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Cavitamia: um não-fenômeno para o mundo dos transportes

Paulo Henrique Cremoneze, Marcio Roberto Gotas Moreira e Bruno Mangerona

Trata-se de objeto de litígios relativamente ao seguro de RCTR-C (Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Cargas).

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Atualizado às 08:00

(Imagem: Arte Migalhas)

A literatura do Direito de Transportes e do Direito de Seguros apresenta-nos um assunto muito interessante: a cavitamia.

Trata-se de objeto de litígios relativamente ao seguro de RCTR-C (Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Cargas).1

Cavitamia é a combustão espontânea da carga, muito comum, por exemplo, no transporte de algodão. Como o próprio nome diz, é a que ocorre sem fonte inflamável externa para desencadear o incêndio. Não há um elemento extrínseco de ignição.

Estuda-se muito o fenômeno, mas ainda não se sabe o que de fato há em determinadas cargas, que por sua natureza simplesmente começam a pegar fogo. Sabe-se, porém, que é fenômeno que acontece com alguma frequência e que tem desdobramentos no ramo de seguros.

Em regra, ainda que seja possível contratar cobertura específica, a cavitamia não é coberta pela apólice RCTR-C porque não se trata de um dano derivado exatamente do transporte de cargas.

Em um caso concreto em que o segurador negou pagamento de indenização ao segurado, transportador de cargas, disse o Poder Judiciário:

Conforme declaração do condutor do veículo transportado, corroboradas com os documentos firmados pela Polícia Militar, trafegava pela rodovia supra quando ao olhar pelo retrovisor, percebeu que estava saindo fumaça da carga (pluma de algodão), oportunidade em que estacionou o veículo e desatrelou o cavalo mecânico, tendo o semirreboque e a carga sido consumidos pelo fogo (fl.144 - 31134191).

Do relato das testemunhas ouvidas em juízo, concluiu-se que em momento algum restou confirmado que houve um causador direto para o acidente, e que pelo fato do incêndio ter iniciado na carga, e a mesma ser pluma de algodão, esta corre risco de sofrer Cavitamia (uma espécie de combustão espontânea), como sendo a causadora do sinistro.

Relatam as testemunhas, mormente as arroladas pela empresa autora que o veículo transportador do algodão em pluma estava em bom estado de conservação; que, os fardos de algodão estavam devidamente embalados; e, por fim, nenhum efeito externo que poderia dar início à combustão, fora mencionado, ocorrendo, sem qualquer dúvida a ocorrência da combustão espontânea, a qual pode se dar por inúmeras causas, como bem explicitado pela testemunha (...).

Analisando o contrato firmado entre as partes, se constata que de fato o mesmo não acoberta o risco de Cavitamia para o transporte de algodão, conforme item de Objeto do seguro e riscos cobertos (fls.117 - 20482926).

(...)

Com efeito, analisando os documentos que instruem os autos e relato das testemunhas, resta claro que as chamas foram originadas da ocorrência da combustão espontânea da carga de algodão em pluma transportada, pelos seguintes motivos: O condutor do veículo descobriu as chamas, ao visualizar pelo retrovisor fumaça saindo da carga transportada; não houve qualquer explosão ou incêndio anterior no caminhão (cavalo) ou na carreta visualizado pelo motorista; não houve colisão ou abalroamento do veículo que justificassem o início do fogo; e a Cavitamia (combustão espontânea) do algodão em pluma, embora seja lenta e sem chamas, ao encontrar a superfície (oxigênio) se transformar em fortes chamas, como aconteceu na espécie.

Assim, uma vez que o contrato de seguro não propicia a cobertura para o sinistro que sofreu a autora, essa não deve ser indenizada.

A decisão, digna de elogios, merece ser citada porque o juiz que a elaborou compreendeu corretamente o fenômeno e reconheceu a inexistência de cobertura. No caso, o segurador negou a indenização por não se tratar de risco coberto e o juiz aplicou muito bem o Direito Civil.

Houvesse o pagamento e o segurador teria prejudicado o mútuo. Veja-se que houve recusa legítima porque inexistiu falha de transporte, e sim combustão espontânea.

Esta foi a dinâmica do evento: o transporte da carga ocorria normalmente quando o motorista, sem qualquer interferência externa, observou as chamas tomarem conta da carga de algodão em pluma. Não houve prova alguma, sequer mesmo uma sombra de evidência, a apontar falha mecânica ou um aquecimento anormal das rodas da carreta. Enfim, nada que indicasse outra coisa senão a cavitamia.

Convém repetir que não havia qualquer elemento indicativo de que o veículo transportador tenha apresentado defeitos mecânicos que contribuíssem para um superaquecimento da carga.

Muito pelo contrário, as testemunhas declararam seu bom estado de conservação, reforçando a certeza de ocorrência de cavitamia, que no caso era causa excludente de responsabilidade civil do transportador rodoviário e risco excluído da relação de seguro.

Salvo quando objeto de cobertura específica, cavitamia é vício próprio da carga e, portanto, se põe fora do alcance da grande maioria das apólices de seguro RCTR-C.

