A advocacia digital de varejo como meio de garantir acesso à justiça de qualidade
Vou falar aqui daquilo que hoje entendo bem: demandas de massa no contexto de relações de consumo.
segunda-feira, 16 de agosto de 2021
Atualizado em 18 de agosto de 2021 10:54
Por muito tempo, negligenciamos um universo imenso de consumidores que foram vítimas do que gosto de chamar de "micro danos". Como decorrência lógica, também acabamos por premiar aquelas empresas que optaram por causar estes danos de forma recorrente como política institucional consciente.
Esta realidade foi bem documentada por um recente estudo que concluiu que, na opinião das pessoas mais simples, a experiência de interagir com advogados e a justiça é um problema, já que preferem suportar um prejuízo financeiro de até R$1.000,00 a entrar na justiça para serem ressarcidas (o artigo em sua íntegra está aqui).
A verdade é que nós, advogados, falhamos com estas pessoas.
Nunca realmente admitimos que a advocacia de varejo não estava fazendo um bom trabalho em garantir verdadeiro acesso à justiça a elas (especialmente em controvérsias de valor econômico mais baixo e envolvendo pessoas mais pobres).
Na tentativa de replicar um modelo de negócio utilizado por grandes escritórios de advocacia que atendem com sucesso empresas (outro tipo de cliente, portanto), abusamos tanto de pompa em nossos atendimentos que passamos a intimidar as pessoas que deveríamos acolher.
E, com isso, afastamos o cidadão médio do Direito, fechando a principal porta para a justiça: o acesso fácil ao advogado.
Nunca realmente paramos para ouvir essas pessoas sobre como gostariam de consumir os serviços jurídicos que entregamos.
Nossa mesa de mármore, nosso endereço em área nobre da cidade e a marca do nosso terno não são importantes para quem precisa brigar com uma empresa de telefonia por um erro de R$150,00 na sua fatura. Estas três coisas, no entanto, encarecem de forma desnecessária o preço que você precisa cobrar pelo seu serviço jurídico para ganhar dinheiro.
Nós aprendemos rapidamente que os consumidores mais vulneráveis querem apenas que você exija menos do tempo delas para resolver seus problemas. Prezam por agilidade, conveniência na contratação do serviço e comunicação objetiva (sem frescura e sem rodeios).
Então, por que insistir em um escritório tradicional cheio de ritos inócuos e custo fixo alto?
Abrir um escritório 100% digital custa menos de R$500,00 por ano (muito menos que os milhares de reais que você precisaria para manter um escritório físico aberto pelo mesmo período). Também nos permite prestar serviços jurídicos especializados nos locais mais remotos do país, garantindo atendimento até para quem hoje não tem acesso sequer à advocacia mais tradicional. E, por fim, nos permite expandir o universo de potenciais clientes ao considerar demandas judiciais de valor econômico mais baixo que são desprezadas por outros advogados, sem comprometer a nossa margem de lucro.
Recentemente, Caio Scheunemann Longhi escreveu artigo interessante defendendo a inovação e os benefícios para a sociedade que a participação de startups na compra de créditos em ações judiciais de pequeno valor promove.
E todos os argumentos apresentados por ele são plenamente aplicáveis na advocacia de varejo.
A especialização e eficiência trazidas pela inovação são essenciais justamente para que somente as ações judiciais corretas cheguem até o judiciário. E também para que mais demandas de valor econômico baixo possam finalmente encontrar o seu acesso à justiça, com o auxílio competente de um advogado.
Ainda que o impacto social deste modelo seja enorme ao ampliar o acesso à justiça para quem mais precisa dele e também oferecer ao advogado maior autonomia para prestar o seu serviço técnico longe das grandes bancas, há um imenso preconceito para esta prática dentro da própria advocacia e do Poder Judiciário.
Crescer dentro da advocacia de varejo, pelo menos lidando com o Direito do Consumidor, ainda exige bastante estômago.
Dos Obstáculos para Desenvolver uma Prática na Advocacia Digital de Varejo
1. Você Será Acusado de Ser o Responsável pelo Excesso de Demandas na Justiça
Processos em excesso são necessariamente um problema?
Obviamente que não. As demandas repetitivas que por vezes abarrotam o Poder Judiciário são invariavelmente procedentes (e, aliás, é justamente por isso que se multiplicam progressivamente).
Sob nenhuma ótica uma ação procedente poderá ser vista como a causa do excesso de judicialização no país. Ela é apenas o sintoma. Pois para cada ação procedente, há um direito violado. A causa, portanto, será sempre a conduta lesiva.
