Pode haver determinação judicial para que o advogado reduza o número de páginas de uma petição inicial?
Reflexões em torno do tema atinente ao limite entre prerrogativa funcional e poder do juiz em limitar essa livre manifestação.
sexta-feira, 17 de setembro de 2021
Atualizado às 14:18
Não pretende este articulista ser o artífice do caos ou gerar situações de beligerância institucional, mas, em ano de eleição na OAB não pode passar a latere uma questão como essa. Isso porque, em algumas Comarcas, de modo, até mesmo deselegante que advogados estão dando excessivo trabalho a juízes com peças longas.
Para meus alunos, inclusive, aponto que, se for para adjetivar, que seja apenas para elogio e nunca para atacar ninguém - infelizmente, por vezes, acabamos nos deparando com Magistrados que, sem cumprir deveres funcionais, adjetivam peças em tom de crítica e reprimenda a advogados que estão apenas, no exercício de suas prerrogativas, prestando uma função essencial à Justiça (artigo 133 CF).
Em primeiro lugar, quanto ao tema, não se nega que vivemos num momento em que a maior de todas as commodities se tornou o tempo. Poucas pessoas, diante do avanço tecnológico passaram a ter mais tempo disponível. Ao contrário, de um modo geral, pessoas passaram a ter que trabalhar mais para obterem resultados medianos diante dos preços da nova economia - sobretudo após a implementação do sistema de home officio pós pandemia de Covid-19.
Portanto, essa a primeira advertência que faço, não parece uma estratégia adequada abusar do número de páginas em qualquer peça processual, eis que isso fará com o que o tempo a ela dispensada tenda a ser o mesmo tempo dispensado a uma peça menor - ou seja, menor atenção a um grande volume de argumentos.
No entanto, coisa radicalmente diversa, implica na situação de determinar, ao arrepio de determinação legal expressa (e aí se invoca o artigo 33 da nova lei de Abuso de Autoridade) que advogados, que não se encontram em submissão hierárquica a Magistrados (artigo 6º EOAB), que se proceda, a fórceps, a uma diminuição de razões que por vezes possam parecer relevantes para o exercício profissional.
Há casos graves, em que juízes impõem até um tipo de fonte própria do word e seu tamanho, como se petições seguissem regras ABNT e advogados tivessem que se sujeitar a isso. Pior, por vezes, há adjetivação ("lamenta-se que o profissional esteja assim procedendo, dando trabalho ao juízo" e por aí vai).
Não se perca de vistas que o papel constitucional do Magistrado está no exercício da jurisdição - juris dicere - poder de dizer o direito - ou seja, atua de acordo com os pleitos deduzidos pela parte autora (pedidos e requerimentos) não lhe sendo lícito alterar ou determinar a alteração de petições iniciais por questões estéticas que lhe parecerem mais apropriadas - afinal há casos faticamente ou juridicamente complexos.
Pense-se, por exemplo, num caso de assédio moral que se desenvolva anos a fio tenha que conter as narrativas de fatos por longas páginas. O mesmo se dá numa ação indenizatória por vícios de construção em edifício ou uma separação com inúmeros atos de violência doméstica. A lista é infindável. Acredita-se que haja bom senso dos advogados e não mais querer transcrever doutrina civilista do Code Napoleon numa simples ação de despejo - a distância entre as hipóteses, repita-se é muito grande.
Não se esqueça de que o advogado exerce um munus publicum de colocar à disposição de seu cliente todos os meios técnicos adequados à garantia dos direitos de seu mandante - o advogado pode ser até processado porque não se vale de uma ou alguma tese, não parecendo eticamente correto que se interfira no seu exercício profissional, fora dos poderes atribuídos ao Poder Judiciário (o Ministério Advocatício é função essencial à Administração da Justiça nos termos do artigo 133 CF e, repita-se, sem base legal expressa pode implicar em crime de abuso de autoridade por que o praticar - artigo 33 mencionado acima).
Espera-se do advogado que tenha conduta ética e se apresente com urbanidade e cortesia para com todos. No entanto, o mesmo não se dá por simetria com a Magistratura, essa também se pauta por uma axiologia própria que está, além de previsões na LOMAN (LC 35 de 1979), também no Código de Ética da Magistratura Nacional, baixado pelo CNJ - juízes, além de cortesia e urbanidade, devem se portar com ponderação e devem ter paciência para com argumentos jurídicos, ou seja, pelo contido no advento das normas contidas nos artigos 11 e 26 do Código de Ética da Magistratura Nacional, devem estar atentos aos deveres de urbanidade, cortesia, paciência, prudência e ponderação. Observe-se:
Art. 11. O magistrado, obedecido o segredo de justiça, tem o dever de informar ou mandar informar aos interessados acerca dos processos sob sua responsabilidade, de forma útil, compreensível e clara.
