A lei 14.195/21 e a facilitação para a abertura de empresas e do comércio exterior
Com a conversão da MP em na lei 14.195, de 26 de agosto de 2021, infelizmente, muitas de nossas dúvidas, levantadas ao longo do conjunto de artigos publicados, não foram respondidas.
segunda-feira, 13 de setembro de 2021
Atualizado às 08:11
I. Introdução
Depois dos primeiros artigos da série, preparados pelos integrantes do GIDE (Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial) sobre a Medida Provisória 1.040, de 29 de março de 2021 ("MP"), já publicados recentemente no Migalhas, vamos retomar aqui o fio da meada após a promulgação da lei 14.195/21. Como se sabe, a MP se propôs a alcançar os seguintes objetivos: "facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente na no Código Civil".
Com metas tão ambiciosas, e relevantes para a economia nacional, é interessante notar que aquela medida, desde sua publicação em 30 de março de 2021, recebeu mais de três centenas de propostas de emenda no Congresso Nacional, cabendo agora trabalhar com o texto final, resultante da conversão da referida MP na lei acima citada. Com o objetivo de contribuir para o pensamento crítico sobre os temas em vista, iremos analisar neste artigo dois propósitos específicos da lei: (i) a facilitação para a abertura de empresas no país; e (ii) a facilitação do comércio exterior.
O atingimento dos dois objetivos acima é crucial para a economia brasileira, para o fim de se minimizar o tão (mal) falado Custo Brasil, tendo-se em conta, ainda, que o comércio exterior é o setor que mais benefícios tem trazido, especialmente nos campos da mineração e do agronegócio.
Observe-se ainda que, se abrir uma empresa em terras brasilLeiras sempre apresentou extremas dificuldades, fechá-las ainda se revela muito mais difícil, o que parece não ter sido resolvido com essa lei. Vamos aos principais pontos a serem tratados nesse artigo.
II. Facilitação para Abertura de Empresas
O Capítulo II da lei 14.195/21 foi reservado às medidas pensadas para a facilitação do processo de abertura de empresas no Brasil. Considerando que o "propósito maior" foi o de promover uma melhora na posição atual do Brasil no ranking Doing Business do Banco Mundial, faz sentido que a Lei trate do tema logo em seu Capítulo II (o qual, na prática, é o primeiro "capítulo efetivo" da norma, já que o Capítulo I apenas apresenta seu objetivo geral), as alterações imaginadas para facilitar a criação de empresas.
Em seu art. 2º, a lei aproveita a já existente Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios ("REDESIM"), estrutura criada em 2007 para simplificar e integrar o registro de empresas no Brasil, e promove alterações às suas regras com o objetivo de expandir as facilidades introduzidas por este sistema.
Neste sentido, a lei esclarece que os órgãos e entidades envolvidos no processo de registro de empresas deverão disponibilizar informações que permitam pesquisas prévias sobre as etapas de registro, inscrição, alteração e baixa de empresas, bem como para licenciamento e autorização de funcionamento - tudo de forma gratuita. Antes, a gratuidade era garantida apenas para a pesquisa da denominação social.
De acordo com a redação atual do projeto aprovado na Câmara, o CGSIM (comitê administrativo da REDESIM) será o órgão responsável por dispor sobre a classificação do risco das atividades empresárias, a qual terá abrangência nacional, devendo ser observada na ausência de legislação estadual, distrital ou municipal específica1, diminuindo assim os custos de transação ao tornar a classificação mais homogênea em todo o país. A esse respeito nos parece tratar-se de uma tarefa muito problemática, em função de vários fatores. Primeiro, nossos país pode ser descrito como formado por vários "brasis", dada a significativa variação do perfil sócio/econômico das diversas regiões que o formam. O que apresenta menor risco em um lugar, pode ter um perfil bem diferente em outro. Segundo o risco não é estático, mas dinâmico, dependendo de momentos diferentes no tempo, tanto pela variação dos fundamentos da economia interna, quando da externa. E será preciso verificar por quanto tempo em que medida serão observados os efeitos da presente pandemia, com relação aos diferenciados mercados, que sofreram abalos classificados desde a situação mais grave até a mais favorável. No primeiro caso, por exemplo, os setores restaurantes e bares e de vestuário; no segundo o das vendas on line.