A questão que exige verdadeira reflexão é: quais são os incentivos que criamos para que autores e réus acabem tendo de recorrer ao Poder Judiciário para resolver suas diferenças?
Todos sabemos que a culpa da necessidade de litigar em excesso no Brasil decorre da conduta consciente de um punhado de empresas que optaram em manter políticas institucionais que violam de forma sistemática determinados direitos.
Enquanto for economicamente conveniente para uma empresa causar o dano, não oferecer verdadeira oportunidade para repará-lo extrajudicialmente e obrigar o consumidor a provocar o Poder Judiciário como única alternativa de resolver o seu problema, veremos um aumento progressivo de novas ações judiciais na medida em que inovações tecnológicas e maior acesso à informação reduz o custo (de tempo e dinheiro) para que o consumidor possa brigar pelos seus direitos na justiça.
Nessa nova realidade, muitas das condutas lesivas de menor grau naturalmente represadas (seja por desinteresse econômico de advogados em patrocinar tais demandas, seja por preguiça do próprio cidadão em ter de lidar com advogados e a justiça) passaram a encontrar o seu caminho até o Poder Judiciário.
E a resposta inicial dos magistrados a esta nova realidade é frustrante.
No dia 20 de julho de 2021, o juiz de Direito Guilherme Stamillo Santarelli Zuliani fez críticas ao que chama de "advocacia predatória" (que, ao descrever a prática em seu artigo, deixa claro que se trata de atividade criminosa mesmo, com falsificação de procurações e tudo mais). Chama atenção, no entanto, a sua preocupação excessiva com o número de processos conduzidos por determinados advogados, sem nunca fazer referência à procedência (ou não) dos casos que os mesmos conduzem ou à qualidade técnica (ou não) do seu trabalho. A entrevista do magistrado você encontra aqui.
A 16ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo recentemente estendeu multa por litigância de má-fé a uma advogada, contrariando texto expresso de lei, ao também classificá-la como ação predatória. Não conheço os detalhes daquela demanda, mas um dos principais fundamentos da decisão parece ter sido a existência de outras ações judiciais similares na justiça distribuídas pela mesma advogada no mesmo dia.
Em função de visão similar de outro magistrado, hoje respondo a um processo ético-disciplinar no Estado de São Paulo, pois ele entendeu que tínhamos muitas ações contra um determinado grupo de empresas (e, na verdade, nem eram muitas, mas pouco mais de cem demandas) e decidiu oficiar a OAB/SP. Bastaram pouco mais de cem clientes, portanto, para aquele magistrado concluir que a nossa atuação era suspeita de algum tipo de irregularidade.
Curiosamente, os grandes escritórios que tem um ou poucos clientes e atuam em centenas de milhares de demandas país afora são, pasmem, exemplo incontroverso de sucesso.
Ter muitos clientes (e, por consequência, muitos processos) é presunção de mérito quando se presta serviços jurídicos para pessoas jurídicas em grandes escritórios. Ter muitos clientes e muitos processos é presunção de irregularidade quando se presta serviços jurídicos para pessoas físicas de forma individual ou em pequenas sociedades.
Dois pesos e uma mesma medida.
Você, com alguns processos procedentes, será responsabilizado pela sobrecarga de trabalho dos magistrados. O cliente do grande escritório, com centenas de milhares de ações judiciais improcedentes, não será visto como o verdadeiro problema.
O que você acha que justifica a diferença de tratamento?
Eu explico: uma campanha difamatória voraz, sistemática e incansável contra a vítima e seu advogado promovida, pasmem, pelas empresas mais demandadas deste país, assessoradas invariavelmente pelos mesmos escritórios de advocacia.
2. Você Será Alvo de Campanha Difamatória das Grandes Empresas e de Seus Patronos
Para justificar a sua intransigência em juízo e sem um único bom argumento para contestar o mérito das milhares de demandas repetitivas que respondem, as grandes empresas emplacaram a narrativa surpreendente (e absurda, diga-se de passagem) de que são as verdadeiras vítimas nas ações que respondem.
Ou você nunca percebeu que nas defesas excessivamente genéricas que apresentam (muitas vezes, sem qualquer nexo com os fatos do caso), pouco se discute as particularidades relevantes do mérito da controvérsia para focar em retratar o cidadão que teve o seu direito violado (a vítima, portanto) como um oportunista incurável "dramatizando uma situação para ganhar dinheiro" e o pequeno advogado como um picareta "angariando clientela de forma irregular"?
Pois é.