Art. 22. O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas, os membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da Justiça.
Parágrafo único. Impõe-se ao magistrado a utilização de linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível.
Art. 24. O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após haver meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponíveis, à luz do Direito aplicável.
Art. 25. Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar.
Art. 26. O magistrado deve manter atitude aberta e paciente para receber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respeitosa, podendo confirmar ou retificar posições anteriormente assumidas nos processos em que atua.
Ainda quanto a cortesia, aponta-se contido na LC 35/79, a LOMAN:
Art. 35 São deveres do magistrado: IV - tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender os que o procurarem, a qualquer momento, quando se trate de providência que reclame e possibilite a solução de urgência.
Por fim, mas não menos importante, o Código Ibero-Americano de Ética Judicial, assim dispõe:
Art. 48 Os deveres de cortesia têm o seu fundamento na moral, e o seu cumprimento contribui para um melhor funcionamento da administração de justiça.
Art. 49 A cortesia é a forma de exteriorizar o respeito e consideração que os juízes devem a seus colegas, bem como aos advogados, testemunhas, partes e, de modo em geral, a todos os que se relacionam com a administração de justiça.
Cortesia, como é cediço, é demonstração de respeito e tolerância. É reconhecer a importância do próximo como pessoa humana, sujeito de direito e deveres. As decisões judiciais, sempre com a maior vênia possível devem se pautar por uma certa empatia em relação à questão posta sub judice - os pobres insetinhos humanos presos às folhas de um processo como vaticinado por Calamandrei - Eles os juízes vistos por um advogado. Esse trecho é por demais profundo para não ser aqui destacado:
"Acontece frequentemente com o bibliófilo, que se diverte folheando religiosamente as páginas amareladas de algum precioso incunábulo, encontrar entre uma página e outra, grudados e quase absorvidos pelo papel, os restos agora transparentes de uma mariposa incauta, que há alguns séculos, buscando o sol, pousou viva naquele livro aberto, e quando o leitor subitamente o fechou ali ficou esmagada e ressecada para sempre. Essa imagem me vem à mente quando folheio as peças de algum velho processo, civil ou penal, que dura dezenas de anos. Os juízes que mantém com indiferença aqueles autos à espera em sua mesa parecem não se lembrar de que entre aquelas páginas se encontram, esmagados e ressecados, os restos de tantos pobres insetinhos humanos, que ficaram presos no pesado livro da Justiça". Piero Calamandrei "Eles, os juízes, vistos por um advogado", pp. 270/271, Ed. Martins Fontes, 1.998.
No Estado do Paraná, há alguns anos, a Corregedoria de Justiça determinou que dois Juízes de 1º grau se abstivessem de limitar o trabalho dos advogados sob penas legais.
Acredito que, mais grave ainda, seja a postura de se indeferir petições iniciais, com argumentos rasos, negando o direito ao acesso do direito público subjetivo de emenda, expressamente previsto no artigo 321 CPC - norma legal em plena vigência que não pode ter sua existência ignorada.
Sem prejuízo de que, por vezes, fora dos casos de demandas isomórficas que autorizem o indeferimento de mérito de uma ação (casos repetitivos, por exemplo), juízes antecipem o resultado do mérito do processo, julgando-o sem admitir emenda - situação que autorizaria mesmo colocar em xeque a própria imparcialidade do juiz que adianta o que pensa do mérito em condições como tal.
Importante destacar, ainda, que o e. Min. CEZAR PELUSO assim se pronunciou ao reconhecer a suspeição de magistrado por ruptura da imparcialidade objetiva:
Pensa a jurisprudência dominante que, à luz do disposto no art. 252 do Código de Processo Penal, não esteja o juiz que tenha atuado em outro processo a respeito da matéria impedido de exercer ofício, porque seriam taxativas as hipóteses ali previstas, das quais a do inc. III diria respeito a atuação em fases diversas do mesmo processo: (...) Não me parece, data vênia, seja esta a leitura mais acertada, sobretudo perante os princípios e as regras constitucionais que a devem iluminar, segundo as incontroversas circunstâncias históricas do caso, em que o juiz, ao conduzir e julgar a ação penal, não conseguiu - nem poderia fazê-lo, data dada a natural limitação do mecanismo de autocontrole sobre motivações psíquicas subterrâneas - despir-se da irreprimível influência das impressões pessoais já gravadas já na fase sumária do procedimento de investigação de paternidade. É o que se vê claro ao conteúdo de suas decisões, em especial no recebimento da denúncia e na decretação da prisão preventiva do ora paciente, em ambas as quais evidenciou estar fortemente influenciado, na formação e justificação do convencimento, pelas percepções adquiridas na investigação preliminar (fls. 2124 do apenso). Da mesma forma, mostra-se a sentença condenatória repleta de remissões aos atos dessa investigação prévia, além de opiniões já anteriormente concebidas e expostas sobre os fatos. (...). Caracteriza-se, portanto, hipótese exemplar de ruptura da situação da imparcialidade objetiva, cuja falta incapacita, de todo, o magistrado para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida, em relação à qual a incontornável predisposição psicológica nascida de profundo contato anterior com as revelações e a força retórica da prova dos fatos o torna concretamente incompatível com a exigência de exercício isento da função jurisdicional. STF. Habeas Corpus: HC 94.641, Relator: Min. ELLEN GRACIE, Relator p/ Acórdão: Min. JOAQUIM BARBOSA, SEGUNDA TURMA. DJ: 11/11/2018.
