquele presídio, verdadeiro Regime Disciplinar Diferenciado, ao total arrepio da lei.

O Regime Disciplinar Diferenciado é uma imposição diferenciada do cumprimento de pena no regime fechado, decorrente de situações previstas em lei, que implica em uma série de limitações de direitos e garantias constitucional e legalmente assegurados ao preso. As restrições impostas neste tipo de regime contêm um caráter mais severo que aquelas já existentes no regime fechado de cumprimento da pena e se justificam em razão de uma excepcionalidade legalmente prevista. Apesar da previsão legal, ainda assim, é grande o debate no mundo jurídico acerca da constitucionalidade da medida, sendo considerado por alguns autores como nove regime de cumprimento da pena, a saber: regime fechadíssimo.

Comparando as regras do Regime Disciplinar Diferenciado com aquelas constantes da Portaria 725/21 da Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará, podemos facilmente perceber as diversas semelhanças entre elas. É o que se depreende da tabela a seguir.

(Imagem: Divulgação)

Fácil constatar que a malograda Portaria possui inspiração normativa no conteúdo da lei de Execuções Penais, ao prever limitações parecidas aos direitos dos apenados. Muito embora sejam parecidas, é forçoso reconhecer que as características constantes da Portaria Cearense são, em número e grau, mais contundentes em limar direitos constitucionalmente assegurados aos presos. Uma simples comparação demonstra que há certa perversidade na Portaria Cearense que busca, a todo momento, isolar o preso do total convívio social. O banho de sol, por exemplo, não tem previsão para ser realizado em grupo. As visitas de familiares, por seu turno, são realizadas conforme a disponibilidade fixada a bel prazer da administração penitenciária. Fica nítido que se busca isolar o preso de todo e qualquer contato humano impingindo-lhe verdadeiro estado de exceção.

Salta aos olhos, no entanto - além da clara violação de direitos e garantias asseguradas pelo ordenamento jurídico brasileiro, a inconstitucionalidade material da Portaria que instituiu o funcionamento do presídio de segurança máxima do Ceará. Como visto alhures, o Regime Disciplinar Diferenciado, é uma sanção administrativa ao apenado em razão de circunstâncias previstas em lei. É perfeitamente possível concluir que o RDD tal como previsto na lei de Execuções Penais, é uma situação excepcional, autorizada somente nas hipóteses legais. Tanto é assim, que mesmo esse regime excepcional de cumprimento de pena tem prazo de duração limitado, justamente por ser considerado mais gravoso.

A inclusão do apenado no novo estabelecimento prisional do Ceará, por sua vez, não encontra razão de existir. Sobre o assunto, prescreve o art. 4º da Portaria 725/21 que

Art. 4º A UPSM, por suas características físicas e de localização, destina-se à custódia provisória ou execução de pena privativa de liberdade de presos com as seguintes características, isoladas ou concomitantes, que:

I - Sejam considerados de alta periculosidade;

II - Façam parte de organizações criminosas;

III - Possam ser objeto de resgate ou arrebatamento;

IV - Tenham histórico de fugas nos Sistemas Penitenciários em que tenha cumprido qualquer tipo de pena;

V - Detenham atuação de liderança negativa, violenta ou de extorsão, entre outros crimes, perante o restante da massa carcerária, de forma que seja evitado o engendramento e a organização de crimes a serem praticados dentro e fora do ambiente carcerário;

VI - Estejam sob severa ameaça de morte ou que, pela impossibilidade de convivência ou pela sua condição pessoal, não possam ser recolhidos em local comum;

VII - Possuam dificuldade de convivência com o restante da massa carcerária, com riscos à manutenção da sua integridade física, por fatos ocorridos no passado ou tipo de crime cometido; e

VIII - Outros presos que a administração superior da Secretaria da Administração Penitenciária - SAP entender necessários terem custódia na referida Unidade.

Podemos observar, pelos critérios elencados na referida portaria que, apesar de guardar semelhanças com o Regime Disciplinar Diferenciado - sendo este menos severo que o regime da penitenciária cearense, a transferência do custodiado para a Unidade Prisional de Segurança Máxima independente de qualquer infração administrativa praticada por este. A inconstitucionalidade da transferência de presos para a referida cadeia é tamanha que se estabeleceu na portaria o critério totalmente aberto - previsto no inciso VIII - de que poderiam ser incluídos naquela penitenciária os presos que a administração superior da Secretaria de Administração Penitenciária entender por bem que ali devam estar.

