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A desoneração fiscal nas operações com livros na reforma tributária brasileira: entre a efetividade e a função simbólica do direito tributário

O artigo analisa o debate legislativo a respeito cobrança de tributos sobre a aquisição e a importação de livros na Reforma Tributária brasileira, notadamente no contexto do Projeto de lei 3.887/2020, do Poder Executivo, que institui a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Atualizado às 09:55

(Imagem: Arte Migalhas)

INTRODUÇÃO

O presente trabalho analisará o debate legislativo a respeito cobrança de tributos sobre a aquisição e a importação de livros na Reforma Tributária brasileira, notadamente no contexto do Projeto de lei 3.887/2020, do Poder Executivo, que institui a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). A instituição da CBS tem por objetivo substituir as contribuições federais da seguridade social incidentes sobre a receita bruta das empresas (PIS/Pasep e Cofins) por uma nova contribuição plurifásica e não cumulativa incidente sobre o faturamento das operações com bens e serviços1.

A questão central da discussão proposta envolve a revogação da alíquota zero das contribuições ao PIS/Pasep e Cofins que atualmente é garantida às operações de importação e venda no mercado interno de livros pelo art. 8º, § 12, XII, e art. 28, VI, da lei 10.865/2004. O Governo Federal propõe com a CBS a extinção de quase todos os regimes especiais e desonerações de PIS/Pasep e Cofins, porque um tributo sobre bens e serviços ideal deveria ter alíquota única e incidência ampla. Além de manifestações formais nesse sentido na Exposição de Motivos do PL 3.887/2020, em audiências públicas e manifestações à imprensa2, o Ministro da Economia afirma que livros são consumidos pela elite econômica e se a ideia é fomentar o hábito da leitura aos mais pobres, melhor seria tributar as operações de importação e venda e comprar livros, distribuindo-os à população.

Nesse sentido, o presente trabalho se propõe a analisar qual é a finalidade instrumental e a função simbólica da desoneração tributária de livros no Brasil, utilizando-se para isso de critérios de racionalidade legislativa e análise de impacto legislativo. Essa discussão envolve um aspecto central da discussão da Reforma Tributária no Brasil: a concessão de incentivos fiscais é um mecanismo apto a estimular o consumo de bens que gerem externalidades positivas, como é o caso de livros? Trata-se, nesse aspecto, de um debate a respeito da eficácia, efetividade e eficiência das medidas legislativas que conferem incentivos fiscais a determinadas espécies de consumo. De outro lado, deve se indagar se a eficácia instrumental desses incentivos é o único parâmetro racional de análise desse tipo de legislação ou também deve ser considerado o papel simbólico da política pública na promoção de determinados valores.

Para cumprir esses objetivos, o trabalho será dividido em duas partes. A primeira estabelecerá as premissas teóricas de avaliação da produção legislativa com instrumentos de teoria da legislação3, em especial a análise de critérios de justificação racional das decisões legislativas. Dentre esses critérios, dar-se-á destaque à racionalidade pragmática e à teleológica, as quais se referem, respectivamente, à eficácia e à efetividade da legislação em cumprir os objetivos por ela enunciados. Nesse ponto serão também abordados critérios de avaliação de impacto legislativo. Por fim, a par da eficácia instrumental da legislação, ou seja, aquela que se dá por sua eficácia e efetividade, será analisada também a função simbólica da legislação, o que se entenderá como e enunciação pelo legislador de determinados valores prevalecentes à sociedade.

A segunda parte analisará a questão da desoneração fiscal de livros a partir das premissas teóricas fixadas na primeira. Serão analisadas as finalidades da proteção tributária aos livros, partindo da imunidade a impostos prescrita pela Constituição Federal de 1988 para, em seguida, justificar a instituição da isenção de livros às contribuições ao PIS/Pasep e Cofins em 2004 mediante o exame das razões enunciadas durante o processo legislativo que a originou. Essa aferição será contraposta às críticas da literatura econômica sobre a ineficácia de incentivos fiscais para estímulo ao consumo de bens, inclusive examinando-se a situação particular do acesso a livros no Brasil desde a instituição da isenção. Por fim, ante as constatações anteriores, será analisado o papel simbólico da desoneração de livros.

