A ADI 6622 e suas consequências para a liberdade religiosa dos indígenas isolados, missionários e agências
Breve análise acerca de como a procedência da ação poderá impactar no livre exercício da liberdade religiosa das agências missionárias, dos religiosos e dos próprios indígenas.
terça-feira, 28 de setembro de 2021
Atualizado às 10:41
O direito à liberdade religiosa contempla uma gama de possibilidades, dentre as quais destacamos: manter a própria crença ou mudar de religião quando quiser; receber, caso queira, o ensino religioso das confissões; e propagar, livremente, as suas convicções religiosas para pessoas de outras crenças e culturas.
Entretanto, na última sexta-feira (24/9/2021) veio a público, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6622, ajuizada pelo PT (Partido dos Trabalhadores) e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), decisão da lavra do Ministro do STF Luís Roberto Barroso, deferindo parcialmente o pedido dos autores no sentido de proibir missões religiosas de entrarem em áreas com indígenas isolados e de recente contato, devido a pandemia da Covid-19.
In verbis, na decisão, o Ministro Conclui:
"Diante do exposto, defiro parcialmente a cautelar para explicitar o impedimento de ingresso de missões religiosas em terras indígenas de povos isolados, com base em seu direito à vida e à saúde, conforme decisão já proferida na ADPF 709."1
Em outras palavras, para Barroso, impedir o ingresso de missões religiosas nas terras indígenas citadas, visa proteger à vida e à saúde dos índios (ainda que os missionários estejam testados e vacinados para a Covid-19).
Analisemos agora, brevemente, alguns dispositivos constitucionais e legais que ficaram prejudicados, sob a nossa ótica, devido a essa decisão. Vejamos as três perspectivas: das agências missionárias, dos missionários e dos indígenas.
Das agências missionárias
As agências missionárias são pessoas jurídicas de direito privado, mais precisamente "organizações religiosas" nos termos do art. 44, I, do Código Civil brasileiro. O parágrafo 1º deste artigo dispõe que "São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento". (grifo nosso).
Geralmente essas agências possuem como finalidades estatutárias essenciais, naturalmente, a propagação da confissão de fé que professam através de trabalhos de evangelização e proselitismo. No entanto, o trabalho das missões não é restrito apenas às questões de ordem religiosa, haja vista que muitas delas também têm por objetivo trabalhos nas áreas de saúde, educação, assistência social e ajuda humanitária, buscando levar às pessoas vulneráveis, inclusive indígenas, serviços básicos para uma vida digna.
Como a decisão em comento vedou o ingresso dessas ações e trabalhos nas tribos indígenas isoladas, as missões que trabalham nessas regiões doravante ficam impedidas de realizarem suas atividades fim, isto é, ficam proibidas de exercerem o objetivo principal para o qual foram criadas.
Dos missionários
Falamos acima das agências missionárias, entretanto, como ensina a teoria da ficção, as pessoas jurídicas são pessoas fictas, ou seja, uma ficção jurídica abstrata que por trás têm pessoas naturais, de carne e osso, que são, de fato, quem determinam o rumo das organizações através dos seus atos. No caso das missões religiosas são os missionários que estão na linha de frente do trabalho.
Sendo assim, como pessoas naturais no Estado brasileiro são titulares de direitos e garantias individuais, dentre os quais o direito à liberdade de consciência, de religião e de crença.
De acordo com o art. 5º, VI, da nossa Constituição Federal de 1988, "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias".
A nossa Lei Maior define, ainda, que: "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei" (art. 5º, VIII, da CRFB/88).
Cabe ressaltar, ademais, que o constituinte brasileiro, à luz do art. 19, I, também da nossa Constituição, vedou o embaraço ao funcionamento das organizações religiosas e ainda estabeleceu a possibilidade de cooperação entre Estado/religião quando visar o interesse público.
Neste sentido, a liberdade religiosa não é, meramente, um direito único e taxativo. Trata-se, na verdade, de um conjunto de possibilidades pertinentes ao exercício da religiosidade, do qual destacamos o direito à liberdade de expressão religiosa, que diz respeito, exatamente, a possibilidade de propagar livremente uma crença visando persuadir outras pessoas a aderirem a mesma fé, ou seja, a atividade evangelizadora, que é bem diferente da catequese ou da imposição religiosa.
