Decisões irrecorríveis do ministério público: anacronismo a ser corrigido
Não se pode admitir, efetivamente, num Estado de Direito Democrático, uma decisão absoluta, seja ela judicial ou administrativa, isto é, uma decisão irrecorrível, mormente em sendo monocrática.
sexta-feira, 20 de agosto de 2021
Atualizado às 09:24
"A discussão gira em torno do fato de o ocupante do cargo [de PGR] ser a única autoridade no país que pode tomar decisões individuais que não são passíveis de recurso".
A frase é dos jornalistas Matheus Teixeira e Marcelo Rocha publicada na "Folha de São Paulo" de 11/8/21, sob o título "Omissão de Aras gera debate sobre redução de superpoder do PGR". Advertem, ainda, sobre possível mudança de entendimento do STF quanto à obrigatoriedade de homologação de pedido de arquivamento feito pelo PGR.
E eles têm inteira razão!
Essa situação, referente ao Ministério Público Federal, se explica. Logo após a promulgação da CF de 1988, duas correntes se formaram no seio da Instituição do Ministério Público, quando das discussões internas para elaboração das Leis Orgânicas respectivas: uma delas queria dar um conteúdo absoluto ao princípio da independência funcional; a outra, mais moderada, entendia que o Ministério Público devia se submeter a um sistema de checks and balances.
Como Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo e responsável pela iniciativa da lei Orgânica Estadual, busquei inserir no projeto um sistema de pesos e contrapesos, atento às palavras de Montesquieu - "Tout homme qui a le pouvoir est posse à en abuser" - cuja doutrina fundamentou a separação dos poderes do Estado, como forma de derrubar o Estado Absoluto, após a revolução Francesa.
Essa verdade universal tornou possível também antever que, mais cedo ou mais tarde, e inexoravelmente, viriam sistemas de controle criados por terceiros, talvez inadequados e mais invasivos, que poderiam comprometer a real independência do Ministério Público enquanto Instituição.
O futuro comprovou tais previsões. Vieram alguns abusos ministeriais, de controladores externos e mais de quinze emendas constitucionais, que alteraram o texto original do Ministério Público. 1
A lei-Complementar 734, de 26 de novembro de 1993 - A lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo, trouxe mecanismos recursais que justamente corrigem a grave distorção levantada pela matéria jornalística citada. 2
O primeiro deles diz respeito ao recurso contra a decisão de instauração de inquérito civil 3 dirigido ao Conselho Superior do Ministério Público, pois esse ato jurídico-administrativo não contava com nenhum instrumento legal de impugnação em nosso ordenamento jurídico. Por mais que não houvesse justa causa para a respectiva instauração, o investigado não tinha como reagir.
Todavia, a facção interna que defendia a independência funcional absoluta, representou contra esse recurso ao MPF que, por sua vez, ajuizou a ADIN 1.285, de 25/10/95, ação que até hoje dormita nos escaninhos do STF, mas que, felizmente, não suspendeu a vigência da norma.
O segundo é o recurso previsto no art. 117, dirigido ao Órgão Especial do Colégio de Procuradores, contra ato do Procurador-Geral de Justiça, que determina o arquivamento de inquérito policial ou peças de informação, a ser interposto pelo legítimo interessado. Alterada a decisão, o expediente é encaminhado ao substituto legal do Procurador-Geral, para as providências cabíveis.
Não se pode admitir, efetivamente, num Estado de Direito Democrático, uma decisão absoluta, seja ela judicial ou administrativa, isto é, uma decisão irrecorrível, mormente em sendo monocrática.
Aquilo que o Poder Legislativo aprovou para o Estado de São Paulo, há vinte e dois anos, indica claramente o anacronismo absolutista apontado pelos jornalistas, que é preciso urgentemente corrigir.
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1 Essa história foi contada por mim no opúsculo "Ministério Público: revisitando uma história sem fim", da Editora Contracorrente.
2 À guisa de sustentação mais singela, à época eu dizia que apenas duas autoridades proferiam decisões irrecorríveis: o juiz de futebol e os membros do Ministério Público. No futebol o sistema VAR - sistema de árbitro assistente por vídeo - veio corrigir, em parte, a irrecorribilidade, demonstrando que nenhuma decisão pode ser absoluta. A lei Orgânica Paulista buscou reparar alguma situações, como se vê no texto.
3 No prazo de cinco dias - art. 108 e § 1º.
Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo
Advogado e sócio fundador do escritório Dal Pozzo Advogados. Ex-procurador Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.