Toda carga que se perde por evento decorrente de sua própria natureza exclui o segurador de pagamento de indenização. Não foi diferente com o caso em que atuei (e ainda atuo).

As apólices de seguro RCTR-C normalmente são acompanhadas de glossários de termos técnicos, que esclarecem muito bem o que se entende por vício próprio, para fins de cobertura securitária, e a cavitamia se insere no contexto.

Materiais armazenados ou concentrados em grandes quantidades para transporte podem não raro sofrer combustão espontânea, que acontece, a rigor, devido ao calor interno originado do processo oxidação (no qual elétrons são perdidos, principalmente quando o oxigênio se combina com algum outro elemento químico ou quando o hidrogênio é retirado de um composto).

Outras causas ainda são alvos de zelosos estudos, mas o calor interno seguido de processo de oxidação é o mais comum, até porque conhecido. E nenhum material se mostra mais suscetível a isso do que o algodão.

A oxidação não permite que o calor seja liberado para o ar ao redor; enquanto a temperatura do material, aumentando gradativamente até atingir seu ponto de ignição, acaba por provocar as chamas. Em síntese didática, isto é a cavitamia, a real causa de muitos incêndios durante transportes de cargas.

Importante dizer que, no caso sentenciado e ora comentado, a polícia militar registrou no boletim de ocorrência a queima da mercadoria em circunstâncias que apontaram claramente a presença da combustão espontânea e a ausência de qualquer elemento externo a atear fogo à carga de algodão em pluma.

O resultado não poderia ser outro senão a improcedência do pleito de indenização do segurado.

Curioso que o segurado buscou confundir o juiz ao apresentar definição de incêndio inaplicável ao caso.

Valeu-se da regulação da SUSEP para a apólice de seguro de Property e exibiu conceito de incêndio que não se aplicava aos fenômenos de cavitamia, algo típico dos seguros de transporte e de responsabilidade civil.

A SUSEP - Superintendência de Seguros Privados, órgão controlador e fiscalizador do mercado de seguros no Brasil - tem a função e a obrigação de regulamentar as cláusulas e coberturas securitárias para cada ramo de atividade, observadas suas particularidades e riscos específicos. Logo, não é estranho que um mesmo fenômeno possa ter abordagens conceituais em parte distintas.

Não poderia aquele segurado, na sua melhor conveniência, tentar adequar uma conceituação própria do seguro de incêndio (Property), para defender o pagamento da indenização em um caso de responsabilidade civil do transportador rodoviário, quando evidentemente se estava diante de uma situação completamente diferente, de combustão espontânea.

Razões ônticas diferentes, definições conceituais distintas e inteligências jurídicas diversas. 

Isso valeu para o caso sentenciado e vale para muitos outros.

Um incêndio tem causa externa, enquanto a cavitamia não. Trata-se de alguma propriedade intrínseca que acarreta autocombustão e, consequentemente, a destruição.

A lei 11.442/17, que disciplina o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros, no art. 12, III e V, é taxativa ao exonerar a responsabilidade do transportador nas hipóteses de vício próprio da carga:

Art. 12. Os transportadores e seus subcontratados somente serão liberados de sua responsabilidade em razão de:

I - ato ou fato imputável ao expedidor ou ao destinatário da carga;

II - inadequação da embalagem, quando imputável ao expedidor da carga;

III - vício próprio ou oculto da carga;

IV - manuseio, embarque, estiva ou descarga executados diretamente pelo expedidor, destinatário ou consignatário da carga ou, ainda, pelos seus agentes ou prepostos;

V - força maior ou caso fortuito;

VI - contratação de seguro pelo contratante do serviço de transporte, na forma do inciso I do art. 13 desta lei.

Parágrafo único. Não obstante as excludentes de responsabilidades previstas neste artigo, o transportador e seus subcontratados serão responsáveis pela agravação das perdas ou danos a que derem causa.

Logo, erra o segurado que busca indenização de seguro diante da cavitamia. Não há responsabilidade civil do transportador diante do vício próprio da carga e não há incêndio provocado por fonte externa, o veículo transportador, quando da combustão espontânea.

Sem, por exemplo, prova inequívoca de defeito mecânico do veículo, causando um aumento anormal de calor (ou seja, um superaquecimento que expôs a carga a elevada temperatura durante o transporte), a seguradora não pode arcar com o pagamento da indenização.

Se o fizesse, estaria a incidir no erro do pagamento ex gratia e a prejudicar severamente o colégio de segurados que administra.

Interessante notar mais uma vez que existe cobertura específica para os eventos decorrentes da cavitamia, mas enorme número de transportadores prefere a contratação de uma cobertura mais restritiva, com prêmio mais barato, apostando na suposta raridade de sua ocorrência.

Quando o problema se apresenta, busca de algum modo enquadrá-lo em algum dos riscos cobertos, ainda que evidente a impossibilidade. Daí o incremento da judicialização de uma autêntica "não-questão".

Em um caso geral de cavitamia, o pagamento da indenização caracterizaria quebra de um dos princípios básicos da atividade securitária, o do mutualismo 2, prejudicando e onerando outros segurados que se encontram sob o guarda-chuva negocial do segurador.

