Cyberstalking: os reveses da intimidade familiar
A violência psicológica no âmbito das relações domesticas é classificada como sendo capaz de causar danos emocionais ou prejuízos à saúde psicológica. É uma violência que não deixa vestígio, mas é altamente debilitante.
sexta-feira, 20 de agosto de 2021
Atualizado às 09:16
Nada deveria ser mais íntimo do que um relacionamento familiar! Sobretudo, quando falamos no dia a dia de um casal. As partes envolvem-se plenamente, entrelaçando fatos, eventos, compartilhando senhas, redes sociais, contas bancárias, enfim, tornam-se uma só pessoa. Será?!
Além da comodidade assegurada na presunção e expectativa de que haverá, da parte do outro, respeito à intimidade do casal. O direito preocupa-se (e com razão) com a tutela do convívio saudável da família, como ressalta Mário Luiz Delgado 1. Aliás, podemos dizer que através da garantia de inviolabilidade do lar se pôde ver desenvolver a proteção jurídica ao aludido direito da personalidade 2.
Como asseveram Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald: "(...) a família é o mais privado de todos os espaços do Direito Civil" 3. Ou pelo menos deveria ser! E isso porque, no ambiente familiar, a pessoa tem a possibilidade de desenvolver sua personalidade, compartilhando ideias, sonhos, preferências, aspectos amorosos, sexuais, religiosos e etc.
Tudo isso é fantástico "até que a morte os separe". Do contrário, se a separação sobrevier de um traumático divórcio, por exemplo, dificilmente os resquícios dessa comunhão de vida não reverberarão para um estágio penoso da vida de um ou ambos ex-parceiros.
Já se tornou de certa forma clichê o uso de informações privadas e íntimas por ex-parceiros, angariadas em anos de convívio familiar, na tentativa de reatar laços e, quando, a restauração da relação torna-se impossível, partem para o completo revanchismo. Quem não se lembra do escândalo envolvendo o casal Nicéa e Celso Pitta 4.
Atualmente, a realidade digital tornou ainda mais severo o prejuízo deflagrado da conduta abusiva e violadora do convívio íntimo familiar. Assim são os casos de divulgação de vídeos, fotos e fatos íntimos do parceiro na Internet, como forma de vingança pelo rompimento da relação.
Entretanto, uma modalidade bastante recorrente, embora pouco divulgada, é a violência psicológica por meio da perseguição persistente e obsessiva ao ex-parceiro, como forma de recuperar o relacionamento rompido ou, ainda, atrapalhar a reconstrução da vida familiar do outro.
Stalking é a conduta de perseguir e importunar de maneira insistente alguém, violando a tranquilidade e privacidade. O algoz mantém uma conduta obsessiva com relação ao seu alvo, busca obstinadamente alcançar seu objetivo. As finalidades do stalker nem sempre são românticas, muitas vezes possuem interesses competitivos, revanchismo, entre outras.
Com a Internet, a figura do stalking passa ser identificada como cyberstalking, tornando ainda mais grave os danos provocados às vítimas, pois com o auxílio de perfis falsos, vigilância constante por invasão de dispositivos, uso de senhas e informações privadas, o cyberstalker consegue, de maneira muito mais incisiva, intimidar a vítima, provocando inquestionável martírio emocional e psicológico.
As pesquisas revelam que o tempo médio que uma pessoa sofre com esse tipo de perseguição é de um ano e oito meses, sendo que cerca de trinta por cento pode terminar em algum tipo violência grave 5. Grande parte dos alvos vitimados são mulheres, geralmente logo após a ruptura de um relacionamento.
A realidade já despontava para responsabilização na esfera penal do algoz 6, e isso se pode verificar com a introdução do crime de violência psicológica no âmbito da relação doméstica (inciso II do art. 7º da lei 11.340/2006 7), em simetria do recente crime de violência psicológica contra a mulher, prescrito no art. 147-B 8 do Código Penal.
A violência psicológica no âmbito das relações domesticas é classificada como sendo capaz de causar danos emocionais ou prejuízos à saúde psicológica. É uma violência que não deixa vestígio, mas é altamente debilitante. O parceiro geralmente não aceita o fim do relacionamento e, passa a adotar a conduta violadora da paz e tranquilidade do outro.
De todo modo, ainda que na grande maioria dos casos de cyberstalking 9 as vítimas sejam mulheres10, a realidade tem demonstrando que homens também podem ser atacados de igual forma, como no caso julgado pelo Tribunal Bandeirante 11, em que inconformada com o fim da relação, a mulher passa a perseguir reiteradamente o seu ex-companheiro, durante quinze anos, em busca da reconciliação. Registra-se que o cyberstalking ou stalking é considerado crime e, conforme se verifica no art. 147-A 12 do Código Penal, independe do gênero.
