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Impessoalidade orçamentária e responsabilização

A pessoalidade na execução de emendas parlamentares tem relação com o instituto da emenda de relator, no processo legislativo orçamentário.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Atualizado às 17:14

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

As Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para os exercícios de 2020, 2021 e 2022 trouxeram explicitamente a exigência de impessoalidade na execução orçamentária, bem como a vedação à utilização do orçamento para influenciar votações no Congresso Nacional. Na LDO para 2022, por exemplo, aprovada recentemente pelo Congresso Nacional, temos o seguinte dispositivo:

Art. 162. A execução da Lei Orçamentária de 2022 e dos créditos adicionais obedecerá aos princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência na administração pública federal, e não poderá ser utilizada para influenciar na apreciação de proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional. (grifo e negrito nossos).

A Constituição Federal, por sua vez, ao dispor especificamente sobre a execução das emendas parlamentares, proíbe explicitamente a adoção de critério fundado na autoria das emendas, em favor da impessoalidade e da imparcialidade na política orçamentária, conforme a seguir:

Art.166...................................................................

................................................................................

§ 19. Considera-se equitativa a execução das programações de caráter obrigatório que observe critérios objetivos e imparciais e que atenda de forma igualitária e impessoal às emendas apresentadas, independentemente da autoria.  

................................................................... (grifo e negrito nossos)

Pois bem. Dentre os crimes de responsabilidade de agentes políticos, elencados na lei 1.079, de 1950, há a previsão de doze condutas típicas de natureza orçamentária, destacando-se aqui a infração patente a dispositivo da lei orçamentária:

Art. 10. São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária:

........................................................................................

4 - Infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária.

........................................................................................

Importante ressaltar que a lei 1.079, de 1950 foi editada na quadra da Constituição de 1946, da qual não constavam a Lei do Plano Plurianual (PPA) e nem a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). De fato, essas leis, que ao lado da Lei Orçamentária Anual (LOA), integram a engenharia constitucional do planejamento e orçamento público, são obras da nossa Carta Política de 1988. Nessa engenharia, a LOA está submetida aos ditames da Lei do PPA e da LDO, numa espécie de hierarquia lógica do planejamento. Em suma, a lei do PPA superordena a LDO e a LOA, e a LDO superordena a LOA.

Diante disso, a compreensão mais adequada do citado Art.10, 4, da lei 1.079, à luz da vigente Constituição Federal, há que levar em conta, igualmente, as infrações patentes a dispositivos da lei do PPA e da LDO, que, como visto, estão justamente em patamar superior à lei de orçamento anual, na perspectiva do modelo de planejamento.

Nas discussões sobre a devida impessoalidade orçamentária, que apontamos estar prevista na Constituição e na LDO, merece exame o chamado "orçamento secreto", prática que beneficiaria parlamentares, a partir da destinação de recursos alocados por emendas do relator-geral do orçamento. O tema tem sido recorrente na mídia e as denúncias estão sendo apuradas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), no âmbito dos processos 014.320/2021-3 e 014.336/2021-9, sob a relatoria dos ministros Weder de Oliveira e Raimundo Carreiro, respectivamente.

Segundo levantamento obtido na Plataforma Siga Brasil, do Senado, no orçamento de 2020, as emendas de relator alcançaram o volume de R$ 36,1 bilhões, quase 60% do valor global de emendas apresentadas. Já em 2021, essas emendas de relator-geral envolvem despesas de R$ 16,8 bilhões, cerca de 50% do total das emendas. Isso demonstra a significativa capacidade de alocação de recursos pela via das emendas de relator-geral, a exigir, portanto, a fiscalização sobre a impessoalidade e equitatividade na sua execução orçamentária, para o cumprimento efetivo das regras constitucionais e da LDO.

Assim, resta aferir se a violação ao princípio da impessoalidade na execução orçamentária, consagrado na Constituição e na LDO, é passível de responsabilização, nos termos da lei 1.079, de 1950. Em tese, à luz do atual regime constitucional de planejamento e orçamento, calçado no tripé legislativo do PPA, LDO e LOA e na hierarquia lógica entre essas nromas, há plausibilidade na referida responsabilização. Admitir o contrário implicaria o não reconhecimento da LDO como norma instituída pela própria Constituição e ordenadora da organização e execução da LOA. Em outras palavras, atentar contra a LDO deveria ser considerado delito até mais "grave", se comparado às condutas contra a lei orçamentária.

Além disso, note-se que a infração ao princípio da impessoalidade na execução das emendas orçamentárias, cria verdadeira assimetria entre parlamentares, com relevante dimensão eleitoral, porque a execução orçamentária discriminatória pode interferir na regular competição entre candidatos a cargos eletivos. Trata-se mesmo de tema que desafia a noção de abuso de poder econômico e político. Aliás, com a proibição de financiamento privado, a execução diferenciada de emendas pode ter papel preponderante na imagem e desempenho eleitoral de candidatos. Certo é que, apesar de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já haver enfrentado a temática de emendas parlamentares com possíveis fins eleitorais, a matéria ainda carece de aprofundamento pelo Judiciário.

É bom registrar que que essa "conexão eleitoral" do orçamento já é bem explorada pela Ciência Política, embora não tenha sido ainda captada pela legislação e jurisprudência eleitorais. Deveria, por isso, ser tópico de qualquer proposição de reforma da legislação eleitoral.

A pessoalidade na execução de emendas parlamentares tem relação com o instituto da emenda de relator, no processo legislativo orçamentário. Daí, a necessidade de aperfeiçoamento da resolução 1, de 2006, do Congresso, que trata da matéria. É justamente essa norma que determina que o relator-geral apresentará, nas fases iniciais do processo, relatório preliminar definindo, dentre outros tópicos, a amplitude da sua própria atuação e dos relatores setoriais nos remanejamentos e cancelamentos de recursos.  Fatos como a não instalação da Comissão Mista de Orçamento no Congresso, como ocorreu em 2020, também contribuíram para ampliar a discricionariedade da relatoria geral do orçamento.

Ao lado da desejável revisão da resolução 1, de 2006, do Congresso Nacional, não há dúvidas quanto à necessidade de ampliação da transparência da execução das despesas trazidas pelas emendas de relator-geral, tema que deveria, necessariamente, ter sido regulamentado na LDO 2022, recentemente aprovada no parlamento. Nada impede, entretanto, que o Executivo envie projeto de lei alterando a LDO 2022,  para dispor sobre critérios de transparência das despesas vinculadas às emendas de relator-geral.

Por tudo explanado, faz-se compulsória a blindagem contra a pessoalidade na execução orçamentária, na esteira da principiologia constitucional e da LDO. Em caso negativo, há riscos de responsabilização criminal de agentes políticos, numa leitura constitucionalmente atualizada da lei 1.079, de 1.950. Presentes permanecerão também os riscos de interferência da política orçamentária no processo eleitoral. Em ambas as hipóteses há temas caros ao Brasil: a estabilidade dos mandatos presidenciais e a igualdade e imparcialidade nas eleições.

Helder Rebouças

Helder Rebouças

Consultor Legislativo do Senado, advogado e Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Diretor-Geral do Senado (2013-2014); Diretor-Executivo do Instituto Legislativo Brasileiro(2015-2019).

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