Diante de cavitamia, sem cobertura específica, a postura correta é a de não pagamento, dada a obviedade clausular.

Seja no seguro RCTR-C, seja no de transporte (do embarcador), não há que se falar em cobertura daquilo que não é expressamente previsto como risco, do que não é derivado de dano de execução de transporte.

Por isso é que dissemos antes e repetimos, agora, se tratar em verdade de uma "não-questão".

E se, em um pleito judicial promovido pelo segurado insatisfeito com a negativa, este tiver  atendida a pretensão, estará instaurado o erro de interpretação dos fatos e do contrato de seguro.

O que aqui defendemos não é o formalismo pelo formalismo, nem mesmo interpretação férrea de normas contratuais, mas o bom zelo do negócio de seguro, a tecnicidade recomendável, a segurança jurídica, a verdade fenomênica e a boa-fé objetiva.

Constatada em um caso concreto a cavitamia, nada mais haverá para ser discutido, ao menos em relação aos contratos de seguro que não a preveem como um risco coberto.

Quando nega um pagamento de indenização, ancorado em base técnica e segundo idônea interpretação de clausulado, o segurador não defende apenas seus direitos e interesses, mas os de todo o colégio de segurados. Isso decorre do comentado e destacado princípio do mutualismo, que é um dos informadores do negócio de seguro.

Tratando-se de um mútuo, o seguro tem elevada carga de interesse público, sendo o negócio jurídico que melhor corresponde ao conceito de função social do contrato. Não só aos segurados, mas também à sociedade em geral interesse o negócio de seguro, razão pela qual os pagamentos indenizatórios só podem ser feitos sob a mais estrita legalidade. E isso tem que ser sempre levado em consideração pelo Poder Judiciário quando chamado a decidir contenda entre segurados e seguradores.

Seguradores, a rigor, não se recusam a indenizar. É para isso que existem. Apenas querem ter certeza de que as indenizações são justas e devidas, sob pena de ofensa ao negócio em si e deslealdade aos segurados.

O pagamento sem base técnica fundamentada seria prejudicial ao colégio de segurados e ao seio social como um todo, aviltando a função social do negócio de seguro. Assim como a condenação judicial que desconsidera os elementos informadores do negócio de seguro e que são pressupostos essenciais de sua saúde, algo que, diga-se novamente, interessa à sociedade em geral.

Logo, é e sempre será legal e legítima a recusa de pagamento de indenização ao segurado sem cobertura específica para cavitamia, pois que não é vício de transporte.

Neste ponto, em especial, encontra-se a importância de interpretar os contratos restritivamente, sob pena de alterar o equilíbrio econômico-financeiro que rege o sistema securitário.

Por isso muito importante é considerar as coisas como de fato são, segundo o princípio filosófico da identidade, que nos acompanha desde a Grécia antiga, pré-socrática: o que é, é.

Aliás, um princípio absoluto e que é bíblico, já que o próprio Deus dele faz uso ao ordenar Moisés a dizer ao povo que Ele é aquele que é: Eu sou o Que Sou (em hebraico: Ehyeh Asher Ehyeh) [Êxodo 10:17]

O que não tem ignição externa não é incêndio para efeitos jurídico-contratuais e, mesmo, ontológicos. A queima originada de fator intrínseco da coisa a bordo de veículo transportador não é um dano de transporte, mas acontecimento fortuito, vício próprio.

Por isso que a cavitamia é um não-fenômeno para os seguros que tratam de transportes de cargas.

O que é, é; o que não é, não é. Isto parece tão simples e objetivo que nem deveria ser discutido. Mas em Direito, mostra-nos a experiência, o que é, não é, e o que não é, pode até ser. Por isso rios de tintas são derramados em terra já molhada e os desertos que clamam por água continuam abandonados à própria sorte.

Esperemos que um dia isso mude. Fazemos a nossa parte.

_______

1 Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Cargas (RCTR-C). É um seguro obrigatório para o transportador rodoviário de cargas e oferece cobertura para eventuais danos causados aos bens ou mercadorias de terceiros colocados sob sua responsabilidade. [https://www.portoseguro.com.br/seguro-para-cargas/seguros-para-transportadores]

2 Segundo o glossário da SUSEP, mutualismo é: É um dos princípios básicos do seguro. Representa a contribuição de várias pessoas, expostas aos mesmos tipos de risco (massa de segurados), para a formação de um fundo comum, composto pela soma dos prêmios pagos à seguradora. Na ocorrência de um sinistro, será este fundo comum e mútuo que suportará as perdas. Na essência, todos os participantes contribuem com um valor relativamente baixo, em relação ao bem segurado, para que a pessoa que tenha o prejuízo naquele período receba a indenização. Conhecido com o princípio de "Um por todos e todos por um". Disponível aqui.

Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

Marcio Roberto Gotas Moreira

Marcio Roberto Gotas Moreira

Sócio de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos, especialista em Direito Processual Civil pelo COGEA, vinculado à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC - e membro do IDTBrasil.

Bruno Mangerona

Bruno Mangerona

Membro efetivo do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados, com atuação nas áreas de ressarcimento e contencioso, bem como elaboração de pareceres.

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