Dito isto, à luz da decisão na ADI 6622, os missionários religiosos, muitos dos quais têm como objetivo existencial de vida a propagação da sua fé e o serviço de ajuda humanitária nessas regiões, tiveram sua liberdade religiosa mitigada, uma vez que estão proibidos de adentrarem nessas tribos, não só para disseminarem as suas crenças, mas também para prestarem serviços de assistência aos indígenas.
Dos indígenas isolados
Quem são os povos indígenas isolados? Essa definição está contida na lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, mais conhecida como o Estatuto do Índio. O art. 4º, I, dispõe que os índios são considerados isolados "quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional".
Por estarem vivendo num Estado democrático de direito, os indígenas isolados, assim como os cidadãos que vivem na comunhão nacional, também são titulares de direitos, garantias e liberdades. Neste sentido, a liberdade de religião ou crença, reconhecida, defendida e promovida nos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e garantida nas constituições de países democráticos, são extensíveis a todos homens e mulheres, universalmente, independentemente de credo, raça, etnia, ou quaisquer diferenças tendo em vista o princípio da dignidade da pessoa humana.
O direito internacional dos direitos humanos e o ordenamento jurídico brasileiro como um todo apontam, de modo justo, para o respeito às culturas, histórias, línguas e modos de vida indígenas como forma de enriquecer a identidade cultural dos Estados e promover sua preservação, respeitando os direitos e tradições de quem já habitava as terras antes dos colonizadores e migrantes.
O Estatuto do Índio brasileiro estabelece:
Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos:
I - estender aos índios os benefícios da legislação comum, sempre que possível a sua aplicação;
II - prestar assistência aos índios e às comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional;
III - respeitar, ao proporcionar aos índios meios para o seu desenvolvimento, as peculiaridades inerentes à sua condição;
IV - assegurar aos índios a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência;
V - garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progresso;
VI - Respeitar, no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes;
VII - executar, sempre que possível mediante a colaboração dos índios, os programas e projetos tendentes a beneficiar as comunidades indígenas;
VIII - utilizar a cooperação, o espírito de iniciativa e as qualidades pessoais do índio, tendo em vista a melhoria de suas condições de vida e a sua integração no processo de desenvolvimento;
IX - garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes;
X - garantir aos índios o pleno exercício dos direitos civis e políticos que em face da legislação lhes couberem.
Percebe-se que a legislação buscou harmonizar questões como o respeito a tradição e cultura indígenas, a garantia de direitos, a autodeterminação dos índios, a assistência aos povos indígenas (mesmo os não integrados, ou seja, isolados), bem como a integração do índio à comunhão nacional, visando o interesse positivo mútuo.
Isto posto, sob o nosso entender, a decisão de Barroso na ADI 6622 também impacta negativamente a liberdade religiosa dos próprios indígenas, pois considerando que eles também são titulares deste direito, não podem ser privados de receberem o ensino religioso de outras crenças (caso assim o desejem) com base na sua autodeterminação, afinal, como dissemos inicialmente: a liberdade de religião ou crença também garante o direito de manter ou mudar de religião quando assim o quiser.
E além de serem privados do ensino religioso, os indígenas isolados podem sofrer prejuízos de ordem social, material e existencial, tendo em vista que muitas dessas agências missionárias atuam na prestação de serviços voluntários nas áreas de saúde, educação, assistência social e ajuda humanitária, notadamente em regiões de isolamento e vulnerabilidade.
Considerações finais
Diante de todo o exposto, entendemos que a decisão do Min. Barroso proferida nos autos da ADI 6622 foi desproporcional, especialmente no contexto de avanço da vacinação e de queda de casos e mortes ocasionadas pela Covid-19. Naturalmente, ainda precisa-se manter cuidados visando prevenir a disseminação do vírus, pois a pandemia ainda está em vigor.
Entretanto, sob o nosso ponto de vista, sacrificar direitos humanos e garantias constitucionais e legais das agências e seus missionários, proibindo-os de realizarem as suas missões em tribos isoladas, mesmo que vacinados, testados e autorizados pelos líderes indígenas locais, constitui uma flagrante violação a liberdade religiosa destas pessoas, bem como dos próprios índios que ficaram privados de receber assistência religiosa e nas mais diversas áreas.
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1 STF.