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Tipologia criminal: Análise da imputabilidade penal dos desastres de Mariana/MG

O acidente ocorrido com a barragem de Fundão em Mariana/MG reacendeu um longo debate acerca da responsabilidade penal por crimes ambientais praticados por empresas.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Atualizado às 08:51

(Imagem: Arte Migalhas)

Desde a promulgação da Constituição Federal existe previsão legal para responsabilização penal destas por crimes ambientais. No entanto, apesar da previsão expressa no texto constitucional, existe certa divergência na forma de ocorrência dessa responsabilização.

Parcela considerável da doutrina e jurisprudência entende que há necessidade da dupla imputação penal, ou seja, para que a pessoa jurídica responda criminalmente por um fato, a pessoa física por ela responsável também deverá responder.

Em 5 de novembro de 2015 ocorreu o maior desastre ambiental já registrado no Brasil até então. Houve, naquele fatídico dia, o rompimento da barragem de rejeitos de mineração da cidade de Mariana/MG. Naquela tarde a "barragem de Fundão" começou a apresentar vazamento de rejeitos o qual a equipe técnica responsável pela área não conseguiu conter. O resultado destes eventos foram uma série de mortes, além dos imensuráveis prejuízos ao meio ambiente da região.

Sem menosprezar, ou mesmo diminuir as mortes ocorridas, há de se destacar o impacto ambiental causado pelo despejo de minérios de ferro em toda a região de Mariana - MG e municípios circunvizinhos. Segundo Laudo Técnico Preliminar1 elaborado pelo Ibama à época, o acidente causou, dentre outras coisas

  •  Destruição de 1.469 hectares ao longo de 77km de curso d'água, incluindo áreas de preservação permanente;
  •  Mortandade de biodiversidade aquática e fauna terrestre;
  •  Assoreamento de cursos d'água;
  •  Perda e fragmentação de habitats naturais;
  •  Restrição ou enfraquecimento dos serviços ambientais dos ecossistemas;
  •  Alteração dos padrões de qualidade da água doce, salobra e salgada da região;

Os impactos ambientais oriundos do acidente não dizem respeito apenas aos danos diretos. Considerando que o ecossistema é altamente interligado, e dada a extensão do acidente, é certo que diversas áreas foram afetadas, especialmente no contexto das bacias hidrográficas de toda a região. Podemos então considerar que os danos sofridos pelo meio ambiente, e pela população como um todo - via efeito rebote, foram imensuráveis.

Tendo em vista a magnitude do ocorrido e a extensão dos danos causados, um importante questionamento a ser feito é acerca da responsabilidade criminal pelos eventos ocorridos. Não há dúvidas quanto à responsabilidade da empresa na reparação cível dos danos causados pela sua atividade empresarial. No entanto, há enorme discussão teórica e doutrinária acerca da responsabilidade criminal dos agentes envolvidos no fatídico desastre. Essa análise, sem sombra de dúvidas, tem uma possível solução passando inicialmente pela análise da legislação pertinente ao tema, afinal, como é sabido, impera no âmbito do direito penal a máxima de que não há crime sem lei anterior que o defina.

Iniciando a análise do tema, vale destacar que a defesa do Meio Ambiente, alçado à categoria de patrimônio público, é resguardada pela nossa Constituição Federal2 em seu artigo 225, que assim dispõe

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

O Meio Ambiente, como patrimônio da coletividade, deve ser resguardado como forma de possibilitar o adequado convívio entre o homem e o meio em que ele está inserido. É imperioso observar que, apesar de toda a evolução tecnológica da humanidade até o momento, o homem ainda é dependente dos recursos naturais do local em que se encontra. É salutar ponderar que, quanto maior for a qualidade deste ambiente, maior será a qualidade de vida que as pessoas que ali vivem desfrutarão. A dedução lógica destes fatos é, portanto, que cuidar do meio ambiente é cuidar indiscutivelmente da própria sociedade.

Podemos anotar que, para efeitos de legais, o direito à preservação do meio ambiente é considerado direito difuso, não possuindo, portanto, titularidade determinada (Fiorillo3, 2017, p.40). É por essa razão que a Carta Magna não dota o Meio Ambiente de características de bem público ou privado. Em verdade, podemos dizer que ele se apresentada como um direito transindividual.

A proteção ao meio ambiente, a ser promovida pelas autoridades públicas, pode - e deve - serem feitas em 3 momentos distintos. O primeiro deles é anterior à ação humana, ou seja, preventivamente. Esta etapa, no Brasil, é atualmente realizada através do Licenciamento Ambiental. Em um segundo momento, a proteção ambiental é realizada concomitantemente à ação depredatória humana, através das fiscalizações pelos diversos órgãos públicos. Por fim, uma vez insuficientes as etapas anteriores, temos a ação coercitiva estatal.

Observa-se, no entanto, apesar do disposto em lei quanto aos crimes ambientais, vide a lei de Crimes Ambientais (lei 9.065/98), por exemplo, existem inúmeras incertezas na tutela jurisdicional quando se fala na ocorrência de crimes ambientais. Há verdadeira discussão de ordem teórica e doutrinária quanto às responsabilidades criminais de tipos penais ambientais cometidos por pessoas jurídicas, para citar apenas uma hipótese. É o que se infere, por exemplo, da questão referente à responsabilidade penal dos dirigentes das empresas diretamente envolvidas no crime ambiental.