Na esfera cível, geralmente, as vítimas de cyberstalking ou stalking buscam medidas obstativas contra seus algozes, seja por meio de cautelares, seja através de ações de obrigação de fazer ou não fazer, com cominação de astreintes. Também é bastante comum as ações de responsabilização civil por dano moral, pela violação da intimidade e perturbação da paz 13.
Certamente, nem sempre as medidas obstativas conjugadas (ou não) com compensação de danos extrapatrimoniais, conseguem convalidar a plena recuperação do projeto de vida 14 da pessoa afetada, já que os abalos emocionais e psíquicos ocasionados pela perseguição abusiva são capazes de incapacitar profissionalmente a vítima, quando não ressoa para patologias crônicas (v.g. depressão, síndrome do pânico etc.).
De todo modo, como se demonstrou alhures, tais condutas violadoras da intimidade, muitas vezes perpetradas por parceiros ou ex-parceiros de uma relação familiar, tem sido enfrentadas com ênfase pelo Poder Judiciário e, hoje mais do que nunca, alcançando abrangente tutela repressora na norma posta.
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1 "(...) A intimidade da vida familiar, ou seja, a relação de intimidade decorrente dos vínculos parentais e afetivos existentes entre os indivíduos de uma mesma família, uns em relação aos outros, não implica em renúncia ao direito fundamental de tutela e proteção da vida privada". (DELGADO, Mario Luiz. Direitos da personalidade nas relações de família. V. Congresso Brasileiro de Direito de Família. Disponível aqui. Acesso em 13 ago. 2021).
2 SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão jurídica da sexualidade, da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 40.
3 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 3. ed. rev., ampl. e atual., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011, p. 26.
4 Mais informações: Trajetória de Celso Pitta foi marcada por denúncias. Publ. 21 nov. 2009. Portal Terra. Disponível aqui. Trajetória de Celso Pitta foi marcada por denúncias. Acesso em 13 ago. 2021.
5 CASTRO, Ana Lara Camargo de; SYDOW, Spencer Toth. Stalking e cyberstalking: obsessão, internet, amedrontamento. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017 (Coleção Cybercrimes), p. 22.
6 TJ/MS - APL: 00050256720138120021 MS 0005025-67.2013.8.12.0021, Data de Julgamento: 27/02/2019, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 01/03/2019.
7 II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela lei 13.772, de 2018)
8 Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: (Incluído pela lei 14.188, de 2021)
9 TJ/SP - AC: 10025961620188260484 SP 1002596-16.2018.8.26.0484, 10ª Câmara de Direito Privado. Relator: Ronnie Herbert Barros Soares, Data de Julgamento: 27/03/2020, Data de Publicação: 27/03/2020.
10 Pesquisas realizadas em 2019 deflagram que 32% das vítimas de violência psicológicas são mulheres contra 17% de vítimas masculinas. Geralmente, a mulher sofre esse tipo de violência no ambiente doméstico, praticada por cônjuge, companheiro, namorados ou antigos parceiros. (NERY, Carmen. Pesquisa nacional de saúde. Violência atingiu 29,1 milhões de pessoas em 2019; mulheres, jovens e negros são as principais vítimas. Agência IBGE Notícia. Publ. 07 mai. 2021. Disponível aqui. Acesso em 13 ago. 2021.
11 TJSP - AC: 10011279520188260366 SP 1001127-95.2018.8.26.0366, 2ª Câmara de Direito Privado. Relator: Penna Machado, Data de Julgamento: 30/04/2020, Data de Publicação: 30/04/2020.
12 Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.
13 TJ/MG - AC: 10024088414263001, Belo Horizonte, 13ª CÂMARA CÍVEL. Câmaras Cíveis Isoladas, Relator: Alberto Henrique, Data de Julgamento: 31/03/2011, Data de Publicação: 13/04/2011.
14 SYDOW, Spencer Toth; CASTRO, Ana Lara Camargo de. Exposição pornográfica não consentida na internet: da pornografia de vingança ao lucro. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017 (Coleção Cybercrimes), p. 116.
Andréia da Silva Moreira
Professora de Direito Civil. Advogada no escritório MLD - Mário Luiz Delgado Sociedade de Advogados. Mestra em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (2019). Especialista em Direito Empresarial pela FGV - Escola de Direito de São Paulo (2011). Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Especialista em Direito Público e Privado pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (2005).