O mérito, em si, de cada uma das demandas não importa. O objetivo é construir uma narrativa única e repetitiva em todos os processos capaz de desmerecer QUALQUER pedido que venha a ser formulado, condicionando o magistrado a enxergar em cada vítima uma pessoa atrás de dinheiro fácil. E em seu advogado, um mau profissional.
São milhões de petições por dia reforçando essa narrativa a ponto de colocar no subconsciente do magistrado uma preocupação (ainda que legítima) totalmente desproporcional em premiar algum demandante que, de fato, se aproveite do sistema. E assim o Poder Judiciário é induzido a reduzir paulatinamente as condenações na medida em que as demandas aumentam, punindo a vítima e premiando justamente o infrator.
É o receio de premiar 1% dos cidadãos que talvez tentem, de fato, abusar do sistema para levar vantagem indevidamente, punindo os outros 99% que tiveram seus direitos lesados e não terão uma reparação satisfatória.
Afinal, quando o fornecedor do serviço não cumpre aquilo que está previsto no contrato, o mero inadimplemento contratual não gera dano ou os transtornos do consumidor não passam de mero dissabor. Quando o consumidor atrasa um dia o pagamento da fatura, multa compensatória, juros moratórios e correção monetária.
Mais uma vez, dois pesos e uma medida.
Nesse cenário, a conduta lesiva não cessa, a maioria dos indivíduos se convence de que brigar na justiça não compensa e o número de demandas diminui pelos motivos errados.
Para fomentar a composição, o Poder Judiciário deveria ser, na verdade, mais rígido (e não mais leniente) com aquelas empresas que são alvo de demandas em massa e também com os autores que vierem a litigar verdadeiramente de má-fé. Não é reduzindo o valor das indenizações, perseguindo advogados com um volume expressivo de demandas ou obstaculizando o reconhecimento da violação de direito que faremos justiça. Pode até funcionar no curto prazo para reduzir o número de novas demandas, mas desestimular a judicialização punindo a vítima é um erro.
Precisamos é dar o incentivo econômico correto para que estas empresas encontrem formas alternativas para a resolução destas controvérsias. E punir com rigor os litigantes de má-fé. Não há outro caminho.
Se você não acredita que há uma campanha difamatória em curso distorcendo a percepção que temos da advocacia de varejo, vou dar aqui alguns exemplos daquilo que enfrentamos quase que diariamente.
Tire destes relatos suas próprias conclusões.
Nós, e todos os demais advogados que alcançam volume em demandas repetitivas contra certas empresas, somos chamados carinhosamente pelos grandes litigantes deste país de "agressores". As startups que nasceram para ajudar consumidores a serem ressarcidos pelos seus prejuízos foram batizadas por esta mesma turma de "aplicativos abutres".
Estas empresas também institucionalizaram uma política acordo zero com instrução EXPRESSA para que não se ofereça proposta de acordo em demandas evidentemente procedentes patrocinadas por determinados advogados.
Punem, portanto, justamente com a judicialização forçada.
Apelidei essa política de "devo, não nego, mas com esse advogado aí, não pago".
Não faz muito, o dono de um escritório de advocacia paulista bradou contra a nossa prática:
"Defendo os interesses do meu cliente. Prezo pelo respeito aos colegas e ao exercício digno da advocacia não mercantilizada. Acaso me ameace novamente irei até o final para derrubar seu site que não tem lugar no nosso Brasil".
A "ameaça", no caso, foi ter dado ciência e oportunidade para que o colega retificasse uma petição para excluir alegações falsas sobre a nossa prática e o nosso cliente.
Veja que este advogado não vê nenhum problema em defender o interesse (e não o direito) do seu cliente. E se o interesse do cliente for acabar com a sua prática ainda que sem fundamento, que assim seja. O interesse, lembrem, nem sempre anda de mãos dadas com o bom direito.
Outro escritório de advocacia que está entre os 10 maiores do país impugna a assinatura digital dos nossos clientes em TODAS as procurações, alegando irregularidade na representação processual. Não bastasse a hipocrisia do seu cliente - uma Big Tech - contestar uma assinatura digital, nem uma única vez o fizeram por meio do incidente processual adequado de falsidade documental para não pagar custas (!?).
Sabem por quê?
Porque no fundo eles não querem invalidar a nossa procuração. Querem mesmo é um pretexto para juntar telas do nosso site, imagens das nossas redes sociais e requerer seja oficiada a OAB, mesmo já tendo ciência de que a nossa prática foi fiscalizada pela OAB/RS e nenhuma irregularidade foi constatada.
