Dia Marítimo Mundial: estamos prontos para navegação do futuro?
A navegação do futuro não está em algoritmos ou na eliminação da tripulação, mas sim na compreensão de como o fator humano pode impulsionar o desenvolvimento da navegação ao mesmo tempo que a navegação impulsione o desenvolvimento humano.
quinta-feira, 30 de setembro de 2021
Atualizado às 10:47
Desde 1978 a Organização das Nações Unidas celebra o Dia Marítimo Mundial, especialmente por meio de sua agência especializada, a Organização Marítima Internacional (IMO). Em 2021, o dia será celebrado em 30 de setembro e tem como tema "Marítimos no centro do futuro da navegação".
O Dia Marítimo Mundial é uma iniciativa para promover reflexões acerca do transporte marítimo, principalmente em relação à sua segurança, eficiência e sustentabilidade. Embora o transporte marítimo seja o principal meio de transporte do comércio internacional, bem como o mais eficiente, é um ilustre desconhecido para muitos.
Ao mesmo passo que o desenvolvimento sustentável depende de uma navegação marítima segura e eficiente, regulada de forma harmônica a nível mundial, o desconhecimento das peculiaridades do setor leva a insuficiência ou incompatibilidade normativa em diversos aspectos, prejudicando a segurança jurídica que é fundamental para atividade.
Nesse contexto, há trabalhos a nível internacional para superação dessas antinomias, seja por meio das Convenções da Organização Marítima Internacional, da Organização Internacional do Trabalho ou dos esforços de outras entidades internacionais públicas e privadas, bem como sob a égide das organizações regionais. Todavia, esses esforços dependem fundamentalmente dos países para atingirem seus objetivos.
Por ser um convite à reflexão, o Dia Marítimo Mundial sempre carrega um tema que na percepção da IMO é latente naquelas circunstâncias. Como dito, esse ano o tema é "Marítimos no centro do futuro da navegação". A temática se insere em uma sociedade internacional que continua a viver uma pandemia, buscando adaptações e soluções diariamente.
O tema ganha especial relevância ao tratar do principal sujeito da navegação: os marítimos, os quais sem dúvidas também foram os maiores impactados pela COVID-19 se considerarmos os empregados da indústria marítima. Diversos foram os casos de tripulações que não conseguiam desembarcar, dificuldades de vacinação, restrições migratórias entre outros impactos que demonstram como o tratamento dado aos marítimos ainda não é uniforme e por vezes pode desrespeitar direitos humanos.
Talvez as discussões recentes sobre navios autônomos tenha tirado alguma atenção das questões relativas aos marítimos, todavia, a ausência de tripulação embarcada ou sua redução não irá levar à superação dos marítimos, pelo contrário, ampliará a necessidade de formação de mão de obra qualificada e devidamente reconhecida.
O fator humano é essencial a segurança jurídica, mesmo que o erro humano seja uma das principais causas de acidentes. Entretanto, erros humanos não são superados com a supressão de humanos, mas com a devida formação e com a garantia de respeito aos direitos trabalhistas dos marítimos, notadamente em relação à sua saúde física e mental.
Em suas palavras pelo Dia Marítimo Mundial de 20211, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, roga que os países tratam os marítimos como "trabalhadores-chave", garantindo sua segurança, repatriação e trocas seguras de tripulação, permitindo inclusive seu ingresso em programas de vacinação. Destaca também que os governos devem prestar assistência aos marítimos em perigo, garantindo-lhes assistência médica.
Nesse sentido, o secretário-geral da IMO, Kitack Lim, destaca que até o momento, seguindo a recomendação da Assembleia Geral, 50 estados-membros da IMO tornaram os marítimos "trabalhadores-chave", conforme suas declarações em comemoração ao World Maritime Day2.
Entretanto, o número ainda é insuficiente. Grande parte dos marítimos vem de países em desenvolvimento, nos quais a vacinação ainda está em aquém do esperado. Esse problema é ampliado quando países se recusam a vacinar estrangeiros, além da janela de tempo entre a primeira e a segunda dose criar dificuldades de escala.