A Procuradoria da República apresentou uma série de denúncias contra um grupo de pessoas direta, ou indiretamente, envolvidas na direção das empresas que atuavam na região no momento do acidente. Dentre os crimes apontados nos processos criminais abertos, destacamos

Art. 254 do Código Penal - Crime de inundação;

Art. 256 do Código Penal - Crime de desabamento ou desmoronamento;

Art. 29, §1º, I e II, §4º, I, III, V e VI e art. 33, todos da lei 9.605/98 - Crimes contra a fauna;

Art. 38, art. 38 - A, art. 40, §2º, art. 49, art. 50, art. 53, I e II, "c", "d" e "e", todos da lei 9.605/98 - Crimes contra a flora;

Art. 54, §2º, I, III, IV e V - Crimes de Poluição.

As denúncias, pelas práticas de crimes ambientais, contra as pessoas físicas tiveram quase que unanimemente o mesmo fim: o arquivamento. No entanto, durante o trâmite processual, despertou-se o debate acerca da responsabilização penal dos dirigentes pelos acidentes provocados pela atividade empresarial. Em sua atuação na fase processual, a Procuradoria da República atribuiu todo tipo de condutas (omissivas e comissivas) aos diretores das empresas envolvidas, ignorando muitos dos princípios e preceitos processuais penais.

Apesar da gravidade do fatídico evento ocorrido naquela data, há de se fazer a clara separação entre a responsabilidade criminal da empresa e a do corpo diretivo. É que, ao se analisar a imputação jurídica dos fatos ocorridos, a Procuradoria da República tergiversou acerca da responsabilidade penal dos diretores das empresas, assemelhando-os à figura do garantidor, ou seja, daquele que tem o dever legar de impedir a ocorrência de determinada situação. A análise do caso concreto revela a urgente necessidade de se reavaliar os institutos jurídicos de tipificação dos crimes ambientais, bem como a exatidão e extensão de seus dispositivos.

A hipótese a ser analisada no presente artigo diz respeito à existência de uma clara separação entre a responsabilidade penal das pessoas físicas e jurídicas no que tange aos crimes ambientais. Considera-se haver uma distinção no próprio texto da lei que foi solenemente ignorada pela Procuradoria da República quando da apresentação das denúncias contra os dirigentes das empresas envolvidas no acidente de Mariana/MG.

Para a elaboração deste artigo foi adotado a revisão bibliográfica como metodologia de pesquisa principal. Optou-se pela revisão literária de livros, artigos científicos e, principalmente, a jurisprudência que vem se consolidando em nosso país sobre o tema.

Por meio deste trabalho acadêmico podemos concluir que existe sim uma separação legal entre a responsabilidade criminal da pessoa jurídica e da pessoa física no que tange aos crimes ambientais. Muito embora tenha a Procuradoria da República feito uma confusão digna de nota ao apresentar as denúncias do caso Mariana/MG, é notória a existência de uma delimitação legal entre as responsabilidades penais objetivas de um e de outro.

O texto normativo da nossa Constituição (artigo 225) é claro quanto à responsabilização penal das pessoas jurídicas quando praticarem, comissiva ou omissivamente, atos capazes de lesar o meio ambiente. Observada a importância que o meio ambiente ganhou no texto constitucional, o legislador infraconstitucional instituiu a lei 9.605/98, buscando justamente disciplinar os crimes ambientais, sistematizando as condutas tuteladas pela lei, bem como as sanções a serem impostas. É forçoso reconhecer que o Brasil foi pioneiro na América Latina a adotar a responsabilização penal da pessoa jurídica.

Existe, no entanto, considerável divergência doutrinária acerca da responsabilização penal das pessoas jurídicas.

O Superior Tribunal de Justiça adotou a teoria da dupla imputação penal. Segundo essa corrente, a responsabilização penal da pessoa jurídica somente seria possível com a concomitante responsabilização da pessoa física por ela responsável.

Em 2013, ao julgar os autos do Recurso Extraordinário 548.181/PR, o STF deu uma guinada na jurisprudência sobre o tema, passando a adotar como constitucional o entendimento de que a pessoa jurídica pode sim responder penalmente, sem a corresponsabilização da pessoa física.

É entendimento firme e dominante na doutrina e jurisprudência pátria que a imputação penal da figura do garante, nos crimes omissivos impróprios, exige mais que a simples omissão do agente. Exige uma omissão consciente e inequívoca, tendo o omitente o poder de decisão e as ferramentas adequadas para mitigar o risco existente. Fora dessa hipótese, não subsiste imputabilidade penal apta a ser designada a quem quer que seja.

Em que pese a gravidade do acidente ora analisado, há de sermos coerentes com o sistema jurídico pátrio. Se agíssemos na sanha punitiva, tal qual foi a postura da Procuradoria da República em Minas Gerais, haveria maiores riscos aos direitos fundamentais dos indivíduos, tomando-se nota especialmente do direito à liberdade. É forçoso observar que a defesa de um direito fundamental não pode suprimir outro (devido processo legal). A melhor hermenêutica jurídica prevaleceu no caso analisado, conformando-se o aparente conflito de direitos ao sistema jurídico brasileiro. Apesar do sensacionalismo da mídia em dizer que houve impunidade nos eventos analisados, como operadores do Direito, podemos dizer que, pelo contrário, a Justiça foi preservada.

________

1 Laudo Técnico Preliminar do IBAMA, disponível aqui. Acesso em 08 de agosto de 21

2 Constituição Federal

3 Fiorillo, C. A. P. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Advogada criminalista. Atuante na defesa de custodiados em presídios federais. Doutora pela Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-doutora pelas Universidades de Salamanca (Espanha) e Messina (Itália).

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