Aduz o professor Gustavo Badaró, nesse mesmo sentido e em total convergência com o caso em concreto, que "Um julgamento que toda a sociedade acredite ter sido realizado por um juiz parcial será tão pernicioso e ilegítimo quanto um julgamento realizado perante um juiz intimamente ligado com uma das parte" BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: RT, 2015, p. 43.
Isso sem que se destaque que os advogados, por vezes em Comarcas menores, são expostos, sem base legal, a uma pena de censura pública indevida, quando juízes publicam despachos pouco corteses com expressões tais como "com pesar este juízo vê que se apresenta petição extensa" ou o advogado apresenta longa peça indevidamente, ou quando aponta admoestações pessoais à parte (esse é o terceiro processo de revisão de guarda) e por aí, infelizmente também vai.
Ora, em primeiro lugar, se o Juiz manifesta seu pesar para com a parte, deve, com todo o respeito, se dar por suspeito para julgar o feito. E, se não o fizer que se submeta a uma exceção em relação a tanto (não se está a pregar o enfrentamento férreo entre as carreiras, afinal vim da Magistratura antes de tornar à advocacia quando me aposentei mas pretendo demonstrar, sobretudo a juízes menos experientes, o risco que correm) ou corra os riscos de continuar julgando deste modo.
A lei de Abuso de Autoridade é rigorosa em relação a determinações que não tenham bases legais expressas - exorta-se a Magistratura ao cuidado que devem ter com isso - sem prejuízo de indenizações e outras consequências.
Mas, mais ainda, não menos importante, esse tipo de decisão implica em franco juízo de censura publicado em Diário Oficial, em Comarcas pequenas essas coisas correm (Olha, o Dr. Fulano admoestou o Dr. Sicrano, Xi !!! Dr. Sicrano se indispôs com o MM Dr. Fulano e por aí vai). E somente a OAB pode aplicar penas nos inscritos nos seus quadros.
Magistrados devem atuar com sobriedade em suas decisões, sem tecer comentários e adjetivos desairosos, sob as penas da lei (civis, penais, improbidade pela quebra da legalidade, administrativas perante o CNJ) ainda mais quando a lei não é expressa (alguns chegam a aduzir que o JEC deve ser regido pela simplicidade logo, nesse quadro somente se pode apresentar petições de cinco laudas ,sete laudas ou outro número cabalístico retirado sabe-se lá de onde).
Talvez o tempo que se perdeu com a admoestação que pode caracterizar um ataque à prerrogativa funcional, fosse suficiente para deferir uma medida liminar num ambiente que pune desvios de tempo produtivo. Há indenizações determinadas pelo Superior Tribunal de Justiça quando não se observa, sem razão alguma, o respeito ao tempo razoável.
Quiçá, se com o tempo perdido em determinar a emenda, se tivesse analisado o pedido e se dado o andamento processual regular, o tempo da jurisdição tivesse sido melhor aproveitado (a lei de Responsabilidade Fiscal proíbe que se perca o tempo do serviço público com frivolidades, por exemplo, bem postergar atos de ofício por motivos de sentimento pessoal, a preguiça é um sentimento pessoal, por exemplo, para efeitos de prevaricação e não que Magistrados sejam movidos por isso, muitas vezes alguns acham que exigir petições menores lhes poupará tempo, o que, como visto, parece ilusório eis que isso poderá implicar em cerceamentos e outros tipos de discussão, sobretudo a luz do devido processo legal e do contraditório efetivo).
Lanços esses tópicos, não para polemizar, e repito, não para acirrar ânimos ou pregar a cizânia entre carreiras, eis que a convivência deve ser harmonia. Mas pinto um quadro dantesco para que Magistrados reflitam sobre esse tipo de estratégia e as consequências deletérias que isso possa ter, sobretudo quando Comissões de Prerrogativas vierem a ser acionadas.