Embora a vacinação torne latente algumas das dificuldades da tripulação, não é a COVID-19 o único problema a ser enfrentado pelos trabalhadores do mar. O principal documento que visa harmonizar as relações de trabalho marítimo, a Convenção sobre Trabalho Marítimo de 2006, elaborada pela Organização Internacional do Trabalho entrou em vigor no Brasil em 7 de maio de 2021 e até o fim de 2020 seus signatários representavam 91% da tonelagem mundial.
Contudo, não há mecanismos a nível internacional capazes de verificar de maneira efetiva o respeito às disposições da Convenção. Muitas vezes, a falta de efetividade e proteção aos direitos dos marítimos ocorre mais por inércia do Estado do que por má conduta de armadores. É preciso que os países ofereçam não só mecanismos de acesso aos direitos garantidos pela legislação, mas também condições de circulação e saúde, efetivando os direitos humanos dos quais os marítimos são titulares.
As dificuldades de repatriação e acesso a serviços por marítimos demonstra uma incompreensão da indústria marítima por parte dos governos. Embora possa ser uma grande responsável pelo sucesso de sua balança comercial, por vezes os Estados não compreendem suficientemente a navegação a ponto de oferecer um ambiente favorável para todos seus sujeitos.
Por isso o tema do Dia Marítimo Mundial se mostra tão relevante: ao colocar os marítimos no centro da navegação do futuro, convida agentes públicos e privados a refletirem o papel humano no sucesso e na segurança da navegação.
Mecanismos internacionais de circulação de marítimos, intercâmbios para formação de pessoal, estímulos ao desenvolvimento profissional, entre outras iniciativas devem ser estruturadas pelos Estados, preferencialmente de modo uniforme, inclusive por meio de Convenções Internacionais. A navegação autônoma e outras tecnologias aplicadas aos navios não eliminam o fator humano, mas passam a exigir maior rigor técnico em sua formação.
Contexto no qual a posição brasileira merece atenção. O Brasil não é signatário de muitas das Convenções Internacionais aplicáveis ao transporte marítimo, o que impacta na segurança jurídica. É preciso compreender que a navegação não pode ser vista da perspectiva nacional e isso de modo algum implica em deixar de ser soberanos nos espaços marítimos nos quais a soberania pode ser exercida.
Pelo contrário, a harmonização a nível internacional representa a consciência de que a soberania deve ser instrumento para propiciar condições para o desenvolvimento sustentável, humano e comercial. Por isso, a navegação do futuro depende não apenas de novas tecnologias, mas da superação de antigos problemas da sociedade internacional.
O Brasil está em fase de reformulação da política marítima nacional3, conforme disposto no decreto 10.607/21. A política marítima nacional é elemento fundamental para o desenvolvimento da atividade marítima no Brasil, sendo que sua reformulação é o momento ideal para demonstrar se estamos preparados para navegação do futuro.
Espera-se que a nova política estabeleça diretrizes que almejem a efetivação de direitos humanos, a conservação do meio ambiente, aliados ao estímulo da indústria nacional e da livre concorrência, sem perder de vista a maior adesão do Brasil a textos internacionais.
A nível mundial, a Década dos Oceanos, iniciada em 2021, também é um convite para reflexão das relações com o Mar, seja para os Estados, indivíduos ou empresas. O Mar, embora dividido em oceanos, é espaço uno no qual os interesses e objetivos devem ser compatibilizados.
Por fim, a navegação do futuro não está em algoritmos ou na eliminação da tripulação, mas sim na compreensão de como o fator humano pode impulsionar o desenvolvimento da navegação ao mesmo tempo que a navegação impulsione o desenvolvimento humano, por isso não é exagero nenhum dizer que os marítimos estão no centro da navegação do futuro.
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Paulo Henrique Reis de Oliveira
Advogado no KINCAID | Mendes Vianna. Mestrando em Direito Internacional e Comparado pela USP. Secretário-geral do Centro de Estudos em Direito do Mar da USP. Membro da Associação Brasileira de Direito Marítimo e da Academia Brasileira de Direito Internacional.