Esta mudança se mostra ainda mais relevante ao observarmos uma outra novidade introduzida pela lei em apreço: nos casos em que o grau de risco da atividade seja considerado médio, o alvará de funcionamento e as licenças serão emitidos automaticamente, sem análise humana, por meio do sistema responsável pela integração dos órgãos e das entidades de registro2. O alvará de funcionamento será emitido com a assinatura de termo de responsabilidade pelo empresário, o que poderá ser realizado de forma eletrônica.
Como comparação, antes da mudança atual, o sistema da REDESIM já havia introduzido facilitações para o funcionamento de empresas com atividades de baixo e médio risco. Contudo, de acordo com a legislação anterior, a empresa receberia um Alvará de Funcionamento Provisório, o qual deveria ser posteriormente convertido em um Alvará de Funcionamento permanente, condicionado à apresentação das licenças ou autorizações de funcionamento emitidas pelos órgãos competentes3. Nos termos da lei, esse processo é dispensado, garantindo às empresas com risco médio o Alvará de Funcionamento permanente de forma automatizada. Além disso, licenças e alvarás serão considerados válidos até seu cancelamento ou cassação por meio de ato posterior (ou seja, não apresentarão prazo de validade pré-determinado).
Ainda sobre a REDESIM, vale o destaque para a centralização federal de dados das empresas no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica ("CNPJ")4. Conforme previsto na lei, não poderão ser exigidos no processo de registro realizado via REDESIM quaisquer dados e informações que já constem da base de dados do governo federal. Ademais, a inscrição no CNPJ, realizada no âmbito federal, passa a dispensar a coleta de dados adicionais pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo que o sistema federal ficará responsável por compartilhar com referidos entes as informações cadastrais fiscais.
Seguindo a análise do Capítulo II da lei, seu art. 3º se volta para a lei 8.934/94, buscando promover alterações na lei de Registros Mercantis. Como destaques, passa a ser permitido o registro de empresas com nome empresariais semelhantes a outro já existente5. Anteriormente, era vedado o arquivamento de "atos de empresas mercantis com nome idêntico ou semelhante a outro já existente" - com a lei, apenas nomes idênticos permanecem com a vedação. Pode-se imaginar que a mudança foi trazida para afastar análises subjetivas que justificavam a recusa de registros, em caso de nomes semelhantes (lembrando que a denominação social não se confunde com a marca ou nome fantasia da empresa, pelos quais as sociedades são normalmente conhecidas pelo público).
Por fim, ressaltamos aqui a inclusão do novo art. 35-A na lei 8.934/94. Esta novidade (um tanto curiosa) trazida pela Lei reflete a importância dada ao CNPJ como o principal cadastro identificador da empresa, bem como o espírito "extremamente objetivo" do registro do nome empresarial. Para os empresários sem muita criatividade (ou paciência) na escolha do nome de sua empresa, este dispositivo pode ser a mudança precisavam: o empresário poderá optar por utilizar o número de CNPJ como nome empresarial, seguido da partícula identificadora do tipo societário. Em outras palavras, passa a ser permitido o registro da "12.345.678-0001-00 S.A".
Ainda que a lei tenha promovido alterações interessantes no registro de empresas brasileiras, desburocratizando (ao menos em parte) este processo, não é possível deixar de criticar a forma que estas mudanças foram introduzidas na legislação brasileira. De acordo com nossa Constituição Federal, medidas provisórias necessariamente devem preencher o critério de urgência - o que dificilmente poderia ser defendido no caso desta lei. Além disso, como já mencionado por Haroldo Duclerc Verçosa no primeiro artigo desta série (ver "MP 1.040/21: Uma metralhadora giratória nas mãos de um exército desatinado"), a medida reuniu, em um mesmo dispositivo, alterações em relação a diversas normas do nosso diploma legal, sem qualquer relação entre si.
Especificamente em relação às alterações promovidas para facilitação da abertura de empresas, não há qualquer sentido lógico para sua implementação através de uma medida provisória. Isto porque, por sua própria natureza, a medida provisória tem caráter transitório - ainda que seja convertida em lei, é natural (e comum) que passe por diversas modificações até sua redação final. Como adiantado, no caso da MP 1.040/21, foram mais de trezentas propostas de emenda.
Ao propor alterações no sistema de registro de empresas, a medida provisória exigiu que diversos órgãos federais, estaduais e municipais se reorganizassem por meio de um novo sistema integrado, no prazo de 60 (sessenta) dias.