A partir dessa análise da função simbólica, demonstrar-se-á a racionalidade da manutenção desse incentivo fiscal a despeito da preceituada ineficácia instrumental na indução de comportamentos.

RACIONALIDADE LEGISLATIVA

DO MITO DO JURISTA CIENTÍFICO ATÉ A AVALIAÇÃO NORMATIVA DA RACIONALIDADE LEGISLATIVA

Pode-se dizer que há uma persistente percepção doutrinária de que a produção legislativa é um campo estranho ao Direito. A compreensão mais tradicional da Ciência do Direito atual deriva de uma concepção empirista de ciência4, no sentido que objetiva descrever o sistema jurídico abstrato e a sua operacionalidade. Essa noção empirista é própria da revolução científica procedida pelo chamado Círculo de Viena. Este foi um grupo de cientistas da Universidade de Viena, liderado por Moritz Schlick e reunido entre 1929 e 1936, que fixou premissas do Empirismo Lógico na Filosofia da Ciência. Em síntese, partindo dos postulados filosóficos de Wittgenstein, adotou-se uma concepção de que a ciência apenas pode ser concebida a partir da observação e descrição do seu objeto5. A ciência, portanto, é conhecimento observável e não convencimento e consiste em juízos de fato, não de valor. Essa concepção é pedra de toque na metodologia científica das ciências naturais e exatas até os presentes dias.

Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito adota essa concepção de ciência jurídica similar à trazida pelo Círculo de Viena como a observação e descrição do sistema jurídico. Nesse sentido, já no Prefácio da primeira edição da obra6, assevera o autor que para elevar o Direito à categoria de ciência, o que importa não é a discussão de suas tendências de formação, mas sim aquelas voltadas ao seu conhecimento que o aproximem dos ideais científicos de objetividade e exatidão.

Por sua vez, Norberto Bobbio aponta que o positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais7. Ao encarar o Direito como objeto dado, essa concepção empirista prega que a análise do sistema jurídico tem que ser feita ao longe de juízos de valor que comportem a distinção do próprio Direito em bom e mau, justo e injusto.

No Direito Tributário brasileiro, essa repartição estanque entre conhecimento e produção do Direito foi introduzida na obra de Alfredo Augusto Becker, que se refere diretamente à obra de Bobbio, na medida em que concebe a Ciência do Direito como sempre posterior à produção de seu objeto8. A ciência jurídica, para Becker, consiste em investigar e sistematizar a estrutura lógica da norma e, de outro lado, a incidência dessa norma e seus efeitos. A partir de Becker, tornou-se firme a noção entre tributaristas como Paulo de Barros Carvalho de que a Ciência do Direito tem papel meramente descritivo do Direito posto, em contraposição ao papel prescritivo deste último9.

Mas nem sempre foi assim. Até meados do Século XVIII, autores de Direito e Filosofia do Direito debatiam como elemento da Ciência Jurídica a elaboração de leis. Nesse período, não havia uma separação estanque entre dogmática jurídica, teoria do Direito e teoria da legislação, de maneira que juristas discutiam meios de reformar o Direito de maneira racional. É o caso, por exemplo, de Adam Smith, que em sua obra "A Riqueza das Nações" fala de uma "ciência do legislador" que estabelece preceitos normativos a ser observados na tomada de decisões legislativas de maneira racional e não de acordo com "a flutuação momentânea das circunstâncias"10. Também Jeremy Bentham dedicou boa parte de sua vida à sistematização do Direito com base no princípio da utilidade, propondo um "código completo de leis" (complete code of laws)11. O jurista italiano Gaetano Filangieri constituiu uma obra que propunha a codificação do Direito como forma de extinguir o direito jurisprudencial, garantindo a segurança jurídica e a liberdade dos indivíduos12.