É importante voltar a esse ponto, da inclusão dos apenados nesse estabelecimento prisional. A decisão de alocação dos presos, num presídio de que tem como regra o estado de exceção, com a supressão de garantias e direitos fundamentais, pode ser feito a critério de pessoas politicamente escolhidas para determinada função pública. É de bom tom lembrar que pode o Governador do Estado, a qualquer tempo, realocar como bem entender o Secretário da Administração Penitenciária Estadual. Este, por sua vez, pode alterar toda a cadeia de comando daquela pasta, a seu bel prazer, apenas por vontade política. Esses são os escolhidos que determinam, conforme a sua vontade, qual preso irá, ou não cumprir pena naquele estabelecimento prisional.

É inconcebível a existência, em nosso ordenamento jurídico, dessa aberração jurídica que se instituiu no sistema prisional cearense. A título de exemplo, a inclusão do preso no RDD, conforme determina a lei, é precedido de instrução processual perante o Poder Judiciário e oitiva prévia da defesa do apenado e Ministério Público. É o que observamos dos seguintes dispositivos legais

Art. 53. Constituem sanções disciplinares:

I - advertência verbal;

II - repreensão;

III - suspensão ou restrição de direitos (artigo 41, parágrafo único);

IV - isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo, observado o disposto no artigo 88 desta Lei.

V - inclusão no regime disciplinar diferenciado.

Art. 54. As sanções dos incisos I a IV do art. 53 serão aplicadas por ato motivado do diretor do estabelecimento e a do inciso V, por prévio e fundamentado despacho do juiz competente.

§ 1º A autorização para a inclusão do preso em regime disciplinar dependerá de requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa.

§ 2º A decisão judicial sobre inclusão de preso em regime disciplinar será precedida de manifestação do Ministério Público e da defesa e prolatada no prazo máximo de quinze dias. (sem grifos no original)

Já a Portaria 725/21 da SAP/CE, sobre a inclusão do preso na UPSM, estabeleceu que

Art. 5º A inclusão do preso na UPSM dar-se-á por decisão da administração superior da SAP ou por ordem judicial.

É notória a diferença dos instrumentos normativos ora expostos. No caso da portaria cearense, basta apenas a decisão da administração superior da Secretaria de Administração Penitenciária para a inclusão do apenado naquela cadeia. Não há previsão da oitiva prévia da defesa do apenado ou do Ministério Público. Não há nem mesmo necessidade de uma determinação judicial. A SAP/CE basta por si só, devendo suas decisões serem acatadas pelos custodiados sem qualquer possibilidade de contraditório, ampla defesa e devido processo legal. Estes princípios são, pelo visto, verdadeiro entrave à verdadeira faceta de retribuição penal da pena. O Estado Democrático de Direito não é mais tão democrático e, muito menos, de Direito.

Resguardado o tom irônico, as vezes necessário para tratar as arbitrariedades praticadas por determinadas autoridades, é extremamente necessário o debate sobre a Portaria 725/21 da SAP/CE. É fato incontestável que ela normatizou - no duplo sentido da palavra - um regime que deveria ser de exceção, como algo corriqueiro. E mais, conduziu tal situação ao arrepio do Poder Judiciário, desrespeitando não só todo o sistema jurídico-penal brasileiro (e suas garantias inegociáveis aos réus/apenados) como também a própria tripartição dos Poderes, adentrando na esfera legislativa e de tomada de decisão, que deveria ser judicial, que não lhe compete. A teoria da hierarquia das normas não deve ganhar novos contornos, com o conselho superior da administração penitenciária cearense estando no topo da pirâmide. É urgente que se reestabeleça as garantias e direitos fundamentais violados, e que se readeque a normatização penitenciária do Ceará aos conformes da lei e da Constituição.

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Advogada criminalista. Atuante na defesa de custodiados em presídios federais. Doutora pela Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-doutora pelas Universidades de Salamanca (Espanha) e Messina (Itália).

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