Série decisão parcial: a definição da cisão cognitiva e fracionamento decisório via decisão parcial como interlocutória
O art. 354, parágrafo único do CPC autoriza que parcela do processo seja extinta, autoriza a prolação de uma decisão interlocutória parcial sem mérito e não uma alteração na conceituação de sentença, tampouco uma sentença parcial.
sexta-feira, 20 de agosto de 2021
Atualizado às 14:31
Como dito no primeiro texto da série, em 2019, defendi a tese de doutoramento no PPGD da UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco sobre o Fracionamento Decisório, o que o ordenamento processual positivou como Decisão Parcial, com a possibilidade de fracionamento da jurisdição em si, com a resolução de parcela do que se pleitou, seja com mérito (art. 356 do CPC), seja sem mérito (art. 354, parágrafo único do CPC).
A partir disso, diversos assuntos paralelos e específicos sobre o tema não são debatidos e trazidos à tona, por vezes ficando de maneira lateral ou esquecida e, diante disso, criei a série de textos sobre Decisão Parcial e neste, o intuito é enfrentar que a decisão que percebe a cisão cognitiva e realiza o fracionamento da jurisdição é uma decisão de natureza interlocutória, não uma sentença parcial.
No CPC/73, quando se entendia como possível a cisão cognitiva, com a prolação de uma decisão sobre parcela do processo, de modo autônomo à sentença, parte da doutrina construía que essa situação deveria ser entendida como a prolação de uma sentença parcial 1, seja de mérito, seja sem mérito.
Essa visão era possível pela complicação que a alteração da redação conceitual de sentença 2, realizada pela lei 11.232/05 3, com o devido enquadramento como sentença de qualquer decisão que versasse sobre os assuntos atinentes aos revogados arts. 267 e 269 do CPC/73[4], sem ou com mérito.
Todavia, o CPC/2015 primou por reorganizar os conceitos dos pronunciamentos judicais, tanto para sentença quanto para decisão interlocutória.
O conceito de sentença, nos moldes do art. 203, §1º do CPC, passou a ser "ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução."
Diante dessa preocupação conceitual com a sentença, o cerne foi estipular como o ato sentencial toda decisão que encerre a fase de cognição 5 ou a execução e, se na fase de cognição, tenha um conteúdo dos arts. 485 e 487 do CPC, ou seja, sem ou com mérito. Dois critérios para ser uma sentença 6, um formal, diante da necessidade de encerrar a prestação jurisdicional para a cognição, outro material, diante da necessidade de que seu conteúdo seja pela extinção por ausência de pressupostos processuais ou pelo julgamento de mérito 7.
A partir dessa premissa, o conceito de decisão interlocutória passa a ser definido, na dicção do art. 203, § 2º do CPC, como todo pronunciamento do juízo de primeiro grau que o seu conteúdo seja decisória, mas sem a possibilidade de enquadrar-se no conceito de sentença. Logo, o conceito de interlocutória é toda decisão que for proferida no processo em primeiro grau que não seja sentença. Totalmente residual, independentemente do conteúdo material, somente que seja com cunho decisório e que não encerre a cognição.
Se o juízo pode prolatar uma decisão que extingue parcela do processo ou que julgue parcela do mérito, consequentemente, em conjunção com os conceitos preconizados no art. 203 do CPC, serão decisões interlocutórias, por mais que contenham matérias que seriam normais de serem decididas em uma sentença 8.
No entanto, não há conceito fechado de conteúdo exclusivo de sentença diante do prisma conceitual imaginado pelo legislador 9.
Optou-se por um conceito fechado de sentença, com critérios conjuntivos entre formais e materiais, com a abertura de uma decisão interlocutória ser propícia de conter questões que anteriormente eram somente restritas à sentença, com questões de admissibilidade e mérito.
É importante tomar-se em conta que o julgamento antecipado parcial, com ou sem mérito, é uma decisão interlocutória 10, ainda que seja com um conteúdo que entendia-se como fechado e restrito a uma sentença.
Dessa maneira, não paira dúvida no CPC/2015 sobre a natureza jurídica desse pronunciamento como uma decisão interlocutória parcial 11.
Mesmo que o art. 354 do CPC em seu caput discorra sobre a prolação de uma sentença em caso de existência de vício processual e no seu parágrafo a dicção seja de que se o vício for parcial a decisão a que se refere o caput pode dizer respeito a apenas parcela do processo. Se a decisão que o caput se refere é uma sentença, então seria caso de sentença parcial? Essa conclusão, apesar de possível, é assistêmica, uma vez que o conceito de sentença está elencado no próprio código, no art. 203, § 1º do CPC, com a menção de que é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487 do CPC, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.