III. Facilitação do Comércio Exterior
Os artigos da lei referentes à facilitação do comércio exterior se dividem em 3 (três) seções, todas incluídas no Capítulo IV.
O objeto da primeira seção são as licenças, autorizações ou exigências administrativas para importações ou exportações. Iniciando pelo seu art. 8º, a lei se volta para a alternativa digital dos serviços, ao determinar que os importadores, exportadores e demais intervenientes no comércio exterior poderão utilizar-se de solução de guichê único eletrônico para encaminhamento de documentos - o chamado Portal Único de Comércio Exterior - para fornecer dados ou informações aos órgãos da administração. O Ministério da Economia possui competência pela gestão da solução de guichê único eletrônico6. Neste sentido, o burocrático e muito criticado Siscoserv (Sistema Integrado de Comércio Exterior de Serviços, Intangíveis e Outras Operações que Produzam Variações no Patrimônio) é extinto, para a alegria dos importadores e exportadores. Esta, de fato, parece ser uma mudança positiva para o comércio exterior brasileiro.
A lei veda o preenchimento de formulários em papel ou em formato eletrônico ou a apresentação de documentos em formato distinto da solução de guichê único eletrônico, exceto se (a) as circunstâncias técnicas ou operacionais do caso em questão impossibilitarem o uso da solução de guichê único eletrônico, ou (b) os procedimentos de habilitação, de registro ou de certificação apropriados puderem ser aplicados de modo análogo ao guichê eletrônico7. Aqui, fica clara a intenção do legislador ao reforçar o papel de destaque do Portal Único de Comércio Exterior.
O resultado da análise dos documentos e informações fornecidos à administração pública será divulgado pelo próprio guichê eletrônico, podendo a entidade responsável determinar exigências a serem cumpridas nos termos da Lei. Naturalmente, o mesmo guichê único eletrônico realizará o recolhimento das taxas aplicáveis.
O art. 10 da lei, por sua vez, veda a imposição de exigência de licença ou de autorização sobre importação ou exportação em razão de características das mercadorias, quando não estiverem previstas em ato normativo, devendo eventuais exigências serem revistas pelo Poder Executivo.
A lei 12.546, de 14 de dezembro 2011 (que instituiu o Reintegra - Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras) também foi alterada pela lei, passando a ter seus art. 25 a 27 com nova redação, de forma a determinar que os órgãos da administração pública federal devem compartilhar os dados e as informações relativos às transações entre residentes ou domiciliados no Brasil e no exterior que compreendam operações que produzam variações no patrimônio das pessoas físicas, das pessoas jurídicas ou dos entes despersonalizados com a Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia.
Já a seção III do referido Capítulo IV da lei regulamentou a chamada "Origem não preferencial", alterando os art. 29, 31, 34, 36 e 40 da mesma lei 12.546, de 2011. Estas regras estão diretamente relacionadas a compras do governo, assim como à aplicação de medidas de política comercial (embargos, antidumping, salvaguardas, cotas tarifárias etc.).
As mercadorias resultantes de mão de obra ou de manufaturas de um país são consideradas como originárias do local em que ocorrer a transformação substancial - antigamente, entendida como processo de industrialização. Todavia, a lei altera a definição do processo de transformação substancial para o produto em cuja elaboração tenham sido utilizados materiais não originários do país (i) quando resultante de processo de transformação que lhe confira uma nova individualidade, caracterizada pelo fato de estar classificado em posição tarifária (primeiros quatro dígitos do Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias) diferente da posição dos mencionados materiais, ou (ii) quando o valor aduaneiro desses materiais não exceder 50% (cinquenta por cento) do valor Free on Board - FOB do produto. Percebe-se uma inconsistência legislativa neste ponto: a MP não determina ordem de prioridade para esses requisitos. E se um produto satisfaz ambas as condições? Poderá ser considerado como tendo dois países de origem?
