Limites subjetivos da coisa julgada num recente precedente do STJ
As inúmeras teorias sobre o tema não seguem um perfil metodológico homogêneo, visto que se assentam em perspectivas e pressupostos diferenciados.
quarta-feira, 1 de setembro de 2021
Atualizado às 09:43
O estudo dos limites subjetivos da coisa julgada no âmbito do processo civil assume real importância, tanto mais quanto se tenha na devida conta que uma de suas mais significativas características é a de ser um processo de partes. Sintetizando, a esse respeito, o entendimento dominante na moderna doutrina processual, precisa José Frederico Marques (Manual de direito processual civil, vol. 1, São Paulo, Saraiva, pág. 172) que, em virtude de o processo constituir, em seu desenho estrutural, um actus trium personarum, o juiz, o autor e o réu apresentam-se como os principais protagonistas da relação processual, por encarnarem, pelo ângulo subjetivo, individualizando-as de forma devida, a jurisdição, a ação e a defesa.
Todo aquele que não atua no processo na condição de sujeito parcial (parte) é considerado terceiro. Não integrando o contraditório, não é titular dos poderes, faculdades, ônus, deveres e sujeição próprios das partes. Ora, por não terem sido protagonistas dos atos que precedem e preparam o julgamento final, os terceiros não podem sofrer os efeitos da sentença de mérito e muito menos se vincularem à coisa julgada material.
A tradicional regra da limitação subjetiva da coisa julgada vem consagrada, com absoluta precisão, na legislação brasileira, no art. 506 do Código de Processo Civil: "A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros".
Realmente, nos quadrantes de uma ciência processual dominada por regramentos éticos e políticos, de tendência marcadamente democrática, repugna a idéia de que um sujeito de direitos, sem que se lhe seja assegurado "o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes", para que possa, na condição de parte, apresentar as suas próprias razões, venha a ser privado de seus bens por força de decisão judicial transitada em julgado. Quando nada, haveria inarredável afronta à letra dos incs. LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal.
As inúmeras teorias sobre o tema não seguem um perfil metodológico homogêneo, visto que se assentam em perspectivas e pressupostos diferenciados, cada qual procurando resultados coerentes com o respectivo ordenamento jurídico, tanto no plano do direito material, quanto na órbita do processo. Abstração feita de premissas que particularizam, na sua essencialidade, as várias teses que foram formuladas ao longo do tempo, é possível dizer que, em linhas gerais, a despeito do significativo período temporal que as distancia, acabam elas se completando, diante do exame, por diferentes prismas, de idênticas questões jurídicas.
Assi sendo, de um modo geral, é possível alinhar, do cotejo feito entre as principais teorias, as seguintes premissas:
a) é da tradição do direito romano-canônico a regra de que a res iudicata produz eficácia apenas inter partes, não podendo prejudicar terceiros;
b) a coisa julgada vale para todos como decisão imutável formada entre as partes;
c) ainda que se atribua valor absoluto à coisa julgada, terceiros podem excepcionalmente ser alcançados pela eficácia da sentença e do julgado formado inter alios;
d) para explicar esse fenômeno, num primeiro momento, tornou-se relevante a distinção entre eficácia direta, que afeta exclusivamente as partes, e eficácia reflexa da coisa julgada que, em caráter excepcional, atinge terceiros;
e) a eficácia reflexa não é programada pela lei, e tampouco deliberada pelo juiz: emerge de um fenômeno puramente lógico, determinado, no campo do direito material;
f) a eficácia reflexa atinge aqueles terceiros que têm uma vinculação jurídica com o objeto do primeiro processo, ou seja, com a relação controvertida na causa, sob a forma de um nexo de prejudicialidade;
g) para a compreensão do fenômeno da eficácia ultra partes da sentença e da extensão da coisa julgada, torna-se importante distinguir entre os terceiros juridicamente indiferentes à decisão proferida no processo do qual não participaram e os terceiros juridicamente interessados, que têm algum interesse no resultado da demanda;
h) dentre estes, há aqueles terceiros que são titulares de relação jurídica compatível com aquela decidida, mas que podem sofrer um prejuízo de fato; e há os terceiros titulares de uma relação jurídica incompatível com aquela que é objeto da sentença;