Ou seja, o caput do art. 354 do CPC dispõe sobre a sentença que versará sobre hipóteses dos arts. 485 e 487, II e III do CPC e encerrar a fase de cognição sem julgar o mérito, e o parágrafo dispõe que a decisão do caput pode ser somente de parcela da demanda, o que possibilitaria a sentença parcial como um conceito possível.
Todavia, as conceituações postas pelo art. 203 do CPC e seus parágrafos impõe que sentença tem dois requisitos - o final da cognição e a matéria discutida - e a interlocutória ser toda decisão que não for uma sentença 12.
Logo, se o art. 354, parágrafo único do CPC autoriza que parcela do processo seja extinta, autoriza a prolação de uma decisão interlocutória parcial sem mérito e não uma alteração na conceituação de sentença, tampouco uma sentença parcial.
Essa é a base da cisão cognitiva, a prolação de uma decisão interlocutória parcial 13, independentemente de seu conteúdo ser de mérito ou sem mérito, somente com a necessidade de conter uma cisão cognitiva do processo.
Essas são as considerações sobre esse ponto específico da decisão parcial e até o próximo texto da série Decisão Parcial.
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1 Mas, as sentenças parciais - anteriormente denominadas por parcela da doutrina - eram atreladas à própria existência da processualidade, algo que dispensa a positivação? Armelin já discorria que mesmo antes da alteração da redação final da sentença e interlocutória pela lei 11.232/05, no CPC/73, era possível constatar que decisões possivelmente interlocutórias eram sentenças, em termos de conteúdo, ou, vice-versa, sentenças em termos de conteúdo eram interlocutórias formalmente: "Este conceito não era imune à críticas, pois várias sentenças relativas ao mérito evidentemente que não implicavam o fim do processo, como sucede com aquelas denominadas executivas lato sensu e mandamentais." ARMELIN, Donaldo. Notas sobre sentença parcial e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação. n. 18, v. 5, São Paulo: Ed. RT, jul/set/2008. p. 276.
2 No mesmo sentido: "Esta classificação tríplice dos provimentos judiciais [sentença, decisão interlocutória e despacho], ou atos decisórios, adotada por nosso Código teve, como se sabe, finalidades mais práticas do que propriamente científicas. Pretendendo o legislador simplificar e dar unidade ao sistema de recursos que adotara, houve por bem denominar sentenças a todos os provimentos que ponham termo ao processo, mesmo que esta ocorrência se deva à extinção da relação processual motivada por alguma irregularidade, ocorrida nela própria e que nada tenha a ver com a decisão da causa. (.) Esta concepção adotada pelo legislador de 1973, alterou a tradição de nosso direito, que reservava o recurso de apelação apenas para as decisões finais por meio das quais o juiz decidisse o mérito da causa, reservando para os provimentos a que hoje se dá o nome de sentenças terminativas o recurso de agravo de petição (art. 846 do CPC de 1939)." SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. Vol. 1, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1990. p. 200/201.
3 Mesmo no ordenamento revogado, Mitidiero entendia que a decisão parcial poderia ser via interlocutória e não sentença. A utilização da antiga conceituação da sentença já possibilitava esse entendimento, na visão do autor: "A interlocutoriedade pressupõe estar entre dois marcos: interlocutar significa pronunciar-se sobre algo antevendo a necessidade de um passo adiante, devendo o processo ter curso após a sua prolação. (.) Segundo o legislador, a decisão interlocutória está vocacionada a decidir qualquer questão incidente que venha de surgir no curso do feito. A topologia, o estra aqui ou ali, ressalta na opinião do Código como a segunda nota conceitual que compõe a figura ora em análise. Não interessa ao legislador a matéria a ser tratada: qualquer questão incidente deve ser resolvida pela via da interlocutoriedade." MITIDIERO, Daniel. Sentenças parciais de mérito e resolução definitiva fracionada da causa: lendo um ensaio de Fredie Didier Júnior. Ajuris. Porto Alegre, v. 94, p. 39-50, 2004. p. 44; Sobre o ordenamento anterior e a sua complicação sobre a conceituação de sentença, Dinamarco já dispunha sobre a disparidade entre o instituto conceitualmente e a realidade processual: "Abandonou-se, como se vê, o critério topológico, pois hoje sentença não é mais, por definição, o ato que se situa na extremidade final do processo. Adotou-se, em linhas muito gerais como na vigência do Código de Processo Civil de 1939, um critério substancial - definindo-se a sentença pelo que ela contém, não por onde ela se situa." DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. II 6a ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 506.
