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MP 1.045: Nada novo sob a sombra da Austeridade

Se não há constatação de retorno para os trabalhadores, nem economia para o Estado, se faz necessário refletir a quem favoreceria a política econômica proposta pela medida provisória posta à votação do Senado Federal.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Atualizado às 09:11

(Imagem: Arte Migalhas)

Os noticiários denunciam a investida totalitária do Presidente da República, que entre desfiles militares decadentes e ameaças institucionais aparenta ter cada vez menos apoio da população1, tardiamente ciente de que o Messias não teria surgido nas eleições de 2018 como uma divindade incorruptível, mas sim como um resquício ideológico dos piores capítulos da história brasileira. Apesar da vertiginosa queda de popularidade dos atos do governo federal, sua base de sustentação legislativa segue obstinada a deixar "seguir a boiada", expressão cunhada pelo ex Ministro Ricardo Salles e que não desaparece de nossas memórias desde a divulgação daquela fatídica reunião interministerial2.

Sob o pretexto de votação de uma medida provisória voltada para mera renovação das regras instituídas na lei 14.020/20, que instituiu no ano passado o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda em decorrência da crise econômica ocasionada pela pandemia, a bancada bolsonarista promoveu um enxerto de mais de 60 artigos no texto base proposto, com nítido intuito de converter o debate inicial, antes limitado a votação de um regime trabalhista excepcional, a uma estratégia inconstitucional de levar ao legislativo uma reforma trabalhista cujo principal objetivo é a desoneração patronal e a consequente subtração de direitos constitucionalmente garantidos aos trabalhadores.

Como já muito apontado por especialistas, evidente o confronto da referida prática com a jurisprudência do Supremo, que teve a oportunidade de decidir em sede de controle concentrado a inconstitucionalidade de emendas parlamentares que promovam ampliações substanciais no objeto originário de medidas provisórias no curso de seu processo legislativo3. O Tribunal considerou que a inserção das chamadas "emendas jabutis" viola o princípio democrático e o devido processo legislativo.

De fato, o que se observa é a nova tentativa do governo federal implementar pontos da Medida Provisória 905/19, norma que previa a instituição da carteira de trabalho Verde e Amarela, a moeda de troca política de Bolsonaro ao lobby empresarial, mas que por falta de consenso entre os parlamentares acabou perdendo sua vigência. As emendas oferecidas pela base de apoio do poder Executivo à MP 1.045/21 resgatam a ideia de redução de proteção trabalhista e de salários como resposta para a crise econômica que já atravessa o país há tempos.

Assim, para além da renovação das medidas propostas pelo Ministro Paulo Guedes para a lei 14.020/204 e da inclusão de outras iniciativas prejudiciais às garantias trabalhistas, foi reestabelecida a criação do PRIORE, programa previsto na MP 905/2019, com vistas a garantir estímulo ao primeiro emprego e à reinserção no mercado de trabalho de jovens de 18 a 29 anos e de pessoas de idade superior a 55 anos sem vínculo formal por mais de 12 meses. Em linha, pretende-se também estabelecer um Regime especial de qualificação e inclusão produtiva, o REQUIP, que, na teoria, buscaria otimizar a prestação de serviços e a formação profissional de jovens de 18 a 29 anos, sendo ambos os programas custeados com recursos públicos destinados ao Sistema S.

Trocando em miúdos, tanto o primeiro quanto o segundo projeto buscam a precarização do vínculo trabalhista entre trabalhadores e empresas, figurando o Estado como um intermediário financeiro, seja pela ótica da receita, seja pela ótica da despesa.

Segundo a lógica do REQUIP, a União se comprometeria com o pagamento de uma bolsa no valor de até R$ 220 reais mensais em conjunto com a empresa contratante, que arcaria com uma bolsa de incentivo à qualificação (BIQ) sob mesmo valor, mas que, por outro lado, poderia ser objeto de dedução fiscal do cálculo do IRPJ e da CSLL. O trabalhador, sob as vestes de espécie de estagiário sem proteção legal e sem sujeição pré-definida a qualquer diretriz curricular programática para sua qualificação profissional, seria, portanto, brindado por sua força de trabalho com a contraprestação suntuosa de cerca de R$ 440 reais mensais pelo exercício de meio turno laboral semanal, sem concessão de 13º salário, férias remuneradas, vale transporte integral ou FGTS.

O PRIORE, por sua vez, permitiria a redução das indenizações destinadas ao FGTS pelos empregadores, bem como a complementação da remuneração devida pelo empregador5 com recebimento do bônus de inclusão produtiva, também custeado pelo Estado. Diante do silêncio normativo, ambos os modelos poderiam ser utilizados pelas empresas para substituir o atual contrato de trabalho de seus funcionários, o que significa em números a possibilidade de precarização de cerca de 40% da mão de obra contratada pelas empresas, conforme ressaltado em manifestação do Ministério Público do trabalho6 quanto ao tema.

A justificativa apresentada para a inclusão dos referidos programas na medida provisória pelo Relator, Deputado Christino Aureo, seria a necessidade de enfrentamento das consequências da pandemia mediante a instituição de novas políticas de geração de emprego, especialmente para o público mais atingido pelos efeitos sociais e econômicos da pandemia, assim como de qualificação das pessoas para sua inclusão no mercado de trabalho.7

Ou seja, além de descaradamente violar a Constituição da República, busca-se por meio desta medida provisória conferir viés social a política econômica que apenas beneficia os mais ricos.

Não é de hoje que a agenda neoliberal brasileira insiste na implementação dos jargões importados de Chicago para o plano de desenvolvimento econômico do país, sobretudo aqueles influenciados pela teoria do trickle-down, em que se sustenta estar o crescimento da economia intimamente ligado à riqueza dos mais ricos. Segundo essa concepção, quanto mais dinheiro à disposição dos ricos, haveria maior espaço para investimento, o que por sua vez impulsionaria a redução dos preços e a expansão de consumo.

Ocorre que dito pensamento não encontra respaldo na evidência empírica8. Contradizendo os defensores da austeridade, estudos econométricos sugerem que os investimentos das empresas na expansão da capacidade produtiva dependem de estímulos da própria atividade econômica. Se não há demanda, não há razão para ampliar sua capacidade além da existente, resultado esse que também pode ser aferido das políticas econômicas e fiscais promovidas no Brasil nas últimas décadas, em especial a partir de 2015. Conforme observado desde a gestão Dilma, as desonerações fiscais e os subsídios conferidos aos empresários não foram capazes de elevar investimentos privados, mas serviram como política de transferência de renda para os mais ricos, além de contribuir para a deterioração das contas públicas9.

A vitória da austeridade fiscal arrebatada pela instituição do teto de gastos e os ataques a direitos trabalhistas não geraram mais empregos, tampouco cumpriram a meta de redução do orçamento público, que permanece comprometido com renúncias de receita desarrazoadas, tal como essa sugerida pela MP 1.045/21, em que se atribui ao Estado a participação remuneratória em uma relação trabalhista privada. A proposta de utilização de recursos destinados ao Sistema S ainda viola o planejamento orçamentário das instituições que o compõem, dependentes desses repasses financeiros para a manutenção de seus serviços nacionais de aprendizagem técnica e profissional postos à disposição da população.

Como bem salientado por Laura Carvalho, há na economia brasileira um problema de fluxo10, pois famílias e empresas estão vendo seus rendimentos caírem. Se há menor poder de compra, há prejuízo nas vendas e, consequentemente, nos lucros das empresas. A redução do custo com mão de obra parece ser para os empresários uma forma muito eficaz de ganhar competitividade, mas uma redução generalizada de salários em uma economia acaba por diminuir o próprio mercado consumidor11. A saída para a crise, portanto, não será pela precarização da relação trabalhista ou pela redução salarial, mas pela injeção autônoma de demanda na economia, que se não vir das exportações, deverá vir do investimento público em infraestrutura enquanto pilar de política econômica e não em políticas de transferências de renda para empresas.

Nesse sentido, se não há constatação de retorno para os trabalhadores, nem economia para o Estado, se faz necessário refletir a quem favoreceria a política econômica proposta pela medida provisória posta à votação do Senado Federal. Para um governo que em pleno pico pandêmico impôs à sociedade a escolha de uma falsa dicotomia entre preservação de vidas ou preservação da economia ao invés de investir na recuperação da economia e da população, parece não haver dúvidas de que a preocupação do Estado com o trabalhador é meta descartada da agenda neoliberal em curso no país.

_________

1 O Globo, 17.08.2021. "Rejeição ao governo Bolsonaro segue em alta e atinge 54%, diz XP/Ipespe". Disponível aqui. Acesso em: 17.08.2021.

2 O Globo, 22.05.2020. "Ministro do Meio Ambiente defende passar 'a boiada' e mudar regras enquanto atenção da mídia está voltada para a covid-19." Disponível aqui. Acesso em 17.08.2021.

3 ADI 5127, Rel. Min. Rosa Weber, Rel. p/ Acórdão Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 15/10/2015.

4 As medidas previstas na lei 14.020/2020 já se mostravam ofensivas à classe trabalhadora, como se pode observar da redução real de salário concebida pelo cálculo do Benefício Emergencial de Preservação de Emprego e da Renda - Bem, transferência de renda custeada pela União que foi concedida aos trabalhadores que tiveram seu contrato de trabalho suspenso temporariamente e que sofreram redução proporcional de jornada de trabalho e de salário (artigos 5º, I e II). Nesse contexto, empregadores tiveram redução na sua folha de pagamento sem necessariamente perda de mão de obra e trabalhadores tiveram redução do valor real que recebiam, já que esse benefício seguia a base de cálculo do seguro desemprego conforme se depreende do artigo 6º da lei.

5 Limitada ao valor de dois salários-mínimos.

Disponível aqui. Acesso em 17.08.2021.

7 Câmara dos Deputados. "Parecer de Plenário à Mpv Nº 1.045, de 2021, pela Comissão Mista". Disponível aqui. Acesso em: 17.08.2021.

8 CARVALHO, Laura. Valsa Brasileira: Do boom ao caos econômico, São Paulo: Todavia, 1ª edição, 2018, pág. 166

9 Ibid. pág. 167.

10 Ibid. pág. 167.

11 Ibid. pág. 151.

Ricardo Lodi Ribeiro

Ricardo Lodi Ribeiro

Reitor da UERJ. Professor Associado de Direito Financeiro da UERJ, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário e advogado.

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