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O calculismo como inimigo da advocacia e das grandes conquistas: A razão sob a influência do animal spirits

Ao advogado não se exige o brilhantismo nem personalidade extravagante. Exige-se, apenas, o bom uso da razão segundo aquele tipo de coragem intuitiva que é própria dos que combatem.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Atualizado às 07:57

(Imagem: Arte Migalhas)

O calculismo, que não se confunde com o cuidado conhecimento das circunstâncias e de si mesmo, é um mal quase atávico em muitos e que inibe o desenvolvimento, dique que é da audácia.

Seu antagonista imediato é o Animal Spirits, um quase-princípio sintetizado como a intuição inexplicável, embora não irracional, que movimenta alguns com coragem e destreza. É, em primeiro e última análise, a perfeita união entre fé e razão, ainda que esta união se embriague de alguma ingenuidade positiva.

Lorde Keynes sobre o animal spirits disse: "A maior parte das nossas decisões de fazer algo positivo (.) só pode ser entendida como o resultado do "animal spirits" (.) e não como o fruto de benefícios mensurados multiplicados por probabilidades mensuradas (.) A iniciativa individual somente será adequada no momento em que o cálculo racional for complementado e sustentado por animal Spirits, de tal moco que a antecipação da perda final que por vezes alcança os pioneiros, como a experiência sem dúvida revela a eles e a nós, seja afastada e posta de lado, assim como um homem saudável afasta a expectativa da morte" [General theory, pp. 161-2 "apud" GIANNETTI, Eduardo, Autoengano, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 39].

A expressão animal spirits remonta aos filósofos gregos e pertence à tradição intelectual ocidental. Basicamente é aquele feeling que impulsiona alguém, convicto do sucesso, a empreender algo.

A razão não é abdicada e, sim, mensurada pelas lentes do instinto (por assim dizer) de ganhador. Sem esses espíritos animais, a sociedade não evoluiria.

Prudência não é eufemismo para covardia. Muita gente, por cálculo, acovarda-se e se sujeita demais aos efeitos da álea. Pode até conquistar coisas, mas nunca de forma plena e sempre nas costas dos outros. Mesmo diante do êxito, sua condição é precária, porque precária é sua forma de se comportar.

O calculismo é vício grave que se mostra em tudo: relações sociais, negócios, profissões. Até os exercícios da fé e da caridade são machucados por esse coirmão da desesperança.

Aos olhos do calculista - que chamo de "prudente" acovardado -, o animal spirits é uma tolice. Ledo engano, afinal, alguma tolice é importante para salgar a vida.

Disse bem Goethe [Máximas e reflexões, parágrafo 282, p. 79], citado por Wittgenstein: "se as pessoas não fizessem coisas tolas, nada inteligente jamais seria feito." [Culture and value, p. 50, "apud" Op. cit., p. 58].

Todos aqueles que conseguiram êxito em algum propósito relevante foram os que ordenaram a razão pela fé, vestiram-se com a armadura da esperança e a capa do animal spirits.

Posso dizer com segurança que o animal spirits é o autoengano do bem. É aquela porção de ignorância necessária para "continuar caminhando quando se atravessa o inferno" (frase atribuída à Sir Winston Churchill).

Machado de Assis confere jocosamente ao seu personagem José Dias o fato de agir "mais por cálculo do que por índole". Por que José Dias se comportava assim?  Simples, sua situação era sempre precária. Nem de sua vida era protagonista. Vivia às sombras de família famosa da sociedade carioca do século 19 e nunca empreendia nada, apenas respondia aos fatos da vida para se manter com algum conforto.

Não corria riscos e a mediocridade era a sua companheira fiel e íntima. Se isso é certo ou errado, não me compete julgar. Há quem prefira viver na haste da horizontalidade, e isto não é exatamente ruim. Compete-me apenas dizer que José Dias não era parte daquela porção de gente guiada pelo animal spirits.

Trazendo para o meu campo de trabalho, a advocacia, penso que o "instinto animal" (o feeling) é sinônimo de confiança e combustível da ousadia. É ele que separa o advogado vitorioso daquele que passa o dia a falar mal de juízes. O comportamento adâmico de terceirizar culpas não se alinha aos bravos de espírito.

O risco é o tempero da vida. Ele tem sempre que ser pesado e mensurado. Ignorá-lo é um erro. Paralisar-se por ele, outro ainda pior. O ânimo empreendedor morreria se todos fossem calculistas e o advogado não seria capaz de postular coisa alguma. O cálculo é músculo da estratégia, não grilhão das ações que aspiram distinção.

Há uma cegueira protetora que, curiosamente, faz bem. Ela permite que o objetivo seja visto como farol em meio à tempestade noturna e as circunstâncias adversas cobertas por espessa neblina.

A advocacia precisa de doses generosas dessa coragem que emerge das entranhas, sob pena de o advogado se reduzir a mero repetir de fórmulas e não alguém chamado a resolver problemas.

À guerra se vai com o espírito, não com o corpo. Fosse só com o corpo, o soldado entregaria a vitória ao inimigo antes mesmo de iniciado o combate. Não há motivo algum para alguém caminhar para a glória senão o desejo de grandiosidade.

Correto Gianetti ao dizer que "sem o antoengano "ex ante" de muitos, a humanidade se privaria do milagre improvável da genialidade "ex post" de poucos. O diamante da imortalidade é dádiva imprescindível do carvão mortal" (Op. Cit. p. 58).

Em síntese: a todos - e aos advogados, em especial -, menos calculismo (covardia disfarçada de razão e prudência) e um pouco mais de animal spirits, de confiança inspirada e visceral. A filosofia grega e a tradição judaica imbuíam aos órgãos (coração e rins) as fontes da razão e das emoções. Nelas imersos, mais facilmente entenderemos o valor do animal spirits em nossas vidas.

O único problema dessa sugestão é que, aberta para poucos, ela não é generosa e distributiva, infelizmente. O animal spirits não é algo que se treina e adquire, mas que se tem ou não.

Apesar disso, vale em boa-fé deixar comentar a respeito. Talvez não se possa adquirir aquilo que é ou não nato, porém se pode combater a cada santo dia o calculismo que o afasta.

Ao advogado não se exige o brilhantismo nem personalidade extravagante. Exige-se, apenas, o bom uso da razão segundo aquele tipo de coragem intuitiva que é própria dos que combatem. Quando não própria do ser, que seja ao menos lembrada para que sejam afastadas as sombras do desânimo voluntário.

Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

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