4 Barbosa Moreira ao mencionar sobre as alterações conceituais da sentença pela lei 11.232/05: "Impõe-se frisar que o conceito de sentença, à luz da nova sistemática, deixa de fundar-se em critério topológico para ligar-se no conteúdo do ato." BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A nova definição de sentença (lei 11.232). Revista Dialética de Direito Processual. Vol. 39, p. 78-85, São Paulo: Dialética, jun/2006. p. 82.
5 Sobre o conceito de sentença e sua nova versão: "CPC/2015 passa a conceituar a sentença como o ato que põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, ou à execução. Portanto, pelo que se pode perceber, procura o novo texto conceituar este pronunciamento pelos seus efeitos (suas consequências) e pela recorribilidade." ARAÚJO, José Henrique Mouta. Os pronunciamentos de mérito no novo CPC: reafirmação de um posicionamento. Revista Dialética de Direito Processual. Vol. 149, p. 62-68, São Paulo: Dialética, Ago/2015. p. 66.
6Ainda sobre o conceito de sentença e os seus critérios: "depreende-se do texto a tentativa de conciliar no conceito de sentença o critério topológico (provimento judicial que põe fim ao processo ou a alguma de suas fases) com o critério de conteúdo (provimento judicial fundamentado nos arts. 485 e 487 - na sistemática atual, arts. 267 e 269)" SANT?ANNA, Igor Pinheiro de; RIBEIRO, Julio César Medeiros. Breves considerações acerca do julgamento antecipado parcial do mérito na sistemática do novo CPC. Revista Jurídica. Ano 62, n. 446, p. 45-66, dez/2014. p. 51.
7 Sobre o conceito de sentença no CPC/2015: "CPC/2015 passa a conceituar a sentença como o ato que põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, ou à execução. Portanto, pelo que se pode perceber, procura o novo texto conceituar este pronunciamento pelos seus efeitos (suas consequências) e pela recorribilidade." ARAÚJO, José Henrique Mouta. Os pronunciamentos de mérito no novo CPC: reafirmação de um posicionamento. Revista Dialética de Direito Processual. n. 149, p. 62-68, São Paulo: Dialética, Ago/2015. p. 66.
8 Ou pela construção histórica legal de que estas matérias seriam somente decididas no ato sentencial, justamente pela unicidade da sentença.
9 Explicação dada pela tese de Didier Jr. sobre a divisão dos atos entre lógico-jurídico ou jurídico-positivo. Os primeiros nascem do próprio fenômeno do direito e os segundos da definição do direito positivo. DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 2a. ed. Salvador: Juspodivm, 2012; No sentido de que o conceito de sentença depende da vontade do legislador: BARBOSA MOREIRA, José Carlos, A nova definição de sentença. Revista de Processo. Vol. 136, p. 268-276, São Paulo: Ed. RT, 2006.
10 Nesse sentido, Arruda Alvim: "Embora a decisão que julga antecipadamente parcela do mérito tenha o conteúdo de sentença, não visa a extinguir o processo, sendo decisão interlocutória passível de agravo de instrumento, nos termos do art. 356, § 5º, do CPC/2015." ALVIM, Arruda. Novo contencioso cível. São Paulo: Ed. RT, 2016. p. 236.
11 Nesse sentido: SILVA, Ricardo Alexandre. Comentários aos arts. 355 e 356. In: ALVIM, Teresa Arruda; DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno. (Org.). Breves comentários ao novo código de processo civil. p. 956-964. 1a. ed. São Paulo: Ed. RT, 2015. p. 963; LUCCA, Rodrigo Ramina de. Julgamentos antecipados parciais de mérito. Revista de Processo. Vol. 257, ano 41, p. 125-150, São Paulo: Ed. RT, jul/2016. p. 133.
12 Sobre a definição da decisão parcial como interlocutória: "A decisão, então, do juiz que julgar imediata e parcialmente o mérito que não coloque fim ao procedimento cognitivo é uma sentença ou uma decisão interlocutória? Se partirmos do estudo realizado anteriormente, a decisão será considerada interlocutória, uma vez que o procedimento de conhecimento perdurará em busca do julgamento (de mérito) dos demais pedidos." PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud; MILAGRES, Allan. Reflexões sobre o julgamento antecipado parcial do mérito no processo civil e no processo do trabalho. Revista de Processo. Vol. 285, ano 43, p. 273-289, São Paulo: Ed. RT, 2018. p. 279.
13 No sentido de que o CPC/73 permitia uma sentença parcial, sem o trabalho de definir o conceito dessa decisão parcial, com a necessidade de enquadramento como sentença, ainda que parcial e que o CPC/2015 não optou por seguir essa sistemática. "A propósito, é importante destacar que o código não empregou a técnica das sentenças parciais." SILVA, Ricardo Alexandre. Limites objetivos da coisa julgada e questões prejudiciais. Curitiba, PR, 2016. 218 p. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito. p. 48.