A comprovação de origem será verificada mediante a apresentação pelo exportador/produtor ou pelo importador de informações relativas, dentre outras, ao índice de materiais (não mais insumos) não originários utilizados na obtenção do produto. O produtor estrangeiro, importador ou exportador podem passar por diligência ou fiscalização de seus estabelecimentos para verificação da origem dos produtos - esta novidade, teoricamente, favorecerá a eficiência do processo de verificação. Caso o produtor estrangeiro, o exportador ou o importador negue acesso, não forneça as informações solicitadas ou crie obstáculos ao procedimento de verificação de origem não preferencial, a mercadoria será presumida como originária do país gravado com a medida de defesa comercial que motivou a abertura de investigação de origem não preferencial. Contudo, fica a questão: qual a necessidade da regulamentação criada, se a não comprovação da origem das mercadorias implicará na presunção de que elas são originárias de país gravado com a medida de política comercial que motivou a abertura do procedimento de fiscalização? Pecou o legislador neste ponto, em nossa humilde opinião.
Iniciado o procedimento de verificação de origem não preferencial pela Secretaria de Comércio Exterior da Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, o produtor estrangeiro será notificado para a apresentação das informações aplicáveis. A origem que for determinada pela Secretaria como conclusiva ao procedimento de verificação de origem não preferencial será aplicada a todas as importações de mercadorias idênticas do mesmo exportador ou produtor, podendo referida origem ser revista caso algum interessado apresente informações que confirmem o atendimento às regras de origem não preferenciais.
No caso de importação de produto submetido à restrição quantitativa, quando não for comprovada a origem declarada, o importador é obrigado a devolver os produtos ao exterior. Neste sentido, o importador arcará com os ônus decorrentes da devolução ao exterior dos produtos, estando esta devolução limitada ao que exceder a cota na hipótese de restrição quantitativa.
Por fim, a lei ainda revogou o art. 2º do Decreto-lei 666/69, cujo objeto era a obrigatoriedade de transporte de mercadorias importadas e importações de mercadorias com favores governamentais em navio de bandeira brasileira por órgãos da administração pública. Neste sentido, o Certificado de Liberação de Carga Prescrita, emitido pela ANTAQ, não é mais necessário. Essa obrigatoriedade era uma excrecência não racional e antieconômica e deve ser mantida. Pelo menos isso.
IV. Conclusão
Em vista do acima exposto, percebe-se um grande esforço legislativo para alterar o sistema e as responsabilidades de órgãos públicos, buscando simplificar procedimentos conhecidos por sua burocracia e lentidão em nosso país. Contudo, ao promover tais mudanças através de uma medida provisória, tais órgãos e entidades administrativas se viram obrigados a se adaptar, sem a certeza de que tais mudanças serão permanentes.
Com a conversão da MP em na lei 14.195, de 26 de agosto de 2021, infelizmente, muitas de nossas dúvidas, levantadas ao longo do conjunto de artigos publicados, não foram respondidas. O processo legislativo, além de moroso, foi um tanto quanto confuso: a Câmara aprovou uma versão, a qual foi emendada pelo Senado e, em seguida, teve suas emendas rejeitadas pela Câmara quando do envio para veto presidencial.
Ironicamente, uma norma que buscou implementar procedimentos mais eficientes foi instituída sem respeitar o processo legislativo: primeiro, entrou em vigor para que, apenas em um segundo momento, fosse então debatida pelo Congresso e modificada, forçando novas alterações e adaptações pelas entidades da administração pública. Resta a nós apenas torcer para que, ao final, as mudanças de fato venham para melhor.
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1 Cf. redação do novo art. 5-A da Lei 11.598/07, incluída pela MP.
2 Cf. nova redação do art. 6 da Lei 11.598/07, proposta pela MP.
3 Cf. redação original do art. 6 da Lei 11.598/07.
4 Cf. redação do novo art. 11-A da Lei 11.598/07.
5 Cf. nova redação do art. 35, inciso V, da Lei 8.934/94, proposta pela MP.
6 Art. 9º da MP 1040.
7 Parágrafo 4º do art. 8º da MP 1040.
Muriel Waksman
LL.M. pela Univesity of Chicago. Mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Graduada em Direito pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas - FGV Direito SP. Sócia do Tognetti Advocacia. Coordenadora técnica e administrativa adjunta do GIDE.
Érico Lopes Tonussi
Mestre em Direito Societário pela USP, LL.M. pela Univesity of Chicago e autor de artigos publicados em diferentes revistas jurídicas. Possui mais de 10 anos de experiência em diferentes áreas do direito empresarial, especialmente fusões e aquisições, direito societário e mercado de capitais. Sócio do Baptista Luz Advogados. Membro permanente do GIDE.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.