A tese em si não tem efeito prático (e os advogados que a promovem sabem muito bem disso), mas o objetivo é intimidar e macular a índole. É suscitar dúvida na cabeça do julgador para desmerecer a demanda como um todo, e sugerir que nós e todos os nossos clientes não merecemos a devida atenção do Poder Judiciário.
E, antes de concluir, um último exemplo. Em outro tipo de demanda envolvendo abusos de desenvolvedoras de jogos eletrônicos contra consumidores, os advogados da fornecedora do serviço insinuam a má-fé da nossa atuação por termos distribuído 200 ações contra uma determinada empresa. Vejamos nas próprias palavras deselegantes do colega:
"Excelência, é sabido que a boa-fé deve ser presumida em todas as relações, contudo, tendo em vista o histórico dos patronos da causa, que como já mencionado ao longo da demanda captam clientes de forma totalmente indevida, incitando jogadores a demandarem contra a Ré a fim de obter ganhos ilícitos, o que se comprova pelas mais de 200 (DUZENTAS) demandas idênticas movidas por estes patronos contra a Ré que tiveram, em sua esmagadora maioria, improcedência, é de se questionar a boa-fé da parte autora e seus patronos na presente demanda."
Ora, este colega apenas "esqueceu" de mencionar que a sua cliente violou os direitos constitucionais de mais de 30 milhões de jogadores em um único ano ao usar procedimento punitivo sumário que não oportuniza qualquer tipo de contraditório. Deveríamos ter 30 milhões (e não duzentas) ações na justiça contestando a sua conduta ilícita. Simples assim.
O que os verdadeiros responsáveis pela excessiva judicialização no país querem mesmo é preservar o seu "direito" de violar direitos alheios sem ter que responder por isso. Justamente para preservar este estado das coisas, atacam diretamente a prática de quem defende de forma competente os consumidores para que não consigam prosperar, inclusive condicionando os próprios magistrados a ter contra eles preconceitos graves. Desejam uma advocacia de varejo para o cidadão em frangalhos, ineficiente e desunida. Querem uma presa fácil e amedrontada.
E o mais assustador é que estão tendo bastante êxito com a sua estratégia.
No mais, para não cometer uma grande injustiça, há escritórios de advocacia que enfrentamos com frequência e fazem um trabalho técnico fenomenal, sem nunca perder a cordialidade.
Vocês estão de parabéns e tem todo o meu respeito.
Afinal, Como Devemos Solucionar o Problema dos Micro Danos dentro da Advocacia de Varejo?
Você pode até achar que tudo isso é uma bobagem. Um devaneio. Um recalque.
Mas, afinal, como queremos resolver o problema dos micro danos sistêmicos nas relações de consumo?
O problema existe. Ponto. Também conhecemos bem quem são os responsáveis por ele.
Cada vez mais demandas desta natureza encontrarão o seu caminho até a justiça no mundo em que vivemos, potencializadas por avanços tecnológicos sem precedentes e maior proximidade das pessoas com o Direito ao contar com a presença da advocacia nas redes sociais.
Hoje, a solução que apresentamos é exigir que essas vítimas se resignem com o seu prejuízo, se dirijam sozinhas a um Juizado Especial Cível, sem assessoria técnica, ou provoquem a defensoria pública.
Deixar o cidadão desamparado e premiar o causador do dano não é uma alternativa.
Quem julga casos nos Juizados Especiais Cíveis sabe o quão difícil pode ser analisar uma demanda sem a atuação de advogados. Há erros formais e falhas graves na instrução. Resulta, em muitos casos, em chancelar judicialmente injustiças por falta de técnica do cidadão. Em tese, parece ser uma boa ideia. Na prática, não funciona bem e frustra a todos os envolvidos.
E também não faz sentido demandar a defensoria pública para tratar de direitos disponíveis mais supérfluos. A defensoria pública está lá para cuidar de demandas de maior repercussão social. Para assegurar dignidade a todos nós, sempre que necessário.
A solução mais apropriada é, portanto, justamente permitir o desenvolvimento da advocacia digital de varejo que se propõe a acolher o consumidor e entregar serviço jurídico de qualidade de forma eficiente a mais gente, por menos.
Enquanto a própria advocacia parece ainda dificultar o exercício da profissão em modelo de negócio alternativo mais eficiente e 100% digital, o vácuo por ela deixado acaba sendo preenchido por startups não jurídicas que atendem melhor o consumidor e tomam o nosso mercado.
Com todo o respeito, me parece que nós, advogados, deveríamos repensar as bandeiras pelas quais estamos lutando. A advocacia, hoje, está em dívida com a parte mais vulnerável da sociedade e estamos se recusando a tornar a nossa prática mais inclusiva justamente para quem mais precisa dela.