As balizas punitivas do Processo Administrativo de Responsabilização
O cerne do problema que queremos aqui discutir está na reiterada confusão acerca de algumas premissas essenciais que circunscrevem o PAR: o pressuposto para sua instauração e as condições para a aplicação de diferentes sanções administrativas em um mesmo processo.
terça-feira, 28 de setembro de 2021
Atualizado às 08:38
É inegável que o enfrentamento à corrupção tem sido um dos assuntos protagonistas do debate público nacional, repercutindo na densificação do que se tem chamado de "microssistema brasileiro de combate à corrupção" e numa atuação cada vez mais incisiva dos órgãos de controle. Neste cenário, a Lei Anticorrupção Empresarial (Lei 12.846/13), inovando no ordenamento jurídico brasileiro, municiou a Administração Pública com um relevante instrumento para sancionar as pessoas jurídicas que contra ela pratiquem determinados atos lesivos: o Processo Administrativo de Responsabilização (PAR).
Temos observado, contudo, a partir da atuação em diferentes casos, um desvirtuamento na utilização do PAR como instrumento sancionador do Poder Público na esfera administrativa, razão pela qual pretendemos, com este artigo, contribuir para a discussão sobre a sua correta utilização.
O cerne do problema que queremos aqui discutir está na reiterada confusão acerca de algumas premissas essenciais que circunscrevem o PAR: o pressuposto para sua instauração e as condições para a aplicação de diferentes sanções administrativas em um mesmo processo.
Em relação ao primeiro ponto, observamos, com certa frequência, que alguns entes federativos têm lançado mão da abertura de um PAR para apuração indistinta de atos que entendem transgressores das normas pertencentes ao microssistema anticorrupção.
No entanto, a lei 12.846/13 concebeu o PAR como instrumento destinado exclusivamente à persecução administrativa afeta aos atos lesivos à Administração Pública que a própria lei descreve. Em outras palavras, para fins de responsabilização administrativa no âmbito de um PAR, a conduta do sócio, gestor, colaborador ou representante da pessoa jurídica em investigação deve se amoldar com exatidão a pelo menos um dos atos definidos como lesivos no artigo 5º da lei 12.846/13, cujo rol é taxativo.
Disso decorre a absoluta impossibilidade de se instaurar um PAR para apurar ato que se subsuma à Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), mas que não encontre o correspondente enquadramento no elenco do artigo 5º da Lei nº 12.846/13. Neste caso, a responsabilização da pessoa jurídica ficará adstrita à eventual sanção judicial no domínio de uma ação coletiva sancionatória por ato de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, jamais podendo ensejar uma punição administrativa em sede de PAR.
É oportuno realçar, outrossim, que a instauração de um PAR por ilícitos não contemplados pela lei 12.846/13 caracteriza, de modo evidente, falta de justa causa para a persecução administrativa, podendo acarretar, em tese, a responsabilização penal da autoridade que o deflagrou pelo crime de abuso de autoridade tipificado no artigo 30 da lei 13.869/19.
O segundo problema que temos percebido diz respeito à identificação das sanções aplicáveis no âmbito do PAR. Como se sabe, há um amplo leque normativo no que concerne à repressão de ilícitos administrativos, de modo que uma determinada conduta pode atrair a incidência de penalidades dispostas em leis distintas.
Isto emerge da própria Lei Anticorrupção Empresarial, a qual, em seu artigo 30, II, enuncia que a aplicação das sanções administrativas nela previstas não afeta a imposição daquelas decorrentes das normas de licitações e contratos da Administração Pública.
Neste sentido, é indiscutível que uma mesma conduta possa caracterizar violação concomitante da Lei Anticorrupção Empresarial e das normas de licitações e contratos públicos, como ocorreria no caso de um ato praticado com o fim de frustrar o caráter competitivo do procedimento licitatório. Em situações desse jaez, o Poder Público pode proceder à apuração administrativa conjunta destas múltiplas infrações, tal como exterioriza o artigo 12, caput, do decreto federal 8.420/15, que regulamenta a lei 12.846/13.
Aliás, nos termos do § 2º do artigo 12 do decreto federal 8.420/15, se o responsável pela gestão de licitações e contratos verificar a existência de fatos que também configurem atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção Empresarial, deverá comunicá-los à autoridade máxima da entidade lesada para possibilitar o processamento conjunto, no âmbito do PAR, das potenciais infrações. Estabelece-se, assim, uma vis attractiva em torno do PAR para a apuração dos demais ilícitos administrativos eventualmente cometidos pela pessoa jurídica, tipificados nas normas de licitações e contratos, dentre outros diplomas legais.
Portanto, no âmbito do PAR somente será admissível a aplicação de penalidades não previstas na lei 12.846/13 quando preenchidos três requisitos cumulativos:
(i) o ato em exame deve constituir ilícito administrativo tipificado não só na Lei Anticorrupção Empresarial, mas também em outro diploma legal de caráter sancionatório;
(ii) a instauração do processo deve descrever adequadamente todas as infrações imputadas e indicar todas as sanções passíveis de aplicação no caso concreto, a fim de possibilitar o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa; e
(iii) as sanções administrativas a serem aplicadas devem ostentar natureza diversa, sob pena de configuração de bis in idem.
Além das sanções do artigo 6º da lei 12.846/13, por exemplo, é possível aplicar no próprio PAR a penalidade de restrição ao direito de participar em licitações ou de celebrar contratos com a Administração, bem como a declaração de inidoneidade. O que não se revela legítimo, porém, é a imposição de duas penas de multa, uma com fundamento em cada lei, já que constituem sanção de idêntica natureza como repressão ao mesmo fato e na mesma instância, dando azo ao aludido bis in idem. Nesta esteira, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que "um mesmo fato não poderá ensejar duas punições de mesma natureza" (RMS 61.317/MG, Rel. Ministro Sérgio Kukina, 1ª Turma, julgado em 11/02/2020).
Evidentemente, caso a decisão final do PAR conclua que não restou verificada a infração da Lei Anticorrupção Empresarial, exclui-se também a possibilidade de aplicação das sanções previstas no outro diploma legal, sob pena de violação das regras do devido processo legal administrativo. Em outras palavras: se ao fim do processo apenas a transgressão à lei 12.846/13 ficar caracterizada, é manifestamente ilegal a aplicação de qualquer penalidade prevista na lei 8.666/93, por exemplo.
Por fim, não se pode olvidar que o decreto federal 8.420/15 não modifica as regras de competência para aplicação das sanções definidas em leis diferentes, de modo que, quando houver mais de uma autoridade competente para julgar as infrações imputadas, o PAR deve ser encaminhado primeiramente, após a sua conclusão, à autoridade de nível mais elevado, para que promova o julgamento dentro da sua esfera de competência.
São essas, portanto, as primeiras balizas que delimitam o adequado emprego do PAR, o qual possui uma utilização cada vez mais alargada no contexto do enfrentamento à corrupção, inclusive como principal instrumento de punição administrativa das pessoas jurídicas no âmbito da Lei Anticorrupção Empresarial.
Marcelo Zenkner
Sócio de TozziniFreire Advogados. Doutor em Direito Público pela Universidade Nova de Lisboa, ex-promotor de Justiça, ex-diretor de Governança e Conformidade da Petrobras e ex-secretário de Controle e Transparência do Espírito Santo.
Gabriel Ene Garcia
Advogado em TozziniFreire Advogados. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra.