Arbitragem "dentro da porteira"
Não reconhecer a arbitrabilidade dos conflitos decorrentes dos contratos agrários de arrendamento e parceria rural é negar ao jurisdicionado a abertura de uma das portas do nosso sistema de Justiça.
terça-feira, 31 de agosto de 2021
Atualizado às 09:12
Em breve, a lei de arbitragem brasileira (9.307/96) completa 25 anos. Mais precisamente no próximo dia 23 de setembro. São duas décadas e meia de muitas discussões, desde aquela tão emblemática sobre a própria constitucionalidade de dispositivos da referida lei (notadamente a eficácia da cláusula compromissória), até a atual discussão sobre a constitucionalidade do sigilo da arbitragem, nos casos em que o procedimento é levado ao Judiciário (artigo 189, IV, CPC/15). Por não ser objeto deste singelo texto, não cabem aqui maiores digressões sobres tais "batalhas", algumas já vencidas pela arbitragem, outras ainda colocando o instituto na berlinda.
Em alguns setores da economia, bem como em relação a algumas matérias, a utilização da arbitragem no Brasil (tanto doméstica, como quando partes brasileiras utilizam arbitragem internacional), está bem consolidada. Alguns exemplos bem conhecidos: contratos de infraestrutura, M&As, exportação de commodities, contratos de franquia, entre outros.
Neste contexto, voltando o olhar para aquele que hoje é o setor mais relevante para composição do PIB brasileiro e para o saldo positivo de nossa balança comercial, ou seja, olhando para o Agronegócio, este breve texto apresenta uma defesa à adoção da arbitragem como forma de resolução de disputas decorrentes dos contratos agrários, mais especificamente no que se refere à arbitrabilidade de tais litígios.
O artigo 1º da lei 9.307/96 é bastante conhecido: As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
A aferição de arbitrabilidade nos contratos agrários algumas vezes gera dúvidas, quando realizada em uma análise superficial da legislação. Neste sentido, busca-se aqui trazer alguma contribuição para esta análise, que merecer ser feita com a devida separação dos conceitos e dos problemas, bem como com a necessária atualidade. É sabido que interpretação jurídica não se faz sem historicidade.
Primeira questão: onde estaria o suposto óbice à arbitrabilidade objetiva nos contratos agrários?
No que se refere aos contratos atípicos, em lugar algum. Não existe norma da qual se pudesse decorrer uma limitação à adoção da arbitragem em contratos atípicos.
Nos contratos agroindustriais, inclusive os previstos pela lei 13.288/16, denominados contratos de integração vertical, tampouco. Cabe aqui destacar em separado este tipo de contrato, visto que existe lei própria de regulação, o que, em nosso entendimento, caracteriza-o como contrato típico desde 2016. A referida lei, em sua própria principiologia, estabelece que os contratos de integração são regidos pelo esforço conjunto das partes e justa distribuição dos resultados (artigo 3º), colocando-as em situação de parassuficiência. Importante não deixar passar também o texto do artigo 4º, parágrafo único, que estabelece que o foro do local do empreendimento é o competente para o processamento e julgamento das demandas decorrentes do contrato. Entretanto, a previsão de foro competente em nada afasta a possibilidade de as partes renunciarem à jurisdição estatal, inserindo cláusula compromissória no contrato de integração. Se integradora e produtor integrado desejarem adota a via arbitral, o fato de haver previsão de foro competente por si só não afeta a arbitrabilidade da matéria: direito patrimonial disponível.
O ponto sensível deste debate costuma ser a arbitrabilidade dos contratos agrários típicos regulados pelo Decreto 59566/66, regulamentador do Estatuto da Terra (lei 4.504/64): arrendamento e parceria rural.
Os referidos contratos agrários tratam da exploração da propriedade rural por aquele que não é seu proprietário, ou seja, da atividade agrícola desenvolvida no momento conhecido no jargão do agronegócio como "dentro da porteira". O proprietário do imóvel rural é, conforme o caso, o arrendante ou o parceiro-outorgante. Enquanto a exploração da terra é feita pelo arrendatário ou pelo parceiro-outorgado.
Estes contratos foram previstos pelo Estatuto da Terra em 1964 e, posteriormente, regulados por decreto de 1966. É fundamental compreender o contexto histórico em que foram criados. O artigo 1º do ET já traz o paradigma: uma lei criada para fins de reforma agrária e promoção de política agrícola. Na década de 60, fez-se necessária a criação de um "estatuto" que visava à implementação de regras protetivas ao "homem do campo", que explorava a terra sem a proteção de legislação trabalhista, e tampouco era o seu proprietário. O objetivo era aumentar a produtividade e impulsionar o desenvolvimento da produção agrícola. Neste sentido é a previsão do artigo 2º do Decreto 59566/66, ao estabelecer que são irrenunciáveis os direitos e vantagens nele instituídos. Em outras palavras, o arrendatário e parceiro-outorgado eram vistos como hipossuficientes.
Neste ponto, cabe um esclarecimento. Não se pretende neste trabalho questionar a eventual necessidade de revisão desta legislação ou mesmo se ainda se faz necessária regra protetiva ao arrendatário/parceiro-outorgado. Mas sim trazer maior clareza para o fato de que o caráter protetivo do ET e do decreto 5.9566/66 não serem excludentes da arbitrabilidade dos conflitos decorrentes de tais contratos típicos.
Por outro lado, é fato conhecido no ambiente do agronegócio, e mesmo divulgado pela mídia em geral, que o agronegócio brasileiro transformou-se profundamente nas últimas décadas. Hoje o Brasil é um dos mais relevantes players internacionais deste setor econômico, exportador de alimentos, com um impressionante aumento de produtividade decorrente da revolução tecnológica no campo e profissionalização da gestão das propriedades rurais.
Disto decorre que, em muitos casos, o arrendatário/parceiro-outorgado nem sempre é alguém vulnerável ou hipossuficiente em uma relação contratual agrária. Este fato não passou desapercebido inclusive da jurisprudência de nossos tribunais. Diversas regras do decreto 5.9566/66 (como, por exemplo, a estipulação do preço em produto) foram flexibilizadas em decisões do Superior Tribunal de Justiça, entre outros, com base na apreciação, no caso concreto, de que não havia desequilíbrio contratual entre as partes1.
É coerente, então, que a arbitrabilidade dos contratos de arrendamento e parceria rural seja analisada à luz do atual cenário das relações no campo, nem sempre estabelecidas entre desiguais, ou mesmo nem sempre tendo o arrendatário/parceiro-outorgado como vulnerável. Pelo contrário, atualmente existem inúmeros casos em que o arrendatário é uma forte empresa da agroindústria ou em que é um grande proprietário de terras, que cultivas áreas menores arrendadas de pequenos produtores.
Além disto, tecnicamente falando, a suposta hipossuficiência do arrendatário/parceiro-outorgante não macula a arbitrabilidade da matéria contratual. Ainda que exista no caso concreto hipossuficiência da referida parte, não se torna impossível a adoção da arbitragem, desde que sua vontade não esteja viciada, por certo com a devida investigação da livre e informada tomada de decisão. Não foi outro o caminho já construído para se admitir a arbitragem em contratos de adesão, de franquia, de consumo. Em outras palavras, não devemos confundir os problemas, sob pena de erramos nas soluções. O mesmo se diga para eventual impecuniosidade para acessar o procedimento arbitral. Esta não se pressupõe nem decorre do fato de a parte ocupar a posição de arrendatária/parceira-outorgada. E também é questão que não se confunde com a arbitrabilidade objetiva nos contratos agrários típicos do decreto 5.9566/66.
Não reconhecer a arbitrabilidade dos conflitos decorrentes dos contratos agrários de arrendamento e parceria rural é negar ao jurisdicionado a abertura de uma das portas do nosso sistema de Justiça, sem uma análise mais acurada do cenário econômico e relações contratuais hoje presentes no agronegócio brasileiro. Amadurecer e compreender os contornos do que significa defender esta arbitrabilidade é fundamental para oferecer segurança para que os contratantes insiram cláusulas compromissórias nos contratos agrários típicos, permitindo-se que usufruam, a partir da análise do meio mais adequado a seu caso, das vantagens que a arbitragem traz para o agronegócio, lembrando aqui nossa colocação já feita em artigo anterior: "não só a arbitragem é adequada ao agronegócio, como também que o agronegócio precisa da arbitragem, a fim de alcançar melhores resultados em termos de resolução de disputas".2
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