i) a eficácia da sentença não se confunde com a autoridade da coisa julgada;
j) os efeitos que emanam da sentença não estão condicionados ao respectivo trânsito em julgado;
l) a distinção entre eficácia direta e eficácia reflexa (da sentença ou da coisa julgada) encontra-se superada, porque aquela que pode afetar um terceiro em nada se diferencia da que é produzida entre as partes;
m) a extensão ultra partes dos efeitos da sentença verifica-se quando houver um nexo de prejudicialidade entre a causa decidida e a relação jurídica que envolve o terceiro;
n) o terceiro prejudicado, nestas condições, para afastar a eficácia do decisum, legitimando-se a recorrer às vias processuais adequadas;
o) tendo-se em vista a posição jurídica de subordinação do terceiro ou a natureza do direito material em jogo, é a própria imutabilidade do comando da sentença que acaba atingindo aquele que não participou do processo; e, ainda,
p) havendo prejuízo jurídico ao terceiro, a coisa julgada deve ser considerada res inter alios; trazendo-lhe benefício, o terceiro, de um lado, não está obrigado a valer-se da posição de vantagem que lhe foi propiciada pela sentença; e, de outro, não pode opor-se ao julgado, porque é carecedor de interesse processual para insurgir-se contra a coisa julgada.
Observo que a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.766.261/RS, com voto condutor do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, considerando as diretrizes ditadas pela garantia do devido processo legal, prestigiou os limites subjetivos da coisa julgada, bem interpretando a regra do art. 506 do Código de Processo Civil.
Com efeito, a hipótese referenciada no aludido recurso especial revela que o acórdão recorrido reformou a decisão de primeiro grau para afastar a responsabilidade civil da parte recorrida, amparado no reconhecimento de imaginado efeito reflexo da coisa julgada, em virtude da improcedência do pedido deduzido em anterior ação indenizatória relativa ao mesmo episódio danoso, ajuizada por parte diferente.
A 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao analisar o recurso de apelação das demandadas, reformando a sentença de primeiro grau, afastou o dever de indenizar sob o seguinte fundamento: "No que diz com a responsabilidade pela ocorrência do acidente, esta já foi objeto de exame em ação indenizatória movida por outro motorista envolvido no mesmo evento danoso, na qual restou afastado o dever de indenizar... Assim, com o trânsito em julgado, a decisão proferida naquela ação indenizatória fez coisa julgada material, com eficácia ultra partes em relação aos colegitimados para pleitear reparação indenizatória em relação à demandada. Sabe-se que a coisa julgada, de regra, resta configurada quando há identidade entre as partes, a causa de pedir e o pedido, porém em razão da segurança jurídica, os efeitos da decisão de uma demanda já julgada podem ser ampliados, inclusive em relação a terceiro que não tenha sido parte na lide diversa. Trata-se da teoria dos efeitos reflexos da coisa julgada...".
Não obstante, ao analisar a questão, o Ministro relator do mencionado recurso especial asseverou corretamente que, na situação vertente, não havia como estender os efeitos da coisa julgada formada na demanda pretérita, em prejuízo da parte que ajuizou posteriormente a demanda contra a mesma empresa.
E isso certamente porque a teoria dos efeitos reflexos da coisa julgada, preconizada por Enrico Allorio, visava exatamente a afastar, em tais circunstâncias, a eficácia prejudicial da sentença em relação a terceiros.
Daí o acerto do indigitado acórdão do Superior Tribunal de Justiça, partindo da premissa de que "a coisa julgada inter partes é a regra em nosso sistema processual, posto que inspirado nas garantias constitucionais da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa", considerando ainda que, "segundo o sistema processual brasileiro, ninguém poderá ser atingido pelos efeitos de uma decisão jurisdicional transitada em julgado, sem que se lhe tenha sido garantido o acesso à justiça, com um processo devido, onde se oportunize a participação em contraditório".
Norteada por esta corretíssima linha de argumentação, a 3ª Turma proveu, à unanimidade votos, o recurso especial, para afastar o reconhecimento de coisa julgada no caso concreto, determinando consequentemente o retorno do processo ao tribunal de justiça gaúcho para que complementasse o julgamento da apelação.