É a partir do Século XIX que se estabelece o dogma de completude e coerência do Direito, criando-se o "mito do legislador racional"13. É neste momento que principia o discurso de "jurista técnico" que encontrará eco na já citada concepção empirista de ciência do Direito, já no Século XX e que perdura até a atualidade. Por essa premissa, o legislador é onisciente e onipotente, de maneira que também os seus produtos podem ser considerados perfeitos14. Descabe, portanto, qualquer motivação ou crítica aos meios e fins adotados pelo legislador.

Mas, de uma percepção descritiva, não se sustenta a tese do legislador racional, seja porque de fato os ordenamentos estão caracterizados por antinomias e lacunas, ou porque os legisladores realmente não são nem oniscientes nem onipotentes15. De outro lado, como uma proposição prescritiva-metodológica de que se deve argumentar sempre partindo de uma dada premissa de racionalidade, é discutível em que medida se trata de uma proposta desejável. Quando menos se questiona a racionalidade do legislador, menos se permite melhorar o produto da sua atividade. A concepção de que a elaboração de leis é uma instituição jurídica reabilita a razão prática nessa atividade, de maneira que permite organizar o processo legislativo a chegar a certos objetivos16. Essa abordagem permite encarar a legislação como uma forma qualificada de política, apta a governar a conduta dos cidadãos como uma fonte digna do Direito17. A discussão a respeito da racionalidade legislativa, assim, tem caráter evidentemente normativo, no sentido de que estabelece regras regais de racionalidade prática que regem a atividade dos legisladores.

Este trabalho, portanto, parte de uma premissa de afastamento de uma racionalidade pressuposta do legislador. Afastando-se desse dogma, contudo, é preciso estabelecer critérios para se avaliar o quão racional é determinada decisão legislativa.

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  • Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
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1 Conforme Exposição de Motivos do PL 3.887/2020, assinada pelo Ministro da Economia Paulo Guedes.

2 "Novo tributo ameaça encarecer livros e quebrar editoras que já agonizam". Folha de São Paulo de 7 de agosto de 2020, disponível aqui. Acesso em 1º de dezembro de 2020.

3 Aqui se utiliza a expressão "teoria da legislação" em sentido maximalista, como a análise do tipo de racionalidade que deve presidir a atividade legislativa, inclusive a relativa aos seus fins éticos e políticos, como referido por MARCILLA, Gema. Racionalidad Legislativa: Crisis de la Ley y Nueva Ciencia de la Legislación. Madrid: Centro de Estudios Politicos e Constitucionales, 2005, p. 290.

4 ÁVILA, Humberto. Função da ciência do Direito Tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo, Revista Direito Tributário Atual, n. 29, São Paulo, 2013, p. 183.

5 STADLER, Friedrich. "From the Vienna Circle to the Institute Vienna Circle: On the Viennese Heritage in Contemporary Philosophy of Science". In: F. Stadler (org.). European philosophy of science: philosophy of science in Europe and the Viennese heritage. Viena/Nova Iorque: Springer, 2014.

6 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. Ed. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1984.

7 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p. 135-136.

8 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 53-54.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 35-37.

10 SMITH, Adam. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, Livro 4. Chicago: University of Chicago Press, 1977, p. 610.

11 BENTHAM, Jeremy. The Works of Jeremy Bentham, vol. 3, editado por John Bowring, Edimburgo, William Tait, 1838-1843.

12 FILANGIERI, Gaetano. La Scienza della Legislazione. Veneza: Andrea Santini e Figlio Editore, 1822.

13 FERRARO, Francesco. Razionalità Legislativa e Motivazione delle Leggi: Un'Introduzione Teorica. Milão: Giuffrè Francis Lefebvure Editore, 2019, p. 111.

14 GARCÍA AMADO, J.A. Razón Práctica y Teoría de La Legislación, Derechos y Libertades - Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, Madri, jul.-dez. 2000, p. 304.

15 FERRARO, ob. cit., p. 112.

16 MARCILLA, ob. cit., p. 276.

17 WALDRON, Jeremy. The Dignity of Legislation. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 2.

Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva

Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva

Doutorando em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo, Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, professor do Instituto Brasiliense de Desenvolvimento, Ensino e Pesquisa (IDP), advogado e consultor